Ricardo Salgado reuniu-se com os mais importantes decisores políticos do país durante o ano de 2014 para mostrar o seu “desagrado” em relação à atuação do Banco de Portugal (BdP) por proibir a venda de dívida do Grupo Espírito Santo (GES) aos clientes do Banco Espírito Santo (BES).
Apesar da proibição decretada pelo supervisor em fevereiro, quatro administradores do BES deram ordens para que dois fundos comprassem 730 milhões de euros de dívida do GES no espaço de apenas quatro meses em 2014, segundo a acusação.
“Insatisfeitos com as determinações do BdP, os arguidos decidiram lançar uma série de iniciativas junto de decisores políticos no sentido de obter uma mudança da posição do BdP de proibir a colocação de papel comercial da Rioforte em clientes de retalho do BES”, pode-se ler no despacho de acusação do Ministério Público (MP) a que o Jornal Económico teve acesso.
As audiências tiveram lugar entre a última semana de março e a primeira de abril de 2014. O primeiro titular de cargo político a receber foi Ricardo Salgado foi o vice-primeiro Paulo Portas a 29 de março. Segue-se depois uma audiência no Palácio de Belém entre o banqueiro e o Presidente da República Aníbal Cavaco Silva a 31 de março.
O primeiro-ministro Pedro Passos Coelho recebeu Ricardo Salgado em São Bento a 7 de abril. Por último, a ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque recebe-o no Terreiro do Paço a 8 de abril.
O Ministério Público relata que Ricardo Salgado manifestou a todos estes titulares o “seu desagrado com as posições assumidas pelo BdP”.
O banqueiro entregou tanto a Cavaco Silva como ao primeiro-ministro a carta que tinha enviado ao governador do BdP, Carlos Costa: “Carta que Pedro Passos Coelho, após a sua leitura, lhe devolveu”, segundo o MP.
O despacho do MP mostra que apesar das seis cartas escritas pelo BES e seus administradores ao Banco de Portugal, e dos encontros que Ricardo Salgado manteve com estes responsáveis políticos, o supervisor liderado por Carlos Costa manteve a proibição decretada.
É preciso recuar a 14 de fevereiro de 2014, dia em que o Banco de Portugal emitiu uma determinação a “colocar sério entrave aos desígnios dos arguidos em continuar a utilizar o Programa de de Papel Comercial Doméstico da Rioforte como meio de captação da liquidez dos clientes de retalho do grupo BES para o GES, designadamente para a ESI [Espírito Santo International], beneficiária que foi dos avanços da Rioforte ao longo de 2014”, pode-se ler no despacho da acusação.
Numa carta enviada pelo supervisor liderado à altura por Carlos Costa, o BdP determinou à ESFG (Espírito Santo Financial Group) e ao BES a “proibição de comercialização, quer de forma direta, quer indireta, de dívida de entidades do ramo não financeiro do GES junto de clientes de retalho, assim proibindo a colocação de papel comercial