Há 70 anos que os cinéfilos conhecem a frase “continuo a ser grande, os filmes é que ficaram mais pequenos”, proferida por Norma Desmond, a decadente estrela do cinema mudo interpretada por Gloria Swanson (ela própria relegada ao esquecimento com o advento do sonoro), em “Sunset Boulevard – O Crepúsculo dos Deuses”. Mas dificilmente essa linha de diálogo terá algum dia feito tanto sentido quanto fará na entrega dos Óscares da Academia de Hollywood, que decorre em Los Angeles neste domingo, 9 de fevereiro, quando for madrugada de segunda-feira em Portugal.
O filme de Billy Wilder mostrava como a “nova” Hollywood era implacável com a “velha”, na qual o close-up do rosto de uma diva valia mais do que as palavras do guião, e a 92.ª cerimónia dos Óscares antecipa como a “novíssima” Hollywood promete ser ainda mais dura com a que já deixou de ser ”nova”. Alguns filmes ficaram pequenos ao ponto de serem vistos no ecrã de um smartphone, tablet ou computador portátil, e a tendência manifesta-se no facto de o estúdio com maior número de nomeações ser a Netflix. O serviço de streaming, desde há alguns anos também um poderoso produtor de conteúdos, tem 24 hipóteses de sair do Dolby Theatre com estatuetas douradas, à frente da Disney (não foi além de 22 nomeações apesar de já contabilizar a fusão com a Fox), da Sony (com 20), da Warner (com 12, todas menos uma relativas a “Joker”, que é o filme mais nomeado) e da Universal, que deve 10 das 11 nomeações à superprodução “1917”, com a qual Sam Mendes recriou um dia nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, no tipo de filme que ainda se vale de ser “grande”para levar espectadores às salas de cinema.
Em sentido contrário, os três “navios-almirantes” da Netflix na cerimónia da Academia de Hollywood mostram a forte aposta da “novíssima” Hollywood naquilo a que a indústria cinematográfica convencionou chamar “talento”. “The Irishman” atribuiu três das suas dez nomeações ao realizador Martin Scorsese e aos atores secundários Al Pacino e Joe Pesci, enquanto “Marriage Story” valeu nomeações aos atores principais Scarlett Johansson e Adam Driver e à atriz secundária LauraDern. E além dessas duas produções, que se encontram no rol de nove nomeados para o Óscar de Melhor Filme que encerra a cerimónia, ainda há três nomeações para “The Two Popes”, com Jonathan Pryce reconhecido enquanto ator principal pela interpretação do Papa Francisco e Anthony Hopkins na corrida pela estatueta de ator secundário enquanto Bento XVI.
A ofensiva da Netflix numa indústria que parece estar apostada em transformar pode parecer uma mera manifestação do zeitgeist, nomeadamente no que toca à forma como o entretenimento é consumido – depois de, numa primeira fase, os serviços de streaming se terem juntado aos canais de cabo por subscrição para derrotar as cadeias televisivas e assegurar a hegemonia nos Emmys -, mas está longe de ser deixada ao acaso. Um artigo publicado na quarta-feira pelo ”Wall Street Journal” continha a estimativa de que a gigante tecnológica irá gastar mais de 100 milhões de dólares para assegurar os melhores resultados possíveis na “temporada de prémios” que ocorre no início de cada ano – no que toca aos Globos de Ouro e aos Óscares, visto que os Emmys estão desencontrados, tendendo a realizar-se no final do verão.
“Não me parece que estejamos a fazer algo que toda a gente não esteja a fazer também”, disse ao jornal norte-americano Scott Stuber, responsável pela divisão de filmes originais da Netflix, mas a verdade é que “The Irishman”, “Marriage Story” e “The Two Popes” beneficiam do know how de Lisa Taback, uma veterana das campanhas dos Óscares que contribuiu para que a Miramax passasse de porto seguro do cinema independente a máquina de conquistar estatuetas douradas nos anos 1990. Algo que levou à compra desse estúdio pela Disney e catapultou os seus fundadores ao topo de Hollywood, posição em que Harvey Weinstein se manteve até cair em desgraça devido à sucessão de acusações de assédio e abuso sexual.
