Apaixonada pela vida e pela História, dona de um sorriso rasgado e contagiante, firme nas suas convicções e na investigação historiográfica plasmada nas numerosas obras que deu à estampa, Irene Flunser Pimentel recebeu-nos em sua casa para uma amena conversa sobre alguns momentos marcantes da sua vida: dos filmes que devorava no cinema do avô paterno à rutura com os valores burgueses que a levaram a aderir à extrema-esquerda e posterior afastamento da política, passando pela sua leitura dos novos fenómenos políticos e da destruição da social-democracia, pela ‘solução’ portuguesa – a geringonça – e pela importância de pôr a gente mais nova a discutir política a sério.
Andou no Liceu Francês e consta que era uma menina bem comportada…
Não sei se o meu pai e a minha mãe diriam isso! [risos]
É filha de pai português e mãe suíça-alemã. O facto de a sua mãe vir de outra cultura foi determinante em algum aspeto?
É evidente que a influência da minha mãe e da família suíça teve muita importância. Mas o que pesou mais foi a diferença entre a família portuguesa e a família suíça. A família do meu pai era conservadora e católica, mas muito aberta e, desde logo, para a minha mãe e a família dela. Isso foi muito importante para mim, pois fiquei a saber que havia pessoas e classes sociais muito diferentes no mundo. O meu avô materno, por exemplo, era ferroviário. Aliás, os meus tios também. Mas um ferroviário na Suíça tinha uma cultura especial. O meu avô dizia poesia, era um homem muito politizado, fazia parte do sindicato dos ferroviários, era social-democrata, ou seja, socialista. A família paterna era mais à direita e não era propriamente opositora ao regime de Salazar e de Caetano. Fui educada aqui [em Lisboa] com os meus primos – tenho uns 50 primos direitos em Portugal –, mas dei-me muito bem com os dois lados.
O Liceu Francês abriu-lhe ‘fronteiras’?
Sim, porque me deu, em plena ditadura, não só disciplina, mas também liberdade de pensamento. E abriu-me outras fronteiras, pois tinha professores diferentes do que seria o mainstream português. Muitos deles não podiam ensinar nas escolas públicas por serem oposicionistas do regime e o Liceu Francês abria-lhes as portas.
Falava-se abertamente sobre a guerra e o regime em sua casa?
Sim, quando comecei a ganhar consciência disso, lembro-me que se falava dessas questões, inclusive no Liceu Francês nas aulas de História, Literatura, etc. A partir da adolescência comecei a ler muito, e lia muito em francês. Depois comecei a ter, gradualmente, uma curiosidade bastante grande sobre o que se tinha passado na II Grande Guerra. E como todos os anos íamos à Suíça havia um cosmopolitismo bastante grande, mesmo da parte do meu pai. Apesar de ser originalmente conservador e católico – mais tarde deixaria de o ser –, e mesmo não sendo um opositor político, dava-se com opositores políticos. A partir do início dos anos 60, esses amigos, na maioria médicos, foram todos presos, porque faziam parte da célula dos médicos do Partido Comunista. De repente, vi-me confrontada com o facto de os pais dos meus amigos de infância terem sido presos. E lembro-me que tinha imensa vergonha pelo meu pai não ter sido preso! [risos]
Confrontou o seu pai?
Não me lembro. Muitas vezes, sobretudo em História e na História mais recente, porque utilizamos muito a memória das outras pessoas, entrevistando, sabemos que há muitas fabricações posteriores. Por isso, não sei se confrontei logo o meu pai. Mas ele soube, porque, na altura ou posteriormente, cheguei a dizer a estes meus amigos: “que sorte… os teus pais foram presos!” [risos]
Antes de abordarmos o seu percurso político, pode falar-nos um pouco sobre o seu avô paterno, um químico-farmacêutico apaixonado pelo cinema.
