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‘Como conheci a Mary Anne’ e outras histórias de um senhor diácono

Vasco d’Avillez é um manancial de histórias, contadas de forma superior. Viagens de vida de um dos maiores conhecedores de vinhos do País, que vão desde o encontro ‘celestial’ com a enfermeira que é a sua esposa até às conversas no pátio do colégio com o seu amigo Manuel, atual Cardeal Patriarca de Lisboa.
Cristina Bernardo
22 Dezembro 2017, 09h55

Quem tem o privilégio de o conhecer, sabe que estar com Vasco d’Avillez é sinónimo de aprendizagem contínua e sã convivialidade, alimentadas por histórias deliciosas. Daí até uma grande amizade, é uma questão de tempo e sabedoria, que torna tudo mais simples e reconfortante. É assim que Vasco d’Avillez, de uma forma simples e reconfortante, encara o fim de 50 anos dedicados de forma executiva ao vinho, com o final de mandato à frente da CVR Lisboa aprazado para março próximo, e a sua dedicação mais a tempo inteiro no cargo de diácono, em que foi ordenado a 2 de julho, pelo seu amigo Manuel Clemente, aliás, Cardeal Patriarca de Lisboa.
“Aos 16 anos, tinha de fazer o 6º ou 7º ano do Liceu e a minha mãe disse-me: ‘Você não se tem dedicado muito. É dos mais velhos dos rapazes, tem de dar o exemplo, tem de se aplicar. Vou coloca-lo no Colégio São João de Brito’. Ao que eu respondi: ‘Obrigado, mãe. Vou-me aplicar, vou tentar ser responsável”, é assim que Vasco d’Avillez começa uma das suas saborosas histórias para explicar como chegou a diácono. Prossigamos: “Como tinha asma, não podia, não gostava, ainda hoje não gosto, de jogar futebol. No colégio, havia um outro aluno, católico praticante como eu, filósofo, com, que eu passei a conversar no recreio. Ao fim de umas semanas, disse à minha mãe que tinha um amigo novo. Ela perguntou-me o nome mas eu não lhe soube responder. Ao fim de várias conversas, captei o nome dele, Manuel Clemente, de Torres Vedras, de uma povoação chamada Feliteira. Disse à minha mãe e ela aconselhou-me: ‘Não o perca de vista’”.

E assim foi. “Acabámos o colégio, fomos para a universidade. Ele sempre me disse que eu era necessário para dar o exemplo. Um padre não tem conhecimento para falar às pessoas sobre planeamento familiar”, explica Vasco d’Avillez. “E ao fim de várias décadas de amizade, convenceu-me. Assumi o cargo de diácono e vou seguir essa minha orientação com mais tempo a partir do momento em que abandonar a presidência da CVR Lisboa, em março do próximo ano. O Manuel disse-me apenas: ‘Continua a falar desassombradamente, mas com muito cuidado, tens que te treinar. Vais fazer um curso’”.

O curso acabou no ano passado a 30 de junho, Vasco d’Avillez foi ordenado diácono a 2 de julho, e pelo seu amigo, agora D. Manuel Clemente. “E hoje posso fazer casamentos, baptizados, exéquias, acima de tudo, ajudar os outros. No final de março, vou reformar-me. Vou passar a dedicar a minha vida à paróquia de Sintra, onde vivo, juntamente com o prior Armindo Reis”, garante Vasco d’Avillez.

À paróquia e à sua cara-metade, com quem partilha três filhos e 14 netos. “Sabe como é que eu conheci a Mary Anne?”, pergunta-me Vasco d’Avillez a meio de um almoço em que não parou de me surpreender, por decidir partilhar, com naturalidade e desprendimento, momentos de grande intimidade. Perante a minha natural negativa, passou a descrever mais uma bela história de vida: “aos meus 12, 13 anos, estava em casa com os meus pais e os meus irmãos e a dada altura disse que queria casar”.

“Todos ficaram estupefactos tendo em conta a idade que tinha. ‘Claro que vou casar, todos casam, menos os padres’, respondi”. Perante tal assertividade, Vasco foi logo novamente questionado com outra grande dúvida essencial: ‘com quem vai casar?’ “Com uma inglesa”, respondeu, de pronto. ‘E como vai conseguir isso?’, perguntaram-lhe numa rodada seguinte. Terceira questão resolvida a preceito: “Nosso Senhor vai mandar-ma”…

Pelo meio, Vasco d’ Avillez viveu a sua adolescência. Em particular com o gosto pelas motos. Comprou uma Triumph. A mãe desaprovou a medida e chamou-lhe a atenção. Numa família de dez irmãos, sendo o mais velho dos varões, pensava que Vasco estava a dar um péssimo exemplo à restante prole masculina da família. Ouviu, mas continuou nas suas acelerações motorizadas, uma das suas paixões. Com cerca de 22 anos, a 10 de junho de 1971, teve um acidente grave. Partiu as clavículas, teve grandes dificuldades em respirar, a moto passou-lhe por cima, doía-lhe também uma perna. Estava quase inconsciente quando os bombeiros chegaram. Vendo a sua elevada estatura, que ainda hoje não desmente, mais a sua tez clara, face ponteada de sardas, cabelo alourado, sem poder falar, logo concluíram: “com este corpanzil, o gajo é americano, não vai entender nada, vamos mas é levá-lo para o Hospital da Cruz Vermelha, que tem lá uma enfermeira inglesa”.

Dito e feito. Ao fim de vários dias de difícil convalescença, Vasco acorda e tem uma visão. “How are you?”, pergunta-lhe a enfermeira. “Vi uma cara linda e pensei: morri e estou no céu”, reagiu Vasco d’Avillez. Quando percebe que era português, a enfermeira explica-lhe onde ele está. Depois da recuperação, Vasco vai para casa e depois convida-a para jantar, onde pede a Mary Anne namoro. Ela aceita. “Começámos a namorar a 3 de outubro de 1971. A 5 de agosto de 1972, casei-me”, pormenoriza Vasco d’Avillez. Um casamento que perdura, sustentado em filhos e netos em quantidade, como é hábito da família.

“Ainda hoje temos uma moto, uma moto russa Dnepr, mas com motor adaptado, BMW, onde eu vou à missa com a minha mulher ao domingo”, orgulha-se Vasco d’Avillez. Uma paixão leva à outra e quando as duas se podem juntar…

“Em relação a oportunidades, tenho agarrado algumas e não tenho agarrado outras, mas penso que tenho agarrado as mais certas. Penso que essa é um bênção enorme”, pondera Vasco d’Avillez quando lhe solicito um balanço da sua vida de múltiplos pontos de interesse. E uma dica para todos nós, para o futuro: “A gente envelhece, mas não pode parar nunca. Vou fazer 70 anos em março. Entre uma velocidade a todo o gás e estar parado há todo um mundo de estágios. Ainda há cinco ou seis domingos celebrava missa no Linhó e li o Evangelho. Expliquei uma passagem em que se diz que diz que se plantou a uva, mas que só deu agraço. Isso deriva de haver pouco solo, solos pobres, o que origina uvas meirins. É o agraço, que deu o nome ao Sobral de Monte Agraço”, esclarece o presidente da CVR Lisboa. Vasco d’Avillez nota: “Depois, chamaram-me a atenção: o Evangelho de hoje foi todo sobre vinhateiros. E depois eu pensei: em tudo, podemos por ao serviço dos outros o que sabemos”.

Face ao repto de relembrar as memórias pessoais mais agradáveis, Vasco d’Avillez não hesita: “o engenheiro Manuel vieira foi das pessoas que recordo com mais agradecimento: trabalhei com ele no início da minha carreira. Recordo que ele me dizia sempre: ‘Não te preocupes demasiado. Portugal tem seis vinhos bons, um é o Barca Velha’. Depois, havia mais cinco que ele nunca me disse”, adianta Vasco d’Avillez. Talvez porque mudassem de ano para ano. Felizmente, as coisas mudaram muito em Portugal nos últimos anos no sector dos vinhos. “Hoje, não me chegam todos os dias do ano para beber todos os vinhos bons, diferentes, que há em Portugal”, sublinha.

“Depois tenho de recordar aqui, o António Francisco Avillez, meu primo direito, com 85 anos de idade, uma grande figura e cérebro por trás da Internacional Vinhos, da José Maria da Fonseca, e mais tarde, da JP Vinhos, da Quinta da Bacalhôa, de Joe Berardo. Aliás, há uma história em que Joe Berardo se vira para o meu primo António Francisco e lhe diz ‘Grandes homens tem Portugal’, referindo-se ao meu primo e a ele próprio”, revela Vasco.

E, por fim, a cereja no topo do bolo. “Depois, recordo uma história de ternura, ocorrida nos anos 70. Tínhamos 110 pessoas a trabalhar na Internacional Vinhos, quase todas com 22 anos ou menos. Um dos meus colegas era pintor na linha de manutenção e era surdo-mudo. Ao fim de uns tempos, cruzou-se com uma outra rapariga, colega da linha de engarrafamento, também surda-muda. Casaram-se e tiveram um bébé. Passados uns meses, a nossa colega passou a chegar atrasada, a faltar ao serviço. E andavam os dois tristes. Até que lhes perguntámos o que se passava”.

E o casal explicou que tinham de ficar acordados toda a noite porque, como eram surdos-mudos, não sabiam quando o bébé chorava. “Então, eu decidi mandar uma carta para o nosso sócio estrangeiro da altura, a Heublein, sócia da José Maria da Fonseca na Lancer’s, para Hartford, Connecticut. Com os tempos do correio da altura, ao fim de 15 dias, recebi a resposta, a dizer que nos Estados Unidos esse problema já se tinha resolvido. Junto com a carta vinha um aparelho que se ligava ao pé da mãe ou do pai e com um transmissor colocado ao pé do bébé, que sempre que ele chorava, emitia uma pequena descarga eléctrica nos progenitores. Nove meses depois de receberem este aparelho, tiveram outro bébé”.

“Por isso, é que eu penso que o melhor desta vida é a maneira que a gente tem de inesperadamente podermos passar de forma positiva pela vida dos outros”. Parece simples…

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