“The Pornography of Death” (1955) da autoria de Geoffrey Gorer e “Essais sur l’histoire de la mort en Occident: du Moyen Âge à nos jours” (1974), da autoria de Philippe Ariès, são os títulos de dois estudos sobre a morte na sociedade moderna, que servem de mote para a reflexão e aprofundamento do tema, por parte de vários autores contemporâneos (Caldas, 2010; Foltyn, 2008; Lindstrom, 2013; Mota, 2017; Stratton, 2020; Tamura, 2006; Tercier, 2013). As várias perspetivas sobre o tema relacionam aspetos historiográficos, com a antropologia, a psicologia e a bioética.
De acordo com Tercier (2013), relendo Gorer (1955), a sociedade moderna deixou-se fascinar pela “emergência de imagens irrepreensivelmente gráficas e representações violentas da morte nos média”. Conforme Caldas (2010) refere, o reaparecimento da “mistura de erotismo e morte” na contemporaneidade é um produto resultante da literatura do século XVIII: a imagética de Marquis de Sade, foi reintroduzida pela cultura do entretenimento e pelos media, que exibem “a morte violenta na nossa vida diária” (Caldas, 2010).
Stratton (2020), revisitando Guy Debord – “The society of the spectacle” – e Jean Baudrillard – “Symbolic Exchange and Death” – constata que, “as redes sociais são permeadas pela morte”, talvez porque “as relações sociais são cada vez mais vividas como espetáculo” e simultaneamente, “a morte tornou-se cada vez mais separada da vida”.
Tercier (2013) refere que, a violência do impacto mediático da “representação da morte” nos espectadores, acentua uma distância emocional, substituída pelo entretenimento, que “enfraquece a sensibilidade dos espectadores em relação à violência interpessoal” na esfera real e às “profundas implicações da morte” no quotidiano (Tercier, 2013), nomeadamente na saúde mental. A representação do mórbido substitui-se à experiência traumática da representação da violência (Tercier, 2013).
A publicitação da morte, o crescente interesse público nas mortes de celebridades ou figuras públicas (Mota, 2017), a par do fascínio cinematográfico e noticioso pelas investigações forenses, pelo macabro e cadavérico (Foltyn, 2008; Lindstrom, 2013), levam ao questionamento do papel da arte e da comunicação social na construção acrítica das narrativas sobre a morte. Podemos por isso, talvez concordar que, “é o atual sistema de valores simbólicos em relação à morte que propicia o aparecimento massivo desse tipo de jornalismo”, deliberadamente sensacionalista (Caldas, 2010).
O voyeurismo televisivo da morte, primeiro sobre pandemia, e agora sobre a guerra, corrobora a ideia histórica, de que a instrumentalização das sociedades pelo medo, permite a manutenção de um qualquer sistema hegemónico. O caráter informativo das notícias foi substituído pelo propagandismo imediato e pelo sensacionalismo jornalístico (Caldas, 2010; Tamura, 2006), requeridos para a guerra de audiências, servindo, perigosamente, outros propósitos.
As “fake news”, a documentação do terror, a “espetacularização da morte” e as imagens panfletárias acentuam o propagandismo essencial à contínua expansão do “capitalismo da informação e da vigilância” (Zuboff, 2019). O perigo da manipulação do espaço mediático está na viciação da opinião pública em torno de uma visão acrítica dos factos apresentados (quaisquer que sejam), colhendo, irreversivelmente, impactos na saúde mental, e acentuando a insegurança e a fenomenologia do medo social, justificativo da assunção de novos ódios.
Mais de um centena de anos passados desde a Gripe Espanhola e do fim da 1ª Guerra Mundial, a narrativa visceral – no sentido de finitude – nunca foi tão disseminada. A “espetacularização da morte” num mundo hiper-globalizado, além de entronizar o relativismo no seio da sociedade contemporânea, dá palco aos novos totalitarismos, no ocidente e no oriente.
São também vários, os estudos que se debruçam sobre o impacto mediático da morte na saúde mental, concluindo que, a excessiva exposição às imagens e “narrativas da morte” – sobre a pandemia e a guerra – veiculadas nas redes sociais ou na imprensa, contribuem para o desenvolvimento ou acentuação da ansiedade, depressão, distúrbios comportamentais ou outros transtornos (Vasconcelos et al., 2020; Vieira & Granja, 2020), nomeadamente nas crianças.
De acordo com Vieira & Granja (2020) é “devido à patogenicidade do vírus, à taxa de contágio e à taxa de mortalidade da COVID-19”, que a saúde mental de indivíduos de diferentes grupos etários e estratos sociais pode ter sido afetada, alertando que, a respeito dos aspetos psicológicos, “o seu impacto é imediatamente evidente” (Vieira & Granja, 2020).
Exige-se por isso, a mensuração da responsabilidade social pelo excesso de violência exibida nas redes sociais, nos noticiários, no cinema e nos desenhos animados, uma vez que, pretere o papel pedagógico do ensino da paz.
