Acaba de assumir a presidência da Transparência e Integridade, Associação Cívica (TIAC). Que objectivos se propõe alcançar ao longo do mandato?
Temos a sorte, a nova direção e eu, de termos herdado uma casa arrumada, fundada e organizada por alguns dos principais líderes da sociedade civil no combate à corrupção em Portugal. No imediato, temos a responsabilidade de mostrar aos nossos membros e à sociedade portuguesa que essa liderança e essa assertividade no combate à corrupção vão continuar. A médio prazo – e isto vai além do limite de um só mandato – o trabalho principal é de mobilização. Seis anos nas trincheiras ensinaram-nos que a vontade política é um bem escasso em Portugal, no que toca a políticas de integridade pública. Onde falta vontade política temos de mobilizar a vontade cívica. O combate à corrupção não pode ser uma cruzada de um grupo pequeno de ativistas. Temos de mostrar a cada cidadão que há um papel que cada um de nós tem de desempenhar para contruir o país em que todos queremos viver.
Na sua perspectiva, verificou-se uma evolução positiva ao nível da transparência do exercício do poder político, nos últimos anos?
O que há de positivo é que a integridade pública está hoje, como nunca esteve, no centro das preocupações dos cidadãos. A TIAC contribuiu para tirar o tema da clandestinidade e afirmar a corrupção – que era uma palavra tabu – como um dos principais problemas nacionais. Mas tirando essa consciência cívica, os avanços no plano político foram muito poucos. Continuamos presos num círculo vicioso, em que políticos são rotineiramente apanhados em situações opacas, o Parlamento legisla às pressas para branquear o escândalo da semana, mas nada muda na prática. Não há vontade política para cortar este mal pela raiz, porque os políticos continuam a ter um medo de morte de falar sobre corrupção e integridade do Estado. Preferem atropelar-se uns aos outros em iniciativas legislativas inócuas a olhar para o problema com a gravidade e a seriedade que ele exige.
Quais foram as maiores conquistas da TIAC, até hoje, no que respeita a iniciativas legislativas ou mudanças de comportamentos?
Em termos de impacto, diria que o Índice de Transparência Municipal que publicamos anualmente desde 2013 é o nosso projeto mais bem sucedido. Hoje qualquer cidadão encontra muito mais informação útil na página da sua Câmara Municipal do que há quatro anos, graças a este índice que mede a transparência ativa dos municípios. É um excelente exemplo de como a sociedade civil pode fazer pressão para qualificar os níveis de transparência e prestação de contas. Acho até que a maioria dos autarcas vê este índice não como uma intromissão da sociedade civil na sua esfera de poder, mas como um diálogo útil para desenvolver métricas de boa governação e prestar melhores contas aos cidadãos. A democracia faz-se deste diálogo. Quem me dera termos tido a mesma abertura a nível legislativo, onde a evolução tem sido mais lenta e com mais resistências. Neste momento há um conjunto de iniciativas na agenda do Parlamento, que incluem coisas como a regulação dos conflitos de interesses, o combate à lavagem de dinheiro ou a proteção de denunciantes. Estamos a seguir de perto esses processos, pelos quais temos lutado há vários anos. Há aqui oportunidades de fazer avanços significativos. Se houver vontade para isso…
Não há vontade política para cortar este mal pela raiz, porque os políticos continuam a ter um medo de morte de falar sobre corrupção e integridade do Estado.
O Grupo de Estados Contra a Corrupção (Greco) recomenda que o crime de tráfico de influência para ato lícito passe a ser punido em Portugal. A TIAC também defende essa alteração legislativa?
Criminalizámos o tráfico de influências para ato ilícito mas deixámos de parte o tráfico de influências para ato lícito, ou seja, continua a não haver crime se comprarmos favores para obter um resultado legal – uma nova lei ou uma decisão regulatória, por exemplo. É uma lacuna que tem de ser corrigida, é óbvio, mas mais do que isso denuncia a forma como se acatam as recomendações de organismos internacionais, como o Conselho da Europa, para o combate à corrupção: as abordagens legislativas são desenquadradas, não há um pensamento de fundo nem uma estratégia coerente. Acabamos a fazer leis ou a rever leis ao sabor de uma agenda externa – seja a agenda mediática ou a de organizações internacionais – e por isso há sempre buracos que ficam abertos. Tudo isto tem de ser pensado não apenas no plano legislativo, mas como uma política pública estrutural: onde é que estão os riscos? Como é que minimizamos os riscos? Como é que fortalecemos os mecanismos de prevenção e como é que asseguramos uma investigação e uma punição eficazes, quando a prevenção falha? É preciso pensar na qualidade das instituições, na sua independência e capacitação, na integridade do Estado. É preciso pensar a sério e agir a sério, isto não são coisas que se resolvam apenas com um golpe de caneta legislativa.
