“O BdP tem que se tornar sinónimo de ação para enfrentar os inúmeros desafios no futuro próximo. Mas não os deve enfrentar numa torre de marfim, mas sim com toda a sociedade portuguesa”. A frase de Mário Centeno aponta o caminho que quer trilhar à frente do Banco de Portugal (BdP), mesmo enfrentando as críticas e resistência de todos os partidos – à excepção do PS –, enquanto lança subtis farpas à intervenção do regulador nos últimos anos.
Na audição obrigatória por lei, que ocorreu esta quarta-feira, após a nomeação do Governo para suceder a Carlos Costa, o ex-ministro das Finanças revelou, perante os deputados da Comissão de Orçamento e Finanças, pistas sobre o que pretende que seja o seu mandato: um regulador forte, interventivo, com uma forte influência na Europa e em atuação conjunta com o Executivo.
Ao elencar os “quatro desafios-chave” que considera que o BdP tem pela frente, Centeno mostrou para onde quer ir: “assegurar uma supervisão prudencial e comportamental eficiente e exigente que acompanhe o processo de inovação tecnológica”, “participar na condução da política monetária europeia e na sua revisão estratégica”, “definir uma política macro-prudencial consonante com os complexos mecanismos de transmissão de risco no sistema financeiro” e “credibilizar o mecanismo e processo de resolução, condição para a estabilidade financeira”, disse.
“O papel do Banco de Portugal não se pode caracterizar pelo antagonismo nem pelo isolacionismo, mas antes pela complementaridade com o Governo, os restantes supervisores financeiros e com a comunidade científica”, afirmou.
Centeno contesta ideia de ser “governador de mãos amarradas”
Numa audição marcada pela expressa oposição dos partidos à sua nomeação, que alegam conflito de interesses, Centeno frisou que “a independência não é outorgada, nem proclamada, é conquistada na ação e é um dever de quem dela beneficia mostrar que a merece e exerce perante a sociedade”.
A maioria dos deputados presentes temem que o ministro das Finanças leve na bagagem conflitos de interesse na curta viagem do Terreiro do Paço para a Praça do Comércio. André Silva, deputado do PAN, foi o mais altivo nesta matéria, listando um conjunto de situações que passaram pelas mãos do antigo ministro das Finanças e que poderá revisitar eventualmente se quando for o próximo governador do BdP.
André Silva argumentou que a aquisição da totalidade do BPI pelo espanhol Caixabank, a entrada dos chineses da Fosun no capital do Millennium bcp e as vendas do Banif e do Novo Banco serão conflitos de interesse que vão fazer de Mário Centeno um “governador de mãos amarradas”.
Mas o ex-governante desviou-se dos ataques. Não só “não existe nenhuma no mundo inteiro que identifique conflitos de interesses nestas circunstâncias”, como “ o senhor deputado listou um conjunto de situações que foram decididas pelo BdP.”
“A resolução do Banif foi decidida pelo BdP. A resolução do [BES] e a venda do Novo Banco foram decididas pelo BdP. Essas decisões são decisões do conselho de administração do BdP e por órgãos tutelados pelo BdP como o Fundo de Resolução”, argumentou o ex-chefe das Finanças nacionais.
André Silva teme ainda que os atuais membros do conselho de auditoria do BdP, que avalia a atuação do governador, pode perder imparcialidade porque foram nomeados por Mário Centeno e este último voltou a defender-se. “É a primeira vez que o presidente do conselho de auditoria não é um antigo membro do conselho de administração do BdP. São pessoas que estão acima de qualquer suspeita e se ler os relatórios, não só verá o aumento da qualidade e da transparência”, referindo ainda que tem confiança de que os membros do conselho de auditoria do BdP saberão como atuar se sentirem que a imparcialidade der sinais de fragilidade.
E sobre o possível enfraquecimento do BdP face ao Governo, cuja pasta das Finanças pertence atualmente antigo braço-direito do ministro Mário Centeno, João Leão, o ex-governante vincou que o Executivo e supervisor bancário “não têm interesses conflituantes”. O primeiro, disse, “é o garante da promoção da estabilidade financeiro”, cabendo ao segundo o dever de “aconselhar”.
Mário Centeno garantiu ainda que, se houver “materialização” de conflitos de interesses, vai cumprir “escrupulosamente o código de conduta do BdP” e também a respectiva lei orgânica e “todas as obrigações que tem na sociedade”.
De resto, o ex-ministro das Finanças enalteceu o “papel crucial, de liderança”, dos governos na promoção da estabilidade financeira e explicou que, nos termos da lei orgânica do BdP, o supervisor tem “de velar pela estabilidade financeira e de aconselhar o Governo. É esta a sintonia que deve existir entre os dois para garantir a estabilidade financeira”.
