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Ano louco em Washington com início da corrida às presidencias de 3 de novembro

Vai ser um ano americano em cheio: com eleições a 3 de novembro e uma crescente animosidade entre democratas e republicanos, os próximos meses serão de intensa luta partidária, com dramatismos exacerbados, comédia quanto baste e ‘hardcore’ político a servir de argamassa. Donald Trump sai à frente, enquanto os democratas tentam descobrir onde está o camião que os atropelou no Iowa. O episódio circense de Nancy Pelosi a rasgar o discurso presidencial dificilmente podia ser mais indicativo do ambiente do lado de lá do Atlântico.
11 Fevereiro 2020, 09h30

O ano de 2020 promete ser, nos Estados Unidos, um dos mais memoráveis em décadas de política caseira nem sempre atrativa, muitas vezes maçadora, quase sempre fugaz: em ano de eleições, a possibilidade de Donald Trump (um dos presidentes mais amados e odiados de que há memória) assegurar mais um mandato como inquilino da Casa Branca e o extremar de posições entre democratas e republicanos (em proporções poucas vezes atingidas), permitem antecipar meses de puro espetáculo, com certeza misturando o drama pungente, comédia hilariante e hardcore desbragado.

O tiro de partida para a mãe de todas as campanhas – como Trump lhe chamará se se der o caso de ainda não o ter feito – foi o processo de impeachment movido contra o presidente dos Estados Unidos. Os democratas nem em sonhos imaginavam que o processo acabasse na destituição de Trump, mas acharam possível urdir uma estratégia de desgaste que abrisse a possibilidade de o partido derrotar a sua recandidatura à Casa Branca. Aparentemente não foi nada disso que aconteceu: Trump mantém-se firme nas sondagens e nada indica – num quadro em que a economia norte-americana está a evoluir positivamente em todas as frentes – que possa vir a ser desalojado, pelo menos com facilidade, da sua atual morada.

O primeiro ato de campanha de Donald Trump ficaria reservado para o discurso sobre o Estado da União, que aconteceu esta semana – onde Trump elencou os seus sucessos mais sonantes, produziu um número mais ou menos circense com o pobre Juan Guaidó (reconhecido como presidente da Venezuela pela Casa Branca), avançou com propostas para os próximos anos e acabou prometendo que “the best is yet to come”.

Ainda a frase não tinha acabado de sair dos lábios presidenciais, já a líder do Congresso, a democrata Nancy Pelosi, empunhava as páginas datilografadas com o não menos presidencial discurso e rasgava-as em pedaços – não muito pequenos, é certo: não era raiva, era apenas um aviso à navegação. Pouco tempo depois, questionada sobre o que tinha acabado de fazer, Pelosi diria que “era o mais cordial a fazer dadas as alternativas” – o que pode querer dizer que preferia ter-lhes pegado fogo com um isqueiro, espezinhá-las com o tacão dos sapatos ou atirá-las à cabeça do presidente depois de as transformar numa bola.

Para todos os efeitos, o caricato episódio – mais um número de circo – permite que os espantados observadores meçam o grau de crispação em que está a entrar o ano político de 2020, esse que culminará com as eleições presidenciais de 3 de novembro. E só pode ser um grau muito elevado.

A primeira vítima
A muitas centenas de quilómetros dali, no país profundo – ou seja, lá para o meio, num Estado chamado Iowa – o impeachment fazia a sua primeira vítima: Joe Biden. As primárias democratas começaram ali e se não há forma de produzir grandes teorias sobre o que se passa em Iowa e o que finalmente se passa na convenção que encerra o processo, a verdade é que é impossível não reparar que – depois de todas as peripécias da contagem, que obrigaram o partido a assegurar que os russos não tinham nada a ver com aquilo – o homem por detrás do impeachment desapareceu de cena.

Contra todas as expectativas, que afirmavam que Biden e Bernie Sanders disputariam taco a taco o primeiro lugar, não foi nada disso que aconteceu: Bernie terá ficado em segundo lugar (é certo que empatado com o primeiro), tendo conseguido eleger 11 delegados à convenção e Biden não elegeu nenhum – isto a meio da contagem, que até ao fecho da edição continuava emperrada, o que manteve os democratas do centro da chacota política ao longo de vários risonhos dias. O próprio disse que “levou um murro no estômago” mas não desiste.