Considera que a legislação sobre corrupção já é suficiente, ou defende a introdução de novos mecanismos como a “delação premiada” ou a criminalização do enriquecimento ilícito?
Na verdade, o trabalho legislativo nunca está completo. É sempre preciso avaliar, identificar falhas, estudar soluções, testá-las no terreno, aprender e corrigir. Continuamos a ter algumas lacunas legais mas, no geral, temos o enquadramento de corrupção alinhado com as recomendações internacionais – a precisar de correções e de limpar algumas lacunas, mas temos a base. O que é preciso é implementar. Implementar, avaliar e melhorar. Aliás, só vamos aprender que mudanças precisamos de fazer na lei quando começarmos a implementar as leis que já temos. A delação premiada é um bom exemplo: até se começar a investigar casos de grande corrupção envolvendo gente poderosa ninguém tinha sentido a necessidade da delação premiada. Agora fala-se nisso porque se percebeu no terreno que é muito difícil furar o manto de silêncio que envolve a grande corrupção. É preciso pôr as mãos na massa e começar a cozinhar para se poder afinar a receita.
No que respeita à criminalização do enriquecimento ilícito, ou à regularização do “lobbying”, as sucessivas iniciativas legislativas têm fracassado sempre. Por que razão?
No que toca ao “lobbying”, o nosso receio é que se faça uma espécie de importação legislativa que consiste em aplicar as soluções que existem noutros países e nas instituições europeias mas que não têm em linha de conta a realidade portuguesa. Há um risco real de ficarmos com uma solução inócua. O enriquecimento ilícito é uma história mais antiga e com mais peripécias, incluindo leis que chumbaram no Tribunal Constitucional (TC). E quando o Parlamento perde meses a fazer uma lei que depois chumba no TC, a conclusão é uma de duas: ou não souberam fazê-la bem feita, ou não quiseram fazê-la bem feita.
Criminalizámos o tráfico de influências para ato ilícito mas deixámos de parte o tráfico de influências para ato lícito, ou seja, continua a não haver crime se comprarmos favores para obter um resultado legal.
A Subcomissão de Ética foi recentemente confrontada com oito situações de deputados que eram sócios de empresas que beneficiaram de contratos por ajuste directo de entidades públicas, ao mesmo tempo que exerciam os mandatos na Assembleia da República. Essas situações só foram detetadas através de uma investigação jornalística. A Subcomissão de Ética não deveria ser mais proativa, fiscalizando eventuais impedimentos ou conflitos de interesses dos deputados?
A Subcomissão de Ética tem a obrigação de verificar os registos de interesses dos deputados. Infelizmente, não só não é proativa como tem sido passiva, ou ativamente negligente. Nenhum deputado tem interesse ou vontade de questionar a conduta ética de um colega, a não ser para gerar um “soundbyte” para a televisão. Continua a vigorar uma cultura de respeitinho e de “amigo não empata amigo” que faz com que as comissões de ética sejam mais eficazes como distribuidores de indulgências do como garante do bom nome da classe política. Depois podem acusar os jornalistas ou a sociedade civil de populismo e de demagogia. Mas quando a própria classe política não se insurge contra casos de promiscuidade entre os seus membros, o cidadão tira as suas conclusões.
Em quatro das situações, concluiu-se que não havia impedimento porque se tratava de advogados e revisores oficiais de contas. Como a lei dos impedimentos se refere a “atividade de comércio e indústria”, estas profissões liberais estão isentas, segundo a interpretação jurídica que vingou. Ou seja, os advogados e os revisores oficiais de contas podem ser deputados e, ao mesmo tempo, prestarem serviços a quaisquer entidades públicas, inclusive órgãos de soberania como o Governo ou a Assembleia da República. Não há aqui um sério problema de incompatibilidade e conflito de interesses?
Há, é óbvio. E há até um problema de tratamento desigual entre deputados. Um deputado que seja sócio de uma empresa de doces regionais não pode servir biscoitos num evento público, mas um deputado-advogado está à vontade para vender pareceres e serviços jurídicos ao Estado. E isto é tanto mais chocante quanto é óbvio que os grandes problemas de conflitos de interesses e captura do Estado se operam hoje nas sociedades de advogados. E é precisamente este pântano que fica isento de controlo, graças a uma interpretação habilidosa da lei. O que significa que nas bancadas do Parlamento há deputados de primeira e deputados de segunda: o deputado-advogado é esperto; e o deputado-industrial é tanso.