“Foi difícil de compreender em Portugal que o Governo é o principal garante da estabilidade financeira”, relembrando o papel “absolutamente essencial” do Governo nos processos de resolução do Banif e de venda do Novo Banco e ainda de injeção de capital na Caixa Geral de Depósitos e vincou que, se efetivamente se tornar no próximo governador do BdP, desempenhará as suas funções em estreita ligação com o Governo.
“Eu lembro que quando tomámos posse [em novembro, dezembro de 2015], o diálogo com a Comissão Europeia tinha sido entregue ao BdP e o Governo tinha saído desta função. Este é o tipo de desestruturação institucional que não pode, em momento nenhum, acontecer e, enquanto líder do BdP — se assim vier a acontecer — garantirei que não vai haver essa posição de isolacionismo ou de confrontação que vai imperar na sociedade portuguesa e no setor financeiro”, adiantou.
“É importantíssimo que o relacionamento entre os supervisores se altere”
Outra das pedras de toque de um eventual conflito de interesses apontado pelos deputados foi a proposta para a reforma da supervisão, que acabou por não avançar porque ficou pronta perto do termo da anterior legislatura. Sobre este tema, Mário Centeno voltou a defender uma alteração da coordenação entre os supervisores, considerando que as decisões tomadas no passado poderiam ter ido mais longe, numa crítica recorrente à intervenção do seu futuro antecessor.
“O BdP e os outros reguladores financeiros não podem mostrar, no futuro, o mesmo grau de relacionamento, ou falta dele, que mostraram no passado. O quadro institucional é menos limitado do que a prática que acabou por acontecer”, disse Mário Centeno, realçando que “os modelos de supervisão dependem das regras que são definidas e de quem ocupa os cargos”.
“É importantíssimo que o relacionamento entre os supervisores se altere”, vincou. Centeno defendeu ainda a importância do papel das auditorias, considerando que não se pode “minorar, nem afastar o papel dessas auditorias nesse contexto”, acrescentando que “o reforço do papel de supervisão do BdP é contínuo e deve ser mantido. Deve haver uma supervisão muito activa nesta fase, em particular, quando temos todos os problemas do pós-pandemia connosco”.
Defendeu ainda que os objetivos de estabilização financeira que guiam quer o regulador, quer o titular das Finanças são os mesmos, pelo que não existe qualquer tipo de antagonismo. “Tivemos processos de consolidação e estabilização do setor financeiro que permitiram que Portugal tivesse um ciclo muito positivo de convergência com a União europeia. Não é possível manter esse processo se se puser em causa a estabilidade do sistema financeiro. Essa é a principal preocupação do governador do BdP e essa é a principal preocupação do ministro das Finanças de Portugal. Não há nenhum conflito nesta dimensão, entre interesse público e interesse público. Em todos eles o que está presente é o interesse nacional”, afirmou.
Partidos contra a nomeação, mas IL vai mais longe e anuncia providência cautelar
PSD, Bloco de Esquerda, CDS-PP, PCP e Chega afirmaram categoricamente estar em desacordo com a indicação de Mário Centeno para suceder a Carlos Costa, que termina formalmente esta quarta-feira o mandato à frente do regulador, ainda que continue em funções até à entrada do seu sucessor.
Porém, a Iniciativa Liberal vai mais longe na manifestação de oposição e o deputado João Cotrim Figueiredo anunciou que irá interpor uma providência cautelar em nome individual para impedir a nomeação até ser votado o projeto-lei apresentado pelo PAN que estabelece, além alterações à nomeação de membros do conselho de administração do BdP, um um período de nojo na transição de cargos de governantes para o regulador.
“No respeito pleno pela separação de poderes num Estado de Direito e dada a insatisfação que a IL tem com o processo legislativo para que esta nomeação não ocorra antes de concluído o processo legislativo”, disse João Cotrim Figueiredo, esclarecendo, face aos protestos dos deputados presentes, que o fará “enquanto cidadão, em defesa das pessoas que nos elegeram”.
A providência cautelar terá que ser analisada e decidida em sede judicial, mas Mário Centeno não respondeu à intenção manifestada pelo deputado. Limitou-se, sim, a reforçar que se sente “qualificado, motivado e apoiado nestas funções”.
O parecer da audição de Mário Centeno será elaborado pelo deputado socialista João Paulo Correia e posteriormente votado pelos partidos, ainda que não tenha um carácter vinculativo. A nomeação ficará formalizada mediante proposta do Conselho de Ministros.
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