Era uma figura muito, muito interessante! Se não fosse neta dele teria feito a sua história biográfica. Infelizmente, ninguém pegou nisso, mas acho que não deve ser a família a fazê-lo. Era um homem muito alto, muito magro e usava uma pera. Era muito sui generis e tratavam-no por “Sr. Major”. Vinha de uma família transmontana muito, muito pobre – uma família típica com muitos filhos, seriam mais de 12… Era o mais velho e começou a trabalhar numa farmácia. Como era muito inteligente fizeram com que ele pudesse estudar. Mas como não havia meios para lhe pagar um curso superior, foi para a tropa voluntariamente. Era uma das vias na altura: ou se ia para o seminário ou para a tropa. Foi aí que tirou o curso superior de química e farmácia. Depois esteve na I Guerra como farmacêutico e, mais tarde, ele e o irmão da minha avó – que era de uma família rica de Leiria – juntaram o seu know-how e criaram o laboratório Sanitas.
Pelo que sei, usava o dinheiro ganho na indústria para construir cinemas. Ou seja, era um cinéfilo. A neta saiu ao avô?
Sou completamente cinéfila! [risos] Graças ao meu avô e aos meus pais passei a vida no cinema. Ele começou por ter o Cinearte – que não era dele, alugava a sala –, depois construiu o Cinema Europa e, por fim, o Monumental, que foi a sua grande obra. Mas levou muito tempo a construir porque foi durante a II Guerra e não havia materiais de construção. Só foi inaugurado em 1951. Quando não tínhamos nada para fazer fora das aulas, eu e os meus primos íamos aos vários cinemas. Os de reprise eram os mais interessantes porque tinham sempre dois filmes, o que para nós era ótimo! O primeiro não prestava, mas nós no início achávamos que era tudo cinema! E depois o Monumental, claro.
Tem algum realizador preferido?
Na altura não pensava nisso. Achava piada às grandes produções que eles passavam. E via-as para aí umas dez vezes! Desde o “Ben Hur” ao “Dia Mais longo”, passando pelo “West Side Story”, “Doutor Jivago” ou “My Fair Lady”, apesar de não gostar muito de cinema musical. Depois comecei a ver cinema de autor no Império e no Monumental, nas chamadas ‘sessões de estúdio’, que passavam ciclos de cinema por temas, normalmente ao fim da tarde. Vi o Bergman todo, o Visconti… adorava sobretudo o cinema italiano, o francês foi mais a partir da Nouvelle Vague. Mas confesso que o italiano sempre me marcou muito, mesmo o neorrealista.
Como reagiu quando percebeu que os filmes eram censurados?
Tenho de dizer que a censura é uma coisa profundamente revoltante! Houve duas coisas que me marcaram e me ‘fizeram’ como pessoa. Por um lado, nunca entendi o racismo, mas lia coisas sobre o racismo e, por isso, diria que a primeira coisa que eu fui foi antirracista. E, de um ponto de vista cultural, fui antiditatorial, porque achava inacreditável não se poder ler determinados livros e ter de ver filmes que estavam cortados.
Chegou a ver algum antes de ser ‘cortado’?
Há uma história absolutamente extraordinária! Um tio meu, que era médico, também era censor e deputado na Assembleia Nacional, ou seja, do regime. Era irmão da minha avó e era casado com a tia Zezinha, a quem dizia para convidar pessoas para ver em os filmes antes de serem ‘cortados’. Para mim, isto define o regime. E a minha mãe, que era uma mulher inteligente, um dia disse à tia Zezinha: “Mas, se o tio Américo vai cortar o filme, é porque nós não o devíamos ver”. E a tia respondeu: “Mas por nós respondemos nós”. Ou seja, o povo não podia ver, mas ‘nós’ até podíamos.
Lembra-se de algum ‘corte’ em particular? Que idade tinha?