Sendo certo que Joe Biden, ex-vice-presidente de Barack Obama, levou meses e meses liderando todas as sondagens ou quase, alguma coisa correu muito mal na sua candidatura. E o que, do ponto de vista do velho senador (tem 77 anos), pode estar a correr mal é que o povo norte-americano, mesmo entre os democratas, pode ter sido sensível ao argumento da defesa de Donald Trump contra o impeachment, segundo a qual o pedido formulado ao presidente da Ucrânia para investigar as ações da família Biden naquele longínquo país cai sob a alçada do interesse nacional. Ou, dito de outra forma, os norte-americanos podem ter sido postos a pensar o que raio fará um Biden, neste caso o filho do candidato à Casa Branca, optar por investir num país que com certeza metade da América não sabe apontar no planisfério, mas desconfia que tem vagamente a ver com a Rússia. Ou será com a União Soviética? Ou com a Crimeia? Mas onde é que fica a Crimeia?

As segundas vítimas
Enquanto Trump se divertia no sítio do costume – o Twitter – a ‘desfazer’ Nancy Pelosi e a afirmar que “os democratas querem governar um país quando nem sequer conseguem gerir o caucus de Iowa”, os resultados das primárias naquele Estado lá iam surgindo a conta-gotas e as primeiras análises políticas começavam a fazer acender alertas vermelhos: aparentemente, alguma coisa está a correr muito mal aos democratas. E para que o próprio partido não venha a ser desde já a segunda vítima, é necessário, dizem os analistas, que os democratas não percam tempo em analisar o que pode estar por trás dos resultados e se movimentem no sentido de alterar alguma coisa.

Desgraçadamente para o partido, ainda lhe falta um dado que será importante, se não mesmo fundamental: qual é o peso político do multimilionário Mike Bloomberg? O líder da consultora com o mesmo nome não concorreu em Iowa e por isso não é possível substituir essa incógnita por um dado real.

Mas igualmente preocupante para os democratas é que pode bem suceder – e houve analistas que se fartaram de escrever isso mesmo – que o partido já não é o mesmo que foi deixado em herança pelo ex-presidente Barack Obama e pela ex-candidata humilhada por Trump, Hillary Clinton. Segundo a imprensa, demorou a reencontrar-se, destruiu algumas personagens que pareciam ter um futuro promissor (um deles envergando um sobrenome sonante, Joseph Patrick Kennedy III), livrou-se do lastro desnecessário (a própria Hillary) e não soube renovar-se em devida altura (manteve o foco em Sanders).

Ora, apesar da boa votação conseguida por Sanders em Iowa, é bem possível que o partido esteja a necessitar dessa renovação que custa a surgir. Pete Buttigieg é o rosto a reter e destaca-se no meio do emaranhado de candidatos democratas. Desde logo porque é jovem – não é o único, mas os candidatos tidos como favoritos poderiam ser seus avós – assumidamente homossexual e quer “restaurar a democracia” através, entre outros fatores, do desaparecimento do Colégio Eleitoral – um elemento do sistema de votação norte-americano que em muitas circunstâncias vai contra a maioria dos eleitores por ter um voto de qualidade. Alterações climáticas, saúde e a imigração são algumas das suas outras bandeiras – mas o certo é que, apesar de ter liderado algumas sondagens, o partido parece apostar todas as fichas em Sanders ou na também senadora Elizabeth Warren, que também não esteve à altura das expectativas em Iowa.

As terceiras vítimas
Por falar em primárias, os republicanos também estão a realizar as suas. Ao contrário do que se poderia pensar, a vontade de um presidente querer ser eleito não é suficiente para bloquear as intenções de eventuais concorrentes da mesma cor política.

