[weglot_switcher]

Acerto de contas ou justiça? Crise intensifica conflito em Luanda e põe Lisboa em alerta

Investida de João Lourenço já chegou aos ativos de Isabel dos Santos em Angola. Analistas dizem que processo serve para ganhar popularidade, culpar o antecessor pela crise e fazer encaixe financeiro.
3 Janeiro 2020, 08h17

“Renovação e transformação na continuidade, melhorar o que está bem e corrigir o que está mal”. As palavras de João Lourenço na tomada de posse em agosto de 2017 convidavam a interpretações múltiplas. Depois de 38 anos de presidência de José Eduardo dos Santos, as perguntas sobre os planos do sucessor eram muitas.

Não demorou muito, no entanto, para perceber que corrigir o que estava mal passava por corrigir o peso que os filhos do antecessor tinham ganho na economia angolana. Passados menos de três meses, Isabel dos Santos foi exonerada da presidência da Sonangol e, no início de 2018, foi a vez de José Filomeno sair do fundo soberano e passar a arguido num caso de alegada burla por defraudação, tráfico de influência e branqueamento.

O golpe mais forte demorou mais tempo, foi desferido nos últimos dias de 2019 com o arresto das contas bancárias de participações de Isabel dos Santos em várias empresas angolanas. A decisão, pedida pelo Estado angolano, indica que está em causa a não devolução de um financiamento que a Sonangol fez à Exem – cujos beneficiários são a empresária e o marido Sindika Dokolo – numa sociedade controlada pelo Grupo Amorim e dessa forma, indiretamente, na portuguesa Galp Energia.

A empresária diz que a acusação é falsa, que não foi dada a oportunidade de se defender e que o processo é um ajuste de contas, politicamente motivado, e que serve para mascarar o “fracasso” da gestão da economia por Lourenço.

O conflito entre o presidente e os filhos do ex-presidente tem necessariamente de ser analisado não só pelo prisma da justiça, mas também pelos da política e da economia.
“A questão que se deve colocar é se João Lourenço está atrás dos filhos do antigo presidente José Eduardo dos Santos, ou dos atos de gestão que os mesmos praticaram enquanto detentores de empresas e fundações”, explica Eugénio Costa Almeida, investigador luso-angolano no CEI-IUL, em Lisboa.

O investigador adianta que “poderá haver alguma razão” nas declarações sobre o uso do processo para mascarar a crise económica. “Todavia, Isabel dos Santos não pode esquecer que foi ela quem primeiro fez levantar dúvidas quanto à proveniência dos seus capitais com a célebre frase de ter começado o seu enorme pé-de-meia com a venda de ovos”.

“Ainda assim, não podemos deixar de compreender que Isabel dos Santos se aproveite de uma situação económica débil que, como a empresária bem sabe, ainda teve a génese nos dois últimos anos de Executivo de Eduardo dos Santos, com a queda dos preços do crude e com a gritante falta de divisas externas”, sublinha Costa Almeida.

“Pão e circo”

Paulo Guilherme, analista do Africa Monitor, uma publicação de análise estratégica, afirma que a continuação da crise económica veio trazer uma nova motivação aos esforços de João Lourenço em relação ao clã Dos Santos.

“A luta anti-corrupção de João Lourenço tem até agora tido uma dupla utilidade – moralização do MPLA e da sociedade angolana, onde a corrupção é endémica, e de responsabilização de José Eduardo dos Santos e seu círculo mais próximo, sobretudo o familiar, pela crise económica e financeira”.

Com a crise a arrastar-se e sentida fortemente pela população através de aumentos de preços e desemprego, esta nova investida contra a família Dos Santos acrescenta uma utilidade de um terceiro tipo – trazer para a esfera do Estado ativos valiosos como a telecom Unitel e os bancos BFAe BIC, adianta o analista.

“Com a recessão confirmada em 2019 e previsões de continuação da mesma em 2020, e o Estado a viver agudas carências financeiras, com a dívida pública próxima dos 10% do PIB, o controlo (e venda) destes ativos representa um bem-vindo encaixe financeiro”, realça.

“Por outro lado, dentro da lógica ‘pão e circo’, Lourenço está a compensar a falta de pão com ‘circo’ judicial, que tem como protagonistas Isabel e os seus irmãos – nomeadamente José Filomeno, que nos próximos meses poderá ser condenado a uma pena de prisão no caso da transferência de 500 milhões de dólares do Banco Nacional de Angola”, sublinha.

Eugénio Costa Almeida, do CEI-IUL, acredita que, de momento, os ganhos políticos que João Lourenço possa obter “serão, ou poderão ser, mais em termos ‘visuais’ para os angolanos, mas de impacto político para os investidores face a eventuais atos praticados que possam ter por detrás suportes tidos como de corrupção”.

Quanto aos riscos políticos, “antevê que esses só poderão ser aquilatados mais adiante, nomeadamente, e se vier acontecer, com o impacto das eleições autárquicas”.

Insegurança legislativa?

Paulo Guilherme acrescenta que, antes desse ato eleitoral que poderá acontecer este ano ou em 2021, deverá haver notícias sobre o recurso do processo ou mesmo novos processos.

“Convém recordar que a Constituição que João Lourenço herdou de José Eduardo dos Santos dá-lhe plenos poderes e não acredito que qualquer juiz ouse dar provimento ao recurso de Isabel dos Santos”. Adianta que, por outro lado, “o mesmo argumento que foi usado para lhe retirar os bens pode ser usado para outros dos detentores das grandes fortunas do país – até agora incólumes em todo este processo – facto que alimenta o argumento de ‘perseguição política’ usado pela família Dos Santos.

O analista do Africa Monitor acredita que “este espoliamento” de Isabel dos Santos terá sido consequência direta de uma série de “ataques que, através dos media, ela e o seu marido vinham fazendo a Lourenço, nomeadamente de que as suas motivações nos diversos processos contra a família do ex-presidente são políticas”.

“Duvido que esta evolução traga mais benefícios do que prejuízos para a imagem do país, uma vez que todo este processo faz antever, num momento de crise, convulsões nalguns dos principais bancos e empresas do país, com efeitos negativos para a economia (investimentos e outros projetos), para além de demonstrar insegurança legislativa, imprevisibilidade das instituições e o prenúncio de um agravamento do clima político”, conclui.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.