Teria uns 12 anos. Eram critérios políticos, como é evidente, mas vou dar-lhe um exemplo concreto. No filme do Chaplin “Um Rei em Nova Iorque”, a dada altura há um miúdo que diz que o pai está preso. Não me lembro em que circunstância, mas recordo-me que lhe perguntam porquê e o rapaz diz: “My father is a comunist” [“o meu pai é comunista”]. O filme é sobre o macartismo, nos EUA, mas eles nem se davam ao trabalho de cortar certas partes. Como as pessoas não sabiam inglês punham na legenda “o meu pai está preso porque é ladrão”. E aquilo passava! Tudo o que era moral, entre aspas, era cortado. Não havia cenas de nus nem beijos na boca, que horror, isso era coisa que não existia! [risos] No fundo era cortado porque não se podia traduzir.
E notava-se, não é verdade?
Claro que se notava! De vez em quando ouvia-se ‘tuc’ e as pessoas na sala faziam ‘ah ah ah’… riam-se e, digamos, que era esse o seu protesto.
Conseguia infiltrar-se nessas sessões ou o seu tio só a deixava ver a versão “oficial”?
Eu não ia ver os filmes antes de serem cortados. Só num caso e já perguntei à minha mãe de que filme se tratava, mas ela não se lembra, em que eles foram ver uma projeção privada no Monumental e eu, por qualquer razão tinha ido com os meus pais, mas ainda era miúda e disseram-me: “Não podes ficar na sala. Vai lá para cima”. Eu conhecia o projecionista e fiquei na cabina com ele. Curiosamente, vi esse filme na televisão há pouco tempo, e agora já sei qual é: “L’Armée des Ombres” (1969). É sobre a resistência francesa, com a Simone Signoret…
Não fez parte da Resistência, mas aderiu a um movimento de extrema-esquerda quando terminou o Liceu Francês. Informou a família da sua opção política?
Não, não disse nada, e fui para a universidade na Suíça – como menina ‘bem comportada’ – estudar Literaturas Comparadas. Claro que não estudei praticamente nada, porque encontrei um meio estudantil em efervescência, ainda no rescaldo do Maio de 68. Cheguei lá em outubro desse ano e meti-me na política. Os meus amigos eram todos suíços, não havia portugueses em Zurique, onde eu estava.
Quanto tempo esteve na Suíça?
Um ano e meio a fingir que estudava. Ia às aulas, mas exames não fiz nenhum. Como não gostava daquilo e podia apanhar-se avião e fazer escala noutros países – era assim que se conheciam outros sítios na altura –, comprei uma viagem para Genebra que parava em Paris e, claro, fiquei lá. Vivi em casa de uma amiga de infância nos primeiros tempos, mas nessa altura já era para me envolver na luta contra a ditadura. Digamos que fui voluntariamente recrutada para uma dessas organizações, primeiro como simpatizante e depois como militante. Mas como podia vir para Portugal porque estava legal – os que lá estavam eram todos exilados ou desertores –, disseram-me para vir para cá fazer trabalho político. E foi isso que eu fiz: desisti dos estudos. Achava que não valia a pena estudar porque era colaborar com o Capitalismo… Um disparate completo! [risos]
Era libertária?
A minha geração é, em parte filha da guerra, em parte filha do Maio de 68. No meio estudantil, em toda a Europa, vivia-se um certo sectarismo. Já não havia a tal unidade inicial. Mas eu era muito libertária… comecei por ser anarquista – a bandeira preta é que me interessava –, mas depois o que é que se fazia com o anarquismo? [sorriso] Foi aí que fui recrutada para a ‘bandeira vermelha’, digamos. O Rui Cardina, um historiador de Coimbra que é da minha geração, tem um trabalho muito interessante sobre o movimento estudantil de 69 [em Portugal], em que mostra muito a contradição que todos nós vivemos entre, por um lado, o dogmatismo, estalinismo e maoismo, e, por outro, do ponto de vista cultural, o libertarismo, que conviveram. Ora, o meu herói na altura era o Boris Vian! [risos] Não era propriamente uma referência política! E sou filha do surrealismo, que não tem nada a ver com a arte revolucionária maoista, do destacamento do ballet feminino e tudo isso. No fundo, havia uma grande ‘salsada’ na nossa cabeça.