Parafraseando a médica e educadora Maria Montessori – autora de “Peace and Education” (1932) – “todos falam de paz, mas ninguém educa para a paz. As pessoas educam para a competição e esse é o princípio de qualquer guerra. Quando educarmos para cooperarmos e sermos solidários uns com os outros, nesse dia estaremos educando para a paz”.
O perigo da excessiva exposição das crianças às “imagens da morte”, repetidas diariamente, ao longo dos últimos dois anos, denota a importância do papel dos psicólogos, docentes e encarregados de educação na abordagem pedagógica do tema junto dos públicos infantojuvenis na mitigação dos riscos associados à insegurança potenciada pela excessiva exposição ao tema.
Perante o atual contexto, de guerra e pandemia, cabe aos estados e à sociedade civil assegurar os cuidados de saúde e o acompanhamento psicológico, especialmente dirigido aos vários grupos sociais e profissionais mais vulneráveis e expostos a estas realidades, nomeadamente, profissionais de saúde (Nasser et al., 2021), militares, refugiados, crianças e suas famílias (Deyra, 2001).
O direito à saúde dos refugiados e a inviolabilidade do direito à saúde de feridos ou doentes, sem diferenciação de civis ou militares, independentemente da sua nacionalidade, é consagrado pelo Direito Internacional Humanitário – Artigo 6º da Convenção de Genebra (1864) e Artigos 8º, alínea a) e 10º do Primeiro Protocolo Adicional (1977) às Convenções de Genebra (1949) – relativo à proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais (Deyra, 2001).
A forte exposição das economias ocidentais à economia Russa (e à Chinesa) e a perda da independência energética, numa esfera de globalização dos mercados, são a demonstração da inevitabilidade do ocidente, procurar urgentemente a mitigação dos conflitos e o encontro de soluções duradouras para a paz que queremos.
“A crise da Europa” ameaça a estabilidade global, assombrando-a com o fantasma da “Guerra fria”, que ressurge (Pereira, 2014, 2016), passadas três décadas, no mundo contemporâneo. Pereira (2014), citando Ver, de Eve Conant (2014) destaca “a complexidade étnica, cultural e religiosa” subjacente à construção identitária das nacionalidades e da efetivação da soberania e coesão social e territorial.
O estado de guerra permanente da pós-revolução industrial, reflete a manutenção de um modelo hegemónio, que prioriza o poder e o lucro em detrimento dos processos de desenvolvimento social e humano, identitários, assentes na diversidade cultural, construtora da paz.
De acordo com Aleksandr Soljenítsin, Nobel da Literatura (1970), – autor não consensual, que narra a barbárie estatilinista e também denuncia o oligarquismo russo – aponta “O Erro do Ocidente”: a avaliação do estado de desenvolvimento das outras civilizações em função do grau a que estas se assemelham à cultura ocidental, apontando ainda, o “declínio da coragem”, subjacente ao fracasso do liberalismo e ao estado de decadência cultural.
Também, em concordância com o disposto no livro “The clash of civilizations and the remaking of world order” de Samuel Huntington (1996), podemos ler a crítica à globalização económica e da informação, que acentua as desigualdades e garante a perpetuação dos conflitos armados, uma vez que, corrobora modelos assentes na dominação e exploração.
Este “choque de civilizações” e a supressão das liberdades individuais, que a pandemia e a guerra veio acentuar, é usado, novamente, como instrumento para alimentar os discursos totalitários quer na Rússia, quer nos países do leste europeu.
A capacidade de renovação das nações (Diamond, 2019), dependerá da resposta dada às crises de liderança. A mudança de paradigma deverá estar assente na interculturalidade e no fortalecimento do diálogo, alicerçada nos laços de cooperação, que permitam mitigar as desigualdades económicas e sociais entre regiões e entre estados soberanos.
As guerras contemporâneas ocultam ou mascaram as persistentes tensões da “Guerra fria”, onde as superpotências (Pereira, 2016; Silva, 2002), herdeiras do “mundo bipolar”, apoiam cada uma das respetivas partes nos conflitos, aparentemente regionais. Veja-se: Ruanda (1990-1994); Somália (1986-1992, 2006-2009); Guerras dos Balcãs (1991-1995, 1998-2001); Sudão do Sul (1983-2005, 2013-2020, 2021); Síria (2011 até à atualidade) e Ucrânia (2014, 2022), entre outras.
As regiões auto-proclamadas independentes, a fragmentação do território, guerras-civis e posterior invasão dos territórios por estados periféricos, têm culminado em genocídios, etnocídios e crise de refugiados. A ampliação destas tensões militares, poderão perdurar durante décadas, em função do sistema de alianças das partes beligerantes.
As tentativas de estabilização política têm sido feitas em detrimento da soberania dos estados-nação e em favor da exploração dos solos, fragmentando os territórios tendo em conta os recursos naturais e o posicionamento geopolítico, preterindo as especificidades culturais, étnicas e geográficas.
