O que quer que alguém faça durante 541 dias seguidos acaba por tornar-se um hábito. Na ausência de melhor explicação, talvez seja por isso que os belgas insistem em viver cómoda e confortavelmente sem governo: em 2010 e 2011, passaram aqueles dias todos sem contarem com um executivo na posse de todas as suas capacidades e agora, sempre que podem, aí regressam.
Não há neste gosto ou mania qualquer sentimento anarquista: a Bélgica é um país tão certinho, mas tão certinho, que ainda existe. Apesar de ter duas partes que, basicamente, não têm nada a ver uma com a outra: não falam a mesma língua, não gostam das mesmas soluções políticas, não professam as mesmas convicções sociais. Pode dizer-se que o país está dividido em dois? Não, não está dividido em dois: está dividido em três – a Flandres, a Valónia e Bruxelas, que é uma espécie de cidade-Estado que não é nem dos flamengos nem dos valões, sendo portanto de ambos. Ah, é verdade: e também há a comunidade alemã. Adiante.
O atual presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, foi a mais recente vítima de tão singular país: era primeiro-ministro quando decidiu assinar um memorando de entendimento que a União Europeia gizou a propósito dos refugiados que entram na Europa na tentativa de fugirem à absoluta desgraça que é a vida e a morte lá nos sítios de onde vêm. O memorando nem era uma coisa assim tão progressista – sempre era patrocinado por um luxemburguês, cujo país faz parte da Flandres se entendida de forma mais lata – mas o certo é que os seus parceiros de coligação, um bocado mais reacionários, não gostaram nada daquilo e trataram de pôr um fim à parceria – que há já muito dava mostras de pouca solidez.
O senhor lá foi à vida dele, deixando no seu lugar a ‘sua’ ministra do Orçamento, Sophie Wilmès, uma liberal francófona de 44 anos que o rei Filipe Leopoldo Luís Maria se apressou a nomear, em outubro passado, mas de forma interina – não fossem os seus súbditos pensar assim de repente que tinham um governo daqueles a sério.
A Bélgica está sem um governo em plenas funções desde dezembro de 2018 e as mais recentes eleições legislativas (e europeias), que sucederam em maio de 2019, não foram conclusivas – obrigando os partidos políticos a regressar às negociações para formarem uma coligação. Mas aquilo é uma maçada e até agora ainda não foi possível chegar a um entendimento. Pudera, eles são tantos: é que, para cada perfil político, há dois partidos – um flamengo outro valão. Por exemplo, o Groen é o partido verde da Flandres e o Ecolo é o partido igualmente verde da Valónia. Ah, é verdade: a comunidade alemã tem os seus partidos próprios. Adiante.
A dificuldade de encontrar-se um governo na Bélgica resulta de toda esta confusão: votando a Flandres tradicionalmente na direita – e até na extrema-direita – e a Valónia no centro-esquerda, os dois partidos que têm a obrigação de formar uma coligação pura e simplesmente detestam-se, não têm qualquer confiança um no outro, se pudessem nem sequer se falavam. E desde dezembro de 2018 que, basicamente, não se falam.
O problema é que entretanto apareceu a pandemia e não dava jeito nenhum aos belgas terem um governo interino, até por questões de manuseamento orçamental, que não estava totalmente nas mãos da primeira-ministra. O rei lá passou o executivo de escalão – de interino a permanente – e a coisa compôs-se, mas o certo é que o país está a ser assolado de forma particularmente violenta: com uma população semelhante a Portugal em termos numéricos, tem cerca do dobro dos infetados e quase dez vezes mais mortos.
Sendo a primeira mulher a dirigir o topo da hierarquia do governo belga, Sophie Wilmès encerrava toda a esperança – mas talvez mais dos não-belgas. Nascida em Ixelles em 15 de janeiro de 1975, formou-se em Comunicação Aplicada e Publicidade. O seu primeiro trabalho foi como diretora financeira na Comissão Europeia (aproveitou para completar um mestrado avançado em gestão financeira no Institut Supérieur Saint –Louis).
Resulta daí o facto de a Comissão ter a esperança em que Sophie Wilmès seja a pessoa certa para calar de vez as vozes – e não serão tão poucas como isso – que gostariam de ver acontecer uma secessão no país. Não é por acaso que o catalão Carles Puigdemont se refugiou na Bélgica depois de ter proclamado a independência da Catalunha (que suspendeu no segundo seguinte) em outubro de 2017. Com o Brexit ainda ‘fresco’ e uma série de regiões em perigosa deriva nacionalista, um problema desses num país central do continente é tudo o que a Comissão não precisa.
Mas, com a pandemia em largo curso, a secessão também não será, por estes dias, a maior preocupação da primeira-ministra. Wilmès juntou entretanto um largo currículo público nas suas mãos. Depois de sair da Comissão ainda esteve numa escritório de advocacia como consultora financeira, mas rapidamente derivou para a política (no âmbito do Movimento Reformador valão, ‘irmão’ dos Liberais e Democratas Flamengos). Foi membro do conselho regional em Rhode-Saint-Genèse, onde vivia, depois deputada e finalmente, a partir de setembro de 2015, passou a integrar o governo federal.
Sophie Wilmès diz de si própria que “além do meu grande interesse em questões económicas, também sou sensível aos problemas sociais. Comprometida com a unidade do meu país e das suas diferentes comunidades, quero viver num ambiente em que os direitos de todos sejam respeitados”.
Esta espécie de statement político, em stand-by por causa da pandemia, é a esperança da União Europeia para uma região que ao longo da história nunca conseguiu ser, enquanto país, um exemplo de solidez territorial e de longevidade coletiva.
Artigo publicado no Jornal Económico de 24-04-2020. Para ler a edição completa, aceda aqui ao JE Leitor
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