Para os deputados-advogados não há restrições, mas para os deputados cujas mulheres têm participações em empresas de “comércio e indústria” já há restrições e são obrigadas a alienar essas participações. Por outro lado, não há qualquer limitação de valor: um contrato de mil euros é tratado da mesma forma que um contrato de milhões de euros. Isto não é absurdo?
Na TIAC, o absurdo é a nossa profissão. Já nos habituámos a uma certa dose de surrealismo na forma como estas coisas são tratadas. O problema é quando se legisla sem estudo e sem uma visão sistemática do problema, acabamos por multiplicar regras, multiplicar exceções e ter uma rede que muitas vezes apanha o peixe miúdo mas deixa fugir os tubarões. Seria muito mais útil uma lei que estabelecesse os princípios básicos de independência e integridade no exercício de funções, estabelecesse mecanismos eficazes de transparência e controlo e fizesse depois o acompanhamento das situações, caso a caso. Senão estamos sempre a ser apanhados desprevenidos pelo escândalo da semana, que tem sempre a sorte de escapar à letra da lei em vigor. E mudamos hoje a lei, e para a semana temos outro escândalo que passa pelos buracos abertos na nova lei. Já vimos este filme vezes suficientes para perceber que esta abordagem não funciona.
Um deputado que seja sócio de uma empresa de doces regionais não pode servir biscoitos num evento público, mas um deputado-advogado está à vontade para vender pareceres e serviços jurídicos ao Estado.
Duas situações de impedimento foram comprovadas, mas como os deputados venderam as participações, corrigindo o problema, não foram sancionados. Ou seja, aos deputados que violam o Estatuto dos Deputados basta-lhes corrigir a situação e o assunto fica resolvido. A aplicação das sanções previstas na lei, nomeadamente a devolução de rendimentos, não serviriam como um elemento de prevenção?
A prática das várias comissões de ética, não só da atual subcomissão, tem sido esta. No que toca a conflitos de interesses são sempre os últimos a saber e, ou arranjam maneira de concluir que está tudo bem, ou despacham o deputado com uma espécie de perdão divino: “Vai, e não voltes a pecar”. Não tenho memória de qualquer sanção alguma vez ter sido aplicada, portanto o efeito preventivo é zero. E depois há outro pecado capital: as comissões de ética limitam-se a fazer uma interpretação das leis em vigor. Nunca fazem um juízo ético, apesar de ser para isso que servem. Só contribuem para acobertar as promiscuidades várias que proliferam na política e acabam por acentuar a ideia de que os políticos se protegem uns aos outros. Para o efeito tóxico que têm na imagem das instituições, mais valia não existirem.
A elaboração dos pareceres da Subcomissão de Ética coube a deputados que são colegas dos mesmos partidos dos visados. Acha que um deputado consegue ser isento na avaliação de um colega do mesmo partido?
Avaliar falhas éticas de um colega do Parlamento já é delicado. Avaliar as falhas de um colega de partido é pior ainda. Não é por acaso que nunca há sanções. Parece-me hoje evidente que precisamos de uma comissão de ética e conduta externa, independente e com recursos para fazer um trabalho eficaz. Até há uma proposta de lei que vai nesse sentido, mas tudo depende do formato que for escolhido. Controlo externo é muito bom, mas chutar a supervisão para um gabinete do TC, que é o que está proposto, pode significar apenas que os políticos sacodem a água do capote para cima uma entidade fraca, sem recursos e sem capacidade para ser eficaz. Se é para fazer, mais vale fazermos bem feito: precisamos de uma comissão de ética e boa conduta independente, capacitada e reformista. Criar um álibi, em vez de um supervisor, é o pior que pode acontecer.
Para o efeito tóxico que têm na imagem das instituições, mais valia não existirem [as comissões de ética no Parlamento].
Está em plena atividade a Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas, com a qual a TIAC tem vindo a colaborar. Os casos de impedimentos recentemente detetados poderão ter repercussões nessa comissão, gerando novas iniciativas legislativas ou modificando as que já estavam a ser preparadas?