A estratégia de Lisa Taback, cujos honorários chegarão ao milhão de dólares, refinou métodos desde há muito utilizados pelos estúdios de Hollywood. Em vez de convidar membros da Academia para assistirem a visionamentos em Los Angeles, a Netflix foi à procura dos “eleitores”, promovendo sessões em várias cidades de diversos países para que todos ficassem a conhecer as obras em apreço mesmo sem terem aderido ao serviço de streaming. E também não poupou esforços na utilização das redes sociais, enchendo o seu canal de YouTube de conteúdos como entrevistas com o elenco e vídeos dos bastidores de “The Irishman”.
Império contra-ataca…
Ainda assim, persiste um consenso generalizado de que 2020 não será ainda o ano em que a Academia de Hollywood se renderá à gigante do streaming. Entre insiders e casas de apostas o favoritismo é atribuído a “Joker” e a “1917”, tendo este último confirmado esse estatuto nos Globos de Ouro – nos quais a Netflix bateu o recorde de nomeações (34), mas registou apenas dois triunfos -, com vitórias nas categorias de Melhor Filme Dramático e Melhor Realizador. Na hora da consagração, Sam Mendes não resistiu a lançar uma farpa à Netflix: “Espero que isto signifique que as pessoas irão ver o filme no grande ecrã, que é onde é suposto que o vejam.”
No mesmo sentido, já no ano passado um peso-pesado da indústria cinematográfica, o produtor, realizador e visionário Steven Spielberg, do alto dos seus (então) 72 anos e três estatuetas douradas, lançara um apelo para que a Academia de Hollywood resistisse à Netflix e às suas homólogas. “Quando nos comprometemos a seguir o formato televisivo estamos a fazer um telefilme. Se for bom, claro que merecemos um Emmy, mas não um Óscar. Não creio que obras que se mantêm durante uma semana em meia-dúzia de salas de cinema devam ser elegíveis para os prémios da Academia”, sentenciou, numa entrevista à ITV, o primeiro realizador a superar a fasquia de 10 mil milhões de dólares em receitas de bilheteira pelo conjunto da sua obra. E que até começou a carreira no pequeno ecrã, há mais de meio século, dirigindo episódios de séries e telefilmes.
Certo é que a Netflix não esmoreceu, conseguindo a sua primeira nomeação para o Óscar de Melhor Filme graças a “Roma”, cujo realizador, o mexicano Alfonso Cuáron, recebeu a estatueta dourada da sua categoria. E contou com a defesa de numerosos membros da Academia rendidos à ideia de que o streaming é um meio tão legítimo de fazer chegar a sétima arte ao público quanto as salas de cinema e claramente interessados em agradar a uma potencial entidade empregadora que atrai atores, realizadores, argumentistas e técnicos tanto para os seus filmes quanto para séries televisivas que por vezes são megaproduções com orçamentos e ambições artísticas só comparáveis às dos principais blockbusters de Hollywood.
…e Ásia está à espreita
Além das duas produções da Netflix, a ambicionada categoria de Melhor Filme conta com outro “intruso” na entrega dos Óscares de 2020. Isto porque “Parasitas”, thriller que mostra como uma família de fura-vidas se insinua na vida de um casal abastado, é o primeiro filme da Coreia do Sul a candidatar-se à estatueta dourada mais ambicionada. Distribuída pela Neon, a longa-metragem de Bong Joon-Ho – contemplado com uma nomeação para o Óscar de Melhor Realizador, onde conta com a concorrência de Martin Scorsese (“The Irishman”), Sam Mendes (“1917”), Quentin Tarantino (“Era uma vez em… Hollywood”) e Todd Phillips (“Joker”) – tem uma meia-dúzia de hipóteses de acrescentar mais galardões a um palmarés abrilhantado pela Palma de Ouro na edição de 2019 do Festival de Cannes.
Além dos méritos artísticos de “Parasitas”, quase sempre considerado um dos filmes do ano pela crítica internacional, analistas da indústria do entretenimento são unânimes em apontar a vontade de potenciar o mercado asiático. Além das assinaláveis receitas de bilheteira do filme sul-coreano – amealhou 163 milhões de dólares no mundo inteiro, 72 milhões dos quais no país natal e outros 33 milhões nos Estados Unidos -, está sobretudo em causa o apelo a um continente com um peso cada vez maior nas receitas globais, beneficiando da maior abertura da China aos filmes estrangeiros. Ainda que 2019 também tenha sido um ano complicado para esse tipo de “importações”norte-americanas.
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