E Trump não está sozinho: com ele, concorrem ainda Bill Weld (advogado e empresário, governador do Massachusetts de 1991 a 1997), Joe Walsh (antigo congressista do Illinois) e Rocky de la Fuente (deputado estadual pela Califórnia, candidato às primárias em 2016). Mas se a votação entre os democratas permanece incapaz de sugerir uma inclinação dos eleitores, entre os republicanos acontece precisamente o contrário: em 40 delegados à convenção, Trump elegeu 39! O restante foi ‘arrecadado’ por Bill Weld.

Se fosse necessário dar indicação de que Trump é ‘o’ candidato dos republicanos, esta manifestação de força seria mais que suficiente – e qualquer foco de mal-estar entre os republicanos para com Trump, que espaçadamente vai sendo notícia, não parece ter qualquer fôlego suficiente para se transformar sequer num caso político, quanto mais uma ameaça ao presidente em exercício. Assim se viu na votação do impeachment noSenado, onde o ex-candidato presidencial Mitt Romney foi o único que não cerrou fileiras com o presidente na maioria republicana.

À espera da super terça-feira
De qualquer modo, tudo isto está ainda muito no início. Mas ainda este mês haverá novas consultas para o lado dos democratas: New Hampshire (dia 11), o caucus do Nevada (22) e Carolina do Sul (29), onde em conjunto serão eleitos 114 delegados à convenção. Ainda assim, continuará, no final deste mês, a ser uma amostra curta: os democratas vão eleger um total de 4.051 delegados (a maioria forma-se aos 2.026, portanto), ao passo que os republicanos elegerão apenas 2.552 (maioria aos 1.277).

Mas logo no mês seguinte, março, no dia 3, ocorrerá a chamada “superterça-feira”. É o dia em que mais regiões coincidem no calendário eleitoral, anunciando a decisão de 14 Estados e um território extra (Samoa Americana). Haverá 1.357 delegados em jogo, o que representa mais de um terço do total. Califórnia, Texas e Carolina do Norte distribuem quase 800 delegados. E a partir daqui as coisas começam não só a ser a sério, como já será possível aos analistas perceberem para que lado pendem as forças democratas.

Os restantes Estados irão a votos ao longo dos meses seguintes, com Porto Rico a assumir a honra de ser a última região consultada, no dia 7 de junho.

Logo no mês seguinte, entre 13 e 16 de julho, os democratas irão reunir a convenção, que irá confirmar o que por aquela altura já todos saberão: qual é o nome do candidato do partido, que invariavelmente irá defrontar Donald Trump.

Os republicanos, que passarão estes meses de forma bastante mais calma, realizam a sua convenção entre os dias 24 e 27 de agosto, que servirá para entronizar Trump. Cerca de um mês depois, a 29 de setembro, terá lugar o primeiro debate televisivo entre os dois candidatos – um happening que, salvo prova em contrário, serve para aumentar o preço da publicidade ao intervalo e para dar a entender como é que as palavras podem servir para não esclarecer coisa nenhuma, num cenário em que as máquinas (de filmar, de medir audiências, de contar o tempo) são as rainhas do lugar.

Este primeiro debate terá lugar na Universidade de Notre Dame, em Indiana, de acordo com o Comité de Debates Presidenciais – pelos vistos há um! Dois outros recontros entre ambos sucederão no dia 15 de outubro na Universidade de Michigan, em Ann Arbor; e no dia 22 de outubro na Universidade de Belmont, em Nashville.

Por esta altura, os candidatos já terão dado a conhecer os nomes dos seus ‘vices’, que entre si terão também um debate que acontecerá a 7 de outubro na Universidade de Utah, em Salt Lake City.

Finalmente, 150 milhões de norte-americanos vão às urnas a 3 de novembro – menos aqueles, normalmente muitos, que voltam por antecipação nas semanas anteriores – coisa quase cabalística: a data cai sempre sobre a primeira terça-feira a seguir à primeira segunda-feira de novembro (há-de haver uma razão para isto). Depois, o Congresso deverá certificar os resultados a 5 de janeiro de 2021 – dia em que todas as queixas e todas as surpresas serão dirimidas, nem sempre a contento de todos – e tudo fechará, ou dependendo dos pontos de vista começará, com a tomada de posse do 46.º presidente dos Estados Unidos e do seu vice-presidente no Capitólio, em Washington, a 20 de janeiro de 2021.

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