A TIAC tem procurado contribuir para o trabalho da Comissão para a Transparência. O meu antecessor na presidência da associação, o professor Luís de Sousa, foi ouvido pelos deputados e partilhámos não só as pesquisas e recomendações que temos produzido ao longo dos anos, mas também um dossiê de análise sobre as propostas em cima da mesa. Algumas das propostas já responderiam ao caso específico destes deputados mas é sempre mau querer legislar em resposta a casos concretos porque aí perdemos de vista a floresta por causa das árvores. O nosso apelo tem sido para se refletir, estudar melhor e abordar este problema, não em resposta ao escândalo do momento mas de forma sistémica, informada e através de amplo debate público.
Foi entretanto noticiado que o PSD propõe uma redução do leque de impedimentos dos deputados, ao ponto de permitir que as empresas detidas por deputados possam participar em concursos públicos para fornecimento de bens ou serviços. Ou seja, estender os regimes de exceção dos advogados e revisores oficiais de contas a todas as atividades, a todas as empresas detidas (total ou parcialmente) por deputados. Afinal, a lei dos impedimentos é demasiado permissiva ou demasiado restritiva?
A lei de impedimentos, tal como tem vindo a ser implementada, é o pior de dois mundos: restritiva na aparência, com várias obrigações burocráticas de reporte e registo, mas permissiva na prática porque não é fiscalizada nem cria um mecanismo eficaz de supervisão sobre a conduta dos políticos. É óbvio que neste contexto, aligeirar as restrições só pode dar mau resultado, mas insisto que a questão essencial não está no elenco de restrições ou de incompatibilidades. Está em criar um mecanismo robusto de verificação e em garantir que a nenhum responsável eleito é permitido lucrar com o cargo, quer participando em decisões que o beneficiam, quer fazendo uso da sua rede de contactos políticos para ganhar contratos ou benesses para si ou para os amigos. Agora, é no mundo real que estas oportunidades se colocam, portanto, mais do que listas de restrições, do que precisamos é de mecanismos eficazes para monitorizar a atividade privada dos servidores públicos e, antes que os negócios se façam, travar e prevenir situações de conflito de interesses. Significa por exemplo que um eleito entregue a gestão dos seus negócios particulares a um gestor independente e se afaste em absoluto dessa atividade privada enquanto estiver em funções.
Temos vindo a assistir nos últimos anos à consolidação de um movimento de captura dos Estados pelos grandes grupos económicos que está a corroer a democracia e a diminuir a legitimidade das instituições públicas.
Que efeitos práticos é que poderão resultar – ou espera que resultem – da Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas?
Temos procurado sensibilizar os deputados da Comissão para a necessidade de abordar estes problemas de forma sistemática. Mesmo que isso demore mais tempo, prefiro um bom sistema de integridade daqui a dois anos do que um conjunto de más leis daqui a seis meses. Prefiro suspender o meu julgamento até ao fim dos trabalhos, mas a nossa mensagem para os deputados tem sido de que já se perderam demasiadas oportunidades. É importante não perdermos também esta.
A economia portuguesa sofreu uma profunda transformação nos últimos anos, com quase todos os bancos e grandes empresas a passarem para as mãos de estrangeiros. Esta nova realidade vai gerar uma menor promiscuidade entre a política e os negócios? Ou os novos proprietários estrangeiros vão procurar obter o mesmo tipo de acesso ao poder político, a mesma influência e forma de atuar?
Infelizmente, a promiscuidade entre política e negócios não é uma invenção portuguesa. Basta ver quantos secretários do Tesouro nos EUA vieram dos grandes bancos de investimento. Temos vindo a assistir nos últimos anos à consolidação de um movimento de captura dos Estados pelos grandes grupos económicos que está a corroer a democracia e a diminuir a legitimidade das instituições públicas. No limite, subverte as próprias regras de mercado, porque temos grandes grupos económicos que capturam as leis e as decisões regulatórias a seu favor, e impedem o surgimento de startups inovadoras ou novos empreendedores. Já nem é capitalismo, é oligarquia. Criar canais de acesso aos decisores, em qualquer país onde atuam, está no “modus operandi” destes agentes. Aliás, basta ver a forma opaca como foram vendidos alguns ativos do Estado para pormos de lado qualquer ilusão sobre o fim das promiscuidades e da captura do poder político. Não escapamos a esta realidade. Têm de ser os cidadãos a tomar em mãos a defesa da integridade pública. Se não formos nós, de forma persistente e organizada, a lutar pela qualidade da nossa democracia, não podemos esperar milagres dos nossos líderes políticos e económicos.
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