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Racismo no desporto: O planeta dos macacos

Esporádicos, isolados, pontuais. É assim que normalmente são descritos os episódios de racismo no desporto, que existem há décadas, são uma constante em alguns recintos e nada indica que venham a desaparecer. Pedro Almeida, investigador e autor da tese ‘Futebol, raça e Nação’ prefere a realidade aos eufemismos: existe racismo no futebol porque a sociedade portuguesa é, no seu coletivo, profundamente racista. Outra coisa seria difícil de suceder num país que tem o mais longo histórico de colonialismo do mundo.
24 Fevereiro 2020, 09h30

Um grupo de respeitáveis pais de família vimaranenses decidiu este domingo juntar-se à claque organizada da equipa do Vitória de Guimarães – que milita na primeira divisão do campeonato de futebol e jogava na altura com o F. C. Porto – para demonstrar o seu pouco apreço por um membro da equipa adversária, Moussa Marega, atirando-lhe com cadeiras prontamente arrancadas do seu sossego de plástico e imitando, com assinalável perfeição darwinista, o grito dos macacos. O jovem, um negro oriundo do Mali, tomou-se de fúrias e abandonou o jogo, ganhando um inesperado protagonismo que com certeza não procurava e estragando o final da tarde às figuras gradas da Nação, Presidente da República e primeiro-ministro incluídos.

Paralelamente, os portugueses emaranharam-se no debate sobre as razões da ocorrência deste colorido episódio, tentando discernir sobre o que está por trás dele e avaliando até que ponto tudo isto pode ser sintoma de enfermidade social ou, ao contrário, não passar daquilo a que alguns chamam ‘paixão pelo futebol’ e que aparentemente desculpabiliza todos os dislates, dos mais indefensáveis aos ainda mais indefensáveis.

O debate é daqueles que com certeza teve um princípio, já passou por um meio, mas nunca terá um fim, até porque, ao contrário do que alguns meios envolvidos, desde logo os clubes de futebol, gostam de fazer crer, o assunto é velho e o episódio em referência está muito longe de ser inesperado, fortuito ou pontual.

“Acontece em tudo quanto é lado, em todas as divisões dos campeonatos de futebol – desde os principais clubes até aos distritais. Pelo menos a partir dos anos 90 [do século passado] habituei-me a ouvir a imitação dos macacos todas as vezes que um negro toca na bola”, diz Pedro Almeida, investigador do projeto COMBAT (que pretende abordar o racismo em Portugal), da responsabilidade do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e autor da tese de doutoramento ‘Futebol, raça e Nação em Portugal’ (https://eg.uc.pt/handle/10316/87616?locale=pt).

Para aquele investigador, a ideia propagandeada de que aquele tipo de sucessos são esporádicos e recentes é uma falácia que importa combater, não só porque não é verdade, como implica a tentativa de desculpabilização de atos que são a todos os títulos reprováveis – o que promove a sua eternização. Pedro Almeida recorda mesmo um episódio em (quase) tudo semelhante: o mesmo estádio, os mesmos adeptos (ou outros semelhantes, para o caso é irrelevante), outro protagonista (Nelson Semedo) e uma reação diferente. “Se fosse hoje, teria feito o mesmo que o Marega”, desabafou no início da semana, em vez de fazer de conta que aguentar, esquecer e seguir em frente é que é ser civilizado.

Futebol e história
Para o investigador de Coimbra, há um ambiente implícito que transforma todas estas ocorrências em epifenómenos que se desligam uns dos outros e que permite que sejam apresentados de forma isolada, como se não houvesse por trás um cenário que torna possíveis a sua irrelevância. E esse cenário é, por muito que isso custe a uma parte numerosa dos portugueses, e segundo Pedro Almeida, o endémico racismo nacional. “Há a narrativa recorrente de que não somos um país racista, como se fosse possível termos sido protagonistas de um colonialismo benevolente”, explanado em muitas e ultrajantes páginas dos compêndios de História que os portugueses, ainda crianças, absorveram ao longo do Estado Novo e do qual verdadeiramente nunca se libertaram.

“É impossível analisarmos o racismo na sociedade contemporânea europeia – que tem um legado colonial e esclavagista – sem abordarmos a dimensão colonial e imperial que está subjacente a todos os incidentes racistas”, ocorram eles nos públicos campos de futebol, nos privados calabouços da polícia ou noutro lugar qualquer – com destaque para as redes sociais, onde uma visita aos comentários das notícias que envolvem o naufrágio de Joacine Katar Moreira ou o afundamento de Isabel dos Santos não é aconselhável aos estômagos mais delicados.

Neste ponto, Portugal inscreve-se num mesmo plano que a Espanha, a Itália, a França ou a Inglaterra – o colonialismo alemão é, comparativamente, muito recente e sociologicamente menos intrusivo – com a particularidade de ter sido o primeiro a iniciar viagem e a agravante de ter sido o último a regressar a casa.