Afastou-se em 1978 e decidiu que não voltaria à política. Como geriu essa nova etapa de vida?
Demorei algum tempo numa passagem pelo deserto, e acho que fiz bem. Houve todo um processo, fiquei isolada e deprimida, mas foi melhor assim. Ainda hoje há quem diga “mas o maoismo não tinha só coisas erradas”. Acho que se deve pôr completamente de parte o maoismo! Admito que em ditadura não se tivesse acesso a muita informação, mas em França já se conheciam muitas das consequências da Revolução Cultural, contadas por pessoas que a tinham vivido, e não se queria ver esse lado. Durante muito tempo não quis ler as críticas, depois obriguei-me a fazer isso. Mas sei de pessoas que ainda hoje não conseguem ver isso e eu digo: “Fazes muito mal, porque não podes dizer que havia aspetos menos maus!” Todos os que acreditámos nisso devemos colocar-nos ao serviço da ‘condenação’. Não renegar, porque não podemos, mas admitir que ‘defendemos o indefensável’.
À distância valeu a pena?
Tive uma fase de arrependimento e não conheço ninguém que não tenha tido. No meu caso, saí em 78 porque queria muito ser jornalista! [risos] Já tinha trabalhado em dois jornais, sobretudo na Voz do Povo, que era da UDP, e quando saí era lá que estava.
Foi difícil sair e ‘começar de novo’?
Foi muito difícil, mas não saí sozinha. A maior parte do grupo d’ A Voz do Povo quis sair, e o mais engraçado é que todos eles se tornaram jornalistas: o José Manuel Fernandes, o [José] Espada, o Nuno Pacheco, eu, um brasileiro que depois foi para o Expresso… Éramos os burgueses, claro, os intelectuais, os jornalistas, mas não mantive contacto com eles nem com os outros. Fiquei completamente só.
Mas ficou-lhe a ‘veia’ de jornalista?
Sim, tentei ser jornalista, porque era um período em que ainda não havia cursos. Era complicado e eu vinha de um jornal, “A Voz do Povo”, que não era propriamente o melhor currículo… [risos] Era secretária de redação e ficou-me o vício dos recortes de imprensa.
Pelo que sei também trabalhou na livraria Buchholz. Em que altura foi isso?
Como disse não havia cursos e tentei ser jornalista no Diário de Lisboa, mas só tinha o Baccalauréat, que correspondia ao 11º ano. Tinha de fazer um ano e não me apetecia nada voltar para o liceu, já tinha 28 anos! Mas entretanto, comecei a trabalhar como editora na Centelha e depois na Barraca [grupo de teatro], fiz o exame ad-hoc e tirei o curso. Vou para a Buchholz já licenciada e foi assim que arranjei emprego. De outra maneira não entrava lá! [risos] E foi nessa altura que voltei à universidade para fazer o mestrado em História Contemporânea.
E doutorou-se em História Institucional e Política Contemporânea.
Sempre adorei História e escolhi a contemporânea, a partir da Revolução Francesa, porque tive um excelente professor de História – que era muito giro também –, que não quis fazer o serviço militar. Como na altura [guerra da Argélia] podiam escolher ir dar aulas para o estrangeiro, ele veio para Lisboa, para o Liceu Francês, dar aulas de História. Ficou-me o ‘bichinho’ e quando estive em Paris a trabalhar numa fábrica sempre que podia ia ler livros para as bibliotecas, sobretudo estudar a história da Resistência francesa, e muitas vezes ia à biblioteca do Partido Comunista francês. Muitos até pensavam que eu era comunista, mas não, era de extrema-esquerda. Tinham e têm uma excelente biblioteca – ainda hoje os investigadores a consultam.
Como investigadora, e cidadã, diria que o mundo está em mudança?