A disputa do espaço político é histórica, os conflitos bélicos são justificados nos mesmos pretextos e nas mesmas ambições milenares, diferindo apenas nos protagonistas. Em concordância com o cientista político Jorge Vieira da Silva (2002): “O conceito de paz tem evoluído na história recente da humanidade. Paz não é mais a simples ausência da guerra ou a condição resultante do equilíbrio do poder entre as superpotências bélicas”.
O efetivo reconhecimento da história moderna, deve permitir-nos não repetir os erros do passado e ousar sonhar com um mundo de paz, onde a afirmação de uma qualquer soberania não esteja assente no sacrifício dos povos.
A condenação da invasão de um estado soberano é imprescindível para a manutenção da integridade territorial dos estados periféricos, contudo, parafraseando António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, “a resposta para a paz, nunca será a guerra, a solução terá de ser sempre política”.
A efetivação da paz, terá de resultar da desconstrução do “equilíbrio do poder entre as superpotências bélicas” e assentar na “cooperação entre os povos” (Silva, 2002) mitigando as desigualdades e “objetivando o fim da violência estrutural” (Silva, 2002), tendo em vista a implementação de um modelo de desenvolvimento sustentável, promotor da interculturalidade, da inclusão e coesão social.
Lembrando os escritos de Maria Montessori (1932), a efetivação da paz somente se concretizará através da Educação para o Amor.
Referências:
Ariès, P. (1974). Essais sur l’histoire de la mort en Occident: du Moyen Âge à nos jours. Editions Seuil
Caldas, Sandro. (2010). A pornografia da morte no jornalismo. Recanto das Letras.
https://www.recantodasletras.com.br/artigos/2072329
Deyra, M. (2001). Direito Internacional Humanitário. Lisboa: Procuradoria-Geral da República. ISBN 972-8707-00-2. https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/dih_michel_deyra.pdf
Diamond, J. (2019). Upheaval – Turning Points for Nations in Crisis. Allen Lane
Foltyn, J. L. (2008). The corpse in contemporary culture: Identifying, transacting, and recording the dead body in the twenty-first century. Mortality, 13 (2), 99-104. https://doi.org/10.1080/13576270801954351
Gorer, G. (1955). “The Pornography of Death”. In G. Gorer (ed.), Death, Grief, and Mourning. New York: Doubleday. 192–199
Huntington, S. (1996). The clash of civilizations and the remaking of world order. Simon & Schuster.
Lindstrom, L. (2013). “Geoffrey Gorer e Féral Benga, uma colaboração”. In História e Antropologia. (s.n.).
Montessori, M. (1932). Peace and Education. Nice: 2nd International Montessori Congress
Mota, J. M. (2017). A Morte na Imprensa. A evolução no tratamento mediático da morte de figuras públicas. Tese de doutoramento. Universidade de Coimbra. http://hdl.handle.net/10316/79566
Nasser, S., Mendes, G., Bressan, K., Ivatiuk, A., & Rodrigues, K. (2021). O impacto da morte em profissionais da saúde em contexto hospitalar. Revista PsicoFAE: Pluralidades em Saúde Mental, 9(2), 58-66. https://revistapsicofae.fae.edu/psico/article/view/281/193
Pereira, C. (2016). Fantasma da “Guerra Fria” assombra de novo a Europa. Revista de Ciências Militares, IV (2), 163-184
http://www.iesm.pt/cisdi/index.php/publicacoes/revista-de-ciencias-militares/edicoes
Pereira, C. (2014). Ucrânia: crónica de uma crise anunciada. Revista de Ciências Militares II (2). 337-359 http://hdl.handle.net/10400.26/36396
Silva, J. V. (2002). A verdadeira paz: desafio do Estado democrático. São Paulo em Perspectiva [online], 16 (2). https://doi.org/10.1590/S0102-88392002000200005
Stratton, J. (2020). Death and the Spectacle in Television and Social Media. Television & New Media 21 (1). 3-24. https://doi.org/10.1177/1527476418810547
Tamura, C. M. (2006). A “pornografia da morte” e os contos de Luiz Vilela. Dissertação (mestrado). Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem.
Tercier, J. (2013). The Pornography of Death. In Maes, H. (eds.) Pornographic Art and the Aesthetics of Pornography. London: Palgrave Macmillan. https://doi.org/10.1057/9781137367938_12
Vasconcelos, S. E., Dias, P. E. B., Bitencourt, H. K., de Carvalho, J. P. S. S., Quadros, E. de A. S., Viviani, M. F., Nunes, A. L. H., & Sampaio C. E. R. (2020). Impactos de uma pandemia na saúde mental: analisando o efeito causado pelo COVID-19. Revista Eletrônica Acervo Saúde, 12(12). https://doi.org/10.25248/reas.e5168.2020
Vieira, J.M.; Granja P. (2020). COVID-19: uma pandemia de saúde mental. Saúde & Tecnologia (24). 5-10. http://hdl.handle.net/10400.21/13208
Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism. The fight for a human future at the new frontier of power. Public Affairs Hachette Books Group.
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