“Estas manifestações são o resultado da interiorização do sentimento de superioridade que acompanhou a história colonial portuguesa. Quando defendo que a sociedade portuguesa tem uma estrutura racista, há a tendência de se observar isso como um ataque individual. A dizer que os portugueses são um povo racista, prefiro olhar o racismo como uma construção intelectual e social que está presente nas várias esferas da sociedade portuguesa”, salienta. “O lugar dos negros é um lugar subalterno”, num quadro em que o racismo não resulta da consciência individual de cada um, mas, sustenta, da consciência geral e coletiva do que é ser português – aqui e agora, como dizia o poeta que usava um bigode todo desacertado.

Não é portanto, na opinião do investigador e autor da única tese portuguesa sobre a matéria, o acaso ou a necessidade que explicam estes episódios recorrentes de racismo em pleno futebol, mas antes uma predisposição ‘civilizacional’ nunca ultrapassada, nunca assumida e talvez por isso constantemente negada, dos portugueses para acomodarem como aceitáveis manifestações de racismo. E não apenas contra os negros – que nisso somos democráticos.

Futebol e futebol
Pedro Almeida fez trabalho de campo com antigos e atuais jogadores de futebol (principalmente da Académica e do Benfica) e com jornalistas de “A Bola”, “Recorde” e “Mais Futebol” e, paradoxalmente, “os próprios jogadores têm tendência para desculpabilizar este tipo de episódios”, até porque eles acontecem não só do público para com os jogadores “mas também entre os jogadores”.

No caso particular do futebol, a explicação que Pedro Almeida colhe constantemente é que os casos que vão ocorrendo são observados não como racismo, mas como “tentativas de desestabilizar os adversários”. Ou, como dizia o outro, chamaram preto ao Marega porque ele é preto; se fosse gordo chamavam-lhe gordo – mas em princípio nunca chamariam branco a alguém que quisessem insultar, o que transforma preto e branco em adjetivos de significado oposto.

“A imitação do grito dos macacos é uma forma de manter uma hierarquia”, de tornar claro de que lado está o poder e de dar a entender o que é que o poder acha dos que estão do outro lado, diz ainda.

Um dos casos de apropriação racista do talento de um jogador talvez seja o de Eusébio da Silva Ferreira, ‘o Eusébio’, “que só por si daria para uma tese inteira”, com tudo o que “está por trás da portugalidade do jogador, que subiu à condição de herói nacional, como que banalizando as relações do colonialismo” e remetendo mais uma vez para a propaganda do excecionalismo (nunca existente) da prestação nacional quando Portugal ia do Minho a Timor.

Futebol e legalidade
Estando a coisa posta no quadro civilizacional, o investigador social afirma ter poucas esperanças em que o atual estado de coisas venha a alterar-se com substância. Ao contrário, considera, tudo tenderá a manter-se cada vez mais na mesma, até porque não é de um momento para o outro que as bases que sustentam uma sociedade se conseguem mover no sentido de um reacerto das suas caraterísticas.

“Quando ouço que temos de erradicar o racismo do futebol – seria o ideal – não vejo como é que isso será possível. É possível contê-lo, mas não erradicá-lo, mediante medidas punitivas. Mas, por muito que essas medidas possam impedir determinadas práticas, a erradicação do racismo envolve um debate muito mais alargado, dentro e fora do mundo do futebol”.

O tema remete para o lugar das leis no futebol, que afinal arrisca ser o lugar de sempre: Portugal tem as leis necessárias e suficiente para auxiliar a erradicação do fenómeno do racismo, mas tende a esquecer-se de as aplicar – o que vai sucedendo transversalmente em vários domínios da causa pública.

“São vários os instrumentos legais à disposição, tanto das entidades que regulam o futebol, como das outras”, onde se contam as políticas e as judiciais. “O quadro legal, mesmo que em alguns casos possa ser insuficiente, prevê este tipo de atitudes no desporto” e tende a puni-las – ou puni-las-ia se se desse o caso de elas chegarem (como talvez chegue o dossiê Marega) à barra dos tribunais.

Mas há outras coisas que se podem fazer e o investigador recorda o caso do holiganismo, que aparentemente foi erradicado do futebol. Não foi, diz Pedro Almeida, porque essa também era uma missão impossível – simplesmente mudou de sítio: saiu dos estádios para se acolitar nos pubs onde a cerveja é barata e nas imediações dos estádios de futebol onde as câmaras de vigilância sofrem de miopia. “O holiganismo foi contido muito à custa de medidas punitivas e do afastamento dos estádios das classes sociais mais desfavorecidas, que não seriam os únicos protagonistas, através do aumento dos preços dos bilhetes, do aburguesamento do público.”

Futebol e política
De algum modo ao contrário do que poderia imaginar-se, Pedro Almeida não encontra sintomas de ligação entre o aumento da importância social da extrema-direita – que diz de si própria ser xenófoba e racista, entre outras excelentes qualidades auto-atribuídas – e um eventual aumento das manifestações de racismo em recintos desportivos. “As coisas já eram más antes!”, admite, para explicar que o discurso racista (principalmente em meio desportivo) é transversal às opções políticas. Até porque, recorda, as claques organizadas são lugares onde a multirracialidade existe mesmo.

Menos mal, dir-se-ia, mas o certo é que, fechada a explicação do fenómeno, a esperança de que ele venha a ser resolvido é pouca.

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