Costuma ser frequente ler-se que é preciso ‘ouvir’ os cientistas. As suas vozes podem ter um papel transformador da sociedade, garantindo que o conhecimento é disseminado e apropriado, levando a que cada um de nós, mas também as organizações e os Governos possam fazer escolhas e tomar decisões mais informadas.
Num encontro, recentemente organizado pela Comissão Europeia, sobre aconselhamento científico em Portugal, debateram-se alguns dos principais desafios neste domínio. Por um lado, parecem existir diversos mecanismos, à semelhança do que ocorre noutros países, que poderiam proporcionar o aconselhamento científico, de modo sistemático, em temas de relevância nacional, desde conselhos consultivos, conselhos científicos, ordens e sociedades profissionais, associações e redes em domínios científicos e tecnológicos, entre outros. No entanto, tal como já salientado em contributos anteriores sobre o tema, a nomeação de um conselheiro científico independente, a nível governamental, não tem sido a opção de Portugal.
O papel do CNCTI e a proliferação de atores
O Conselho Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CNCTI) foi criado em fevereiro de 2021 como órgão consultivo, mas de nomeação política. O seu funcionamento pode, por isso, ficar ameaçado com os circunstancialismos próprios da vida e tempo políticos. Neste momento, em vésperas de um novo ciclo político, o CNCTI já endereçou ao Governo o seu “legacy paper”, com recomendações propostas pelos seus membros. Tal como sucedeu com o antecessor Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, não é de excluir a possibilidade da sua extinção. Essa descontinuidade está longe do que acontece em experiências mais consolidadas. Nesses casos, existem plataformas de funcionamento plurianual de estruturação da atividade de aconselhamento científico. Com vista a garantir independência, os órgãos desta natureza são acompanhados do registo público e gestão criteriosa dos conflitos de interesse dos seus membros, incluindo ligações a grupos empresariais, subsídios e incentivos públicos ou responsabilidades assumidas no âmbito de contratos estabelecidos com organizações nacionais ou estrangeiras. Existem códigos de conduta, o que também, salvo raras exceções, não acontece na generalidade destes órgãos em Portugal.
A proliferação de atores, na maior parte dos casos pequenas estruturas e sem equipas profissionais e dedicadas à execução sistemática destas atividades, em harmonização com boas práticas e inseridas nas principais redes internacionais, inviabiliza o desenvolvimento de capacidades que credibilizem a tomada de decisão baseada em ciência, nos mais diversos setores. Em intervenção pública, o Presidente do CNCTI indica que o conhecimento sólido, a multidisciplinaridade e um razoável consenso científico são as principais fontes para o aconselhamento político. Ir além destes Conselhos, de natureza temporária, como o tempo nos tem demonstrado, com uma ação cujo impacto na opinião pública é muito limitada, aviando algumas ‘encomendas’ a pedido, parece ser imperativo.
O exemplo da pandemia Covid 19, designado por alguns como um teste de stress, traz, no entanto, algumas pistas sobre a necessidade de robustecer a capacidade de aconselhamento, crescentemente escrutinada pela opinião pública. A elevada incerteza e o aumento de desafios transdisciplinares colocaram também em foco dois tipos de aconselhamento, recorrendo a recursos, competências e horizontes temporais também diferentes. Por um lado, o aconselhamento em situações de emergência, como por exemplo nas situações de ameaça à saúde pública, segurança, incêndios florestais, desastres ambientais, e, por outro lado, num cenário de médio-longo prazo, como atividade continuada, por exemplo de suporte à formulação ou avaliação de políticas públicas, de legislação ou regulamentação.
Resultados da análise sobre o estado do aconselhamento científico
A análise do estado do aconselhamento científico em Portugal realizada recentemente, no âmbito dos esforços do Joint Research Center, da Comissão Europeia, apresenta uma realidade multifacetada, caracterizada por elevada informalidade e ligações pessoais. Esta conclusão converge com os resultados de um inquérito realizado, pela Comissão Europeia, que, apesar do número limitado de respostas, fornece pistas sobre a situação portuguesa. Cerca de 87% dos inquiridos reconhece que o ecossistema de aconselhamento científico de suporte à decisão política é fragmentado, com falta de coordenação e de informação sobre as atividades de cada um dos atores. Também na perspetiva de 60% dos respondentes, os processos não apresentam um grau de formalização adequado, com mandatos e mecanismos institucionais transparentes. Em termos de obstáculos à tomada de decisão baseada em evidência, a maioria dos inquiridos confirma a falta de financiamento para as estruturas e atividades de aconselhamento científico.
Permeabilidade e transparência do ecossistema
O ecossistema de aconselhamento científico parece pouco permeável à entrada de novos atores com a agilidade que os desafios poderiam justificar. Mesmo no caso de estruturas já existentes, não se identificam mecanismos ou processos que possibilitem a participação de outras organizações (por exemplo, ONG ou consultoras), que não as originalmente envolvidas. No caso do CNCTI, e tendo presente os trabalhos desenvolvidos, a pedido do Governo, quanto ao PRR ou à produção de legislação e regulamentação em diversos domínios, ou mais recentemente das agendas mobilizadoras, seria importante conhecer os processos de trabalho e os resultados atingidos, com indicadores e métricas que possibilitem avaliar, de modo transparente, os efeitos da atividade deste Conselho.
Parece poder concluir-se que os processos de produção e utilização de conhecimento científico que sustentam o aconselhamento político não permitem, na generalidade dos casos, monitorizar as suas responsabilidades e garantir transparência.
Estes aspetos são também abordados por num artigo do Professor Corado Simões que destaca o paradoxo existente em Portugal. Por um lado, o reconhecimento generalizado, na classe política, de uma capacidade científica e tecnológica nacional, em vários domínios com excelência mundial, mas uma limitada e porventura parcial utilização dessa capacidade, por falta de transparência e critérios objetivos na seleção das entidades e peritos ‘ouvidos’.
Aquilo que nos separa de outros países situa-se menos na esfera conceptual sobre o papel do aconselhamento científico na política, inegavelmente demonstrado na pandemia, e mais no plano de operacionalização de práticas e mecanismos credíveis, transparentes e plurais. Através desses processos mais sistemáticos e abertos poderá ser atingida uma maior participação de especialistas e novas organizações bem como a aplicação de novos métodos, tecnologias e contributos multidisciplinares, dificilmente obtidos a partir apenas das disciplinas científicas tradicionalmente definidas.
A título de exemplo, a utilização de sistemas baseados em inteligência artificial (IA) pode refletir-se em benefícios, desde que seguidos critérios éticos como recomendado em orientações internacionais. Os efeitos desses sistemas, já sistematizados por diversos autores, abrangem vários setores da economia e da sociedade, estendendo-se também à governação. A identificação de riscos e cenários, o processamento de dados e o suporte à tomada de decisão, tanto do ponto de vista preditivo como de ação ágil ou de avaliação dos efeitos de medidas de política pública ilustram o potencial da utilização dessa família de tecnologias.
No entanto, as aplicações de IA de apoio ao aconselhamento político bem como as abordagens para a sua adoção no setor público, por exemplo em complementaridade com os mecanismos de aconselhamento existentes, têm ainda uma utilização muito limitada.
Mais do que pareceres avulsos, Portugal precisa de estruturar a sua abordagem ao desenvolvimento de políticas públicas informadas pela evidência científica, de que poderá resultar naturalmente uma rede organizada de instituições e especialistas-chave para aconselhamento científico, recorrendo a mecanismos que lhe permitam expandir a sua ação através do envolvimento de outros stakeholders.