Estamos num turning point, ou seja, há alguns anos que estamos a viver uma mudança e não sabemos para onde vai. A mim nunca me tinha acontecido isso. O Maio de 68 foi uma mudança, é verdade, o 25 de Abril foi outra grande mudança, mas digamos que eram moldadas por algo que nós conhecíamos, ideologicamente. Agora não sabemos muito bem por onde vai e, além do mais, tem fenómenos completamente novos. Já não sou muito nova, por isso também já não tenho a facilidade de perceber logo o ‘novo’, mas percebi muito rapidamente a questão do Trump. Tive várias discussões e havia pessoas que diziam: “ele não só não ganha, como não tem importância nenhuma”. Mas eu apercebi-me muito antes que aquilo era qualquer coisa de ‘novo’. O caso da Le Pen, por exemplo, não é nada de novo. A diferença é que ela se desenvencilhou de algumas coisas do pai, como o antissemitismo. Depois tem um discurso – sabendo que nós não gostamos propriamente do que os muçulmanos defendem para as mulheres – em que faz uma amálgama entre o Islão e o Daesh.
Falávamos de novos fenómenos…
Já verifico há muito tempo que a social-democracia, o socialismo, cujas ideias mais reformistas – e com o tempo tornei-me mais reformista –, sobretudo com a Terceira Via, foi um perfeito falhanço. Foi uma desgraça que aconteceu à social-democracia e penso que está a destruí-la. Basta pensarmos no que aconteceu nas eleições holandesas, com a ‘pasokização’ do partido trabalhista. O que eu acho muito bem, porque têm de aparecer novas soluções. Aliás, em Portugal, apoio a geringonça. [risos] O curioso é que Portugal até serve de exemplo para algumas pessoas que vêm cá ver – “afinal, como é que eles conseguiram?”. É um case study. Estive recentemente com um jornalista francês da [revista] Le Point, uma publicação mais à direita, e ele dizia: “Portugal é um país absolutamente extraordinário!” Ele tem a mesma ideia que eu. Hoje em dia a clivagem não é tanto entre classes, ricos e pobres – embora haja ricos e pobres –, e sim entre nacionalistas e cosmopolitas. Essa clivagem é muito importante e eu partilho dessa ideia. Ele veio cá fazer uma reportagem, falou comigo e com outras pessoas para saber por que razão Portugal não tem nenhum populista de extrema-direita. O curioso é que isso já está a ser estudado!
E já tem uma resposta para essa questão?
Tenho as minhas respostas, enquanto historiadora, porque há aspetos da História que permitem isso. E há um lado que eu só tenho pensado ultimamente, centrado num período mais recente, nos anos 60. Um colega meu, Victor Pereira [historiador luso-francês], tem um excelente livro, baseado na sua na tese de doutoramento, sobre a emigração, ou seja, sobre os pais. Ele diz que a emigração foi uma espécie de democratização e europeização ‘por baixo’ em Portugal. Eu não dava tanta importância à emigração e passei a ver as coisas de outra forma depois de ler o livro dele. De facto, foi muita gente embora e que voltou, pelo menos nas férias, e o ‘orgulhosamente sós’, do Salazar, foi contrariado pela emigração. Por outro lado, também a guerra colonial teve o seu papel. É verdade que os jovens saem do país em circunstâncias específicas, mas contactam com outras pessoas e culturas. Politicamente, se calhar, podemos agradecer ao Salazar – com muitas aspas – o facto de ele ter eliminado a extrema-direita direita portuguesa, fascista pura e dura, que se tentou organizar em torno do Rolão Preto.
A nossa Constituição, aliás, proíbe a existência de partidos de extrema-direita.
Na nossa agora, mas estou a falar do Salazar. O mais importante, parece-me, é que Salazar, logo em 1934, deu cabo do movimento nacional-sindicalista do Rolão Preto, que era um movimento fascista, que depois se torna num oposicionista mais republicano e menos de extrema-direita, mas criticava o regime pela direita. Salazar percebeu e não os queria cá por terem algumas simpatias com o nacionalismo italiano. E isso foi muito importante, porque o fascismo puro e duro, não mesclado pela igreja católica – e atenção que a ditadura de Salazar foi terrível, até porque se prolongou por muitos anos e teve uma influência muito grande na educação através da censura – não tinha a componente violenta do fascismo, isto na metrópole. Por outro lado, a forma como a transição para a democracia se deu em Portugal. Foi o único país na Europa que fez uma rutura. De um dia para o outro tínhamos um novo regime. E mais: os opositores do antigo regime fizeram tudo com os militares de Abril para não voltar o antigo regime, para o demonizar. Portanto, nem a direita portuguesa se reclama do antes do 25 de Abril.
Fazendo a ponte com o presente e sabendo que é uma europeísta, acha que o projeto europeu está ferido?
Sou europeísta, mas defendo a Europa dos direitos sociais, uma Europa política… Por isso, tenho muita pena que isso esteja a ser posto em causa. Da Holanda não vieram problemas, mas preocupa-me muito o que pode acontecer em França: se a França sair, a Europa acaba. A Inglaterra já saiu… Mas devo dizer que, em relação à França, estou muito pessimista porque tem uma tradição de direita antissemita, racista, muito forte, desde o século XIX. Para não falar no facto de não terem resolvido a questão da guerra da Argélia. Os chamados ‘retornados’ já contavam com o falhanço político dos pieds-noirs em França. Ainda hoje, os filhos e netos dos pieds-noirs são totalmente a favor da Marine Le Pen. Mas conheço pessoas que dizem que votaram Fillon [na primeira volta] por não serem capazes de votar em Le Pen, mas temos que ter em conta que haverá muito mais gente que não admite fazê-lo, mas que depois vota na Frente Nacional. Mais. Marine Le Pen já chegou ao ponto de ter um discurso feminista – embora diga que não é feminista –, em que afirma: “eu sou a defensora das mulheres, quero que as mulheres francesas possam andar na rua a passear livremente”. É um discurso que também cativa eleitorado e que aproveita as falhas na integração… A guetização é um barril de pólvora e a França não tem sabido lidar com isso.
Considera-se uma pessoa otimista ou pessimista?
Acho que sou mais optimista que pessimista. Mas também sou muito realista. Isto não significa que sou pessimista relativamente ao mundo, mas, realisticamente, tenho que verificar que o mundo está a atravessar uma fase péssima e perigosíssima. Apesar disso, sinto-me mais feliz, de certa forma. Recentemente estive num debate em que perguntaram aos convidados se estávamos ‘passados’ com o Trump. O Bernardo Pires de Lima respondeu que não e explicou: “Estou radiante. Pela primeira vez estou a discutir política a sério e estou a ver que isso pode ter consequências”. E eu concordei e disse-lhe: “Nós que não temos a mesma formação nem somos da mesma geração ou sensibilidade política estamos completamente de acordo, e falámos imenso de política e esse aspeto é muito bom!”
É preciso haver um Trump para termos uma espécie de ‘antídoto mental’?
Sim, há cada vez mais jovens norte-americanos que procuram ONG para saber como podem ajudar nas associações de emigrantes, de mulheres… E até advogados, que foram para os aeroportos dar apoio a quem não podia entrar nos EUA [na sequência do decreto presidencial que proibia a entrada de cidadãos de sete países muçulmanos]. Ou seja, há uma resistência que abrange inclusive as novas gerações e isso é muito importante. Tal como o facto de o sistema judicial estar a funcionar – o americano, não me refiro ao português! [risos] Por ora, pelo menos. Aliás, não é por acaso que o Trump está a atingir o judicial e a imprensa, que agora está a vender jornais de uma maneira incrível. Ele vai continuar a afastar pessoas do judicial, mas por enquanto ainda está a utilizar a democracia contra a democracia. O grande problema é quando a democracia – os ‘checks and balances’ – deixar de funcionar, mas é um processo fascinante de observar! Por isso me queixo há já algum tempo. Estão sempre a convidar-me para conferências e eu digo que sim, que quero participar, mas que sejam conferências com gente mais nova e não da minha geração. Porque somos nós a ouvirmo-nos, apenas isso! [risos]
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