Enquanto uma elite preguiçosa usufrui do lazer, os desprivilegiados de uma sociedade mendigam pelas esmolas do poder. Afinal, todos temos o direito à preguiça (Lafargue, 1880) mas quando a preguiça é um fim em si mesmo, arriscamo-nos a tolerar os determinismos do poder. E como na gravura de Francisco Goya da série “Caprichos” (1799):“o sono da razão produz monstros”.
Embora não sendo consensuais Friedrich Hayek e Dalberg-Acton (distintos ideologicamente do meu pensamento), notamos pontos em comum entre estes dois pensadores, nomeadamente na denúncia e intransigência contra qualquer totalitarismo. Pronuncio-me neste artigo sobre aqueles que fazendo uso das democracias liberais perpetuam a hegemonia de velhas elites e sobre a esperança depositada naqueles que reconhecem na Educação um instrumento de emancipação social e política que permite a construção de um futuro melhor.
Dalberg-Acton (1887) terá escrito que “o poder absoluto corrompe de maneira absoluta” e que “a liberdade não é um meio para atingir um fim político mais elevado. Ela é o fim político mais elevado”. Para Hayek (2010), “(…)o controle totalitário da opinião também se estende, entretanto, a assuntos que a princípio não parecem ter importância política (…)”. “É bastante característico do espírito do(s) totalitarismo(s) condenar toda atividade humana exercida por prazer, sem propósitos ulteriores. A ciência pela ciência, a arte pela arte, são igualmente abomináveis” (Hayek, 2010) ao dirigismo político, pois pressupõem a rutura com a hegemonia dominante. “A necessidade de defender a todo custo as ideias em nome das quais se exigem das pessoas sacrifícios constantes (…)”, refere o mesmo autor.
“O desejo de impor ao povo uma (qualquer) ideologia considerada salutar, para ele não é um fato novo” (Hayek, 2010), antes, as elites procuram esconder que as suas legítimas ambições, tantas vezes mascaram a modelação quase escultural de “opiniões e gostos das massas que são moldados pela propaganda, pela publicidade” (Hayek, 2010) e por uma falsa construção identitária e moral de uma elite, dita superior e meritocrática, mas que só exibe um falso pudor (porque, sobre os méritos, estamos falados).
Também o Papa Francisco na sua Encíclica Fratelli Tutti (2020), alerta que «(…) a política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum, limitando-se a receitas efémeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro» (n. 15). Theodor W. Adorno (1995) também refere que, as “pessoas que se enquadram cegamente no coletivo fazem de si mesmas meros objetos materiais, anulando-se como sujeitos dotados de motivação própria”. Francisco (2020) denuncia que, «a melhor maneira de dominar e avançar sem entraves é semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante, mesmo disfarçada por detrás da defesa de alguns valores. Usa-se hoje, em muitos países, o mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar. (…) Nega-se aos outros o direito de pensar diferente de uma maioria “(…) e para isso, recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los (…)».
Uma democracia moderna tem de, imprescindivelmente, permanecer emancipada do caciquismo e do paroquialismo institucional e partidário, sob o risco de entronizar novos regimes totalitários. Em Portugal, as reformas político-administrativas implementadas desde a instituição do Liberalismo no século XIX (Catroga, 2013; Marques, 2014), determinaram o perfil do eleitor e do eleito, subjacentes a uma determinada organização do território. Assim, era o próprio sistema instalado a condicionar ou controlar as vitórias eleitorais, que infelizmente, tantas vezes foram feitas à custa da perpetuação dos múltiplos interesses da esfera local e da viciação das “regras do jogo democrático”. Hoje, como ontem, recuperam-se os “barões”, os “senhores regedores”, os “morgados” e instituem-se as novas “colonias”.
Charme e sedução revestem o cerimonial do beija-mão, a visitação da corte, o desfile público, os atos vassálicos. Os ritos medievo-feudais, que foram recuperados pelos regimes totalitários, são hoje usados em democracia para a criação dos fetiches contemporâneos, para a mitificação da verdade e de uma determinada ideia de poder em torno de uma liderança em (re)ascensão. “Os espectadores, fascinados, atribuem à imagem uma autonomia que ela não possui” (Latour, 2002), vinculada aos interesses que a sustentam e a entronizam.
Rabelais sabia-o quão bem a paródia transformara-se no real e os “Baise-mon-cul” e “Baisecul”, mudaram as cortinas no interior dos seus gabinetes. “Eles deixam de ocupar o lugar superior que ocupavam fisicamente, assim como também perderam a função de adorno” (Dantas, Lacerda e Pontes, 2015). As aparentes perdas de trono, sempre almejam maquiavelicamente entronizações futuras. Bakhtin (2013), citado por Dantas, Lacerda e Pontes (2015) refere que, “(…) no bufão, todos os atributos reais estão subvertidos, intervertidos, o alto no lugar do baixo: o bufão é o rei do mundo às avessas”.
A entronização dos poderes democráticos retoma o cerimonial barroco, voyeurista, onde poder e oposição cumprem o seu papel para o deboche da corte. Walter Benjamin, na sua formulação do conceito de Trauerspiel (1928), a propósito da construção estética e da crítica de arte ao barroco, permite-nos transpor para a esfera pública a natureza conflitiva da liberdade e da verdade: entre o “teor material do (drama) barroco” e a “alegoria como seu teor de verdade” (Amary, 2019).
Relendo Latour (2002), na sua “Reflexão Sobre o Culto Moderno dos Deuses Fe(i)tiches”, podemos compreender a construção da mitificação da verdade – através dos novos “fetiches” – como uma metáfora para a análise do estado da política contemporânea. A impossibilidade da manutenção de uma distância entre os factos e os fetiches, entre o real e o ficcional, torna (quase) impossível a tarefa de emancipação histórica. A imagem, a narrativa construída em torno de um ídolo e as práticas discursivas no espaço público mediático, tornaram-se novos “totens” e “fetiches” contemporâneos. A hegemonia do poder encontrou novos “fetiches” e procurou legitimá-los ou derrubá-los, tornando a partidocracia instalada “fetiche” de si própria. “Derrubar (um qualquer) fetichismo equivaleria, portanto, à inversão (de um ciclo), a retificar a imagem e restituir a iniciativa ao seu verdadeiro mestre” (Latour, 2002).
Como refere Rocha (2019) a propósito da “contribuição de Adorno para a configuração de uma educação capaz de enfrentar os irracionalismos contemporâneos”, a falência da Cultura, um capitalismo cultural exacerbado com propensão à barbárie, são o reflexo de uma sociedade desumanizada, explicitada no adoecimento (ou na preguiça) da Democracia. Somente a Educação poderá ser eficaz de enfrentar e superar os novos desafios. Como refere Adorno (1995), “só é possível imaginar a verdadeira democracia como uma sociedade de emancipados”.
A Educação é um dos mais poderosos instrumentos de emancipação social, imprescindível para a construção do processo democrático e para o pleno usufruto da Democracia que queremos, representativa, mais justa, mais inclusiva e mais solidária.
Por agora, o real supera a ficção.
Referências:
Adorno, T. W. (1995). Educação e Emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra
Amary, M. (2019). A formação e a crítica de arte do barroco alemão. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo
Catroga, F. (2013). A geografia dos afectos pátrios. As reformas político-administrativas (sécs. XIX-XX). Coimbra: Almedina
Dalberg-Acton, J. (1887). “Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely in such manner that great men are almost always bad men.” Letter to Bishop Mandell Creighton. In Figgis, J. N. e Laurence, R. V (1907). Historical Essays and Studies, London: Macmillan
Dantas, A. V.; Lacerda, R. S.; Pontes, N. C. (2015). Rabelais, Dante e a interpretação figural na Idade Média. Miguilim. Revista Eletrônica do Netlli 4, (2), 04-14
Francisco (2020). Carta Encíclica Fratelli Tutti do Santo Padre Francisco sobre a Fraternidade e a Amizade Social. Libreria Editrice Vaticana.
Hayek, F. A. (2010). O caminho da servidão (6ª ed.). São Paulo: Instituto Ludwig von Mises.
Lafargue, P. (1880). Le Droit à la Paresse. In L’Égalité.
Latour, B. (2002). Reflexão Sobre o Culto Moderno dos Deuses Fe(i)tiches. Trad. Sandra Moreira. São Paulo: EDUSC
Marques, T. P. (2014). Fernando Catroga, A geografia dos afectos pátrios. As reformas político-administrativas (sécs. XIX-XX). Ler História 66. 179-182. https://doi.org/10.4000/lerhistoria.953
Rocha, C. J. (2019). Educação e emancipação na teoria crítica da sociedade de Theodor W. Adorno. Revista de Filosofia, 19 (2). Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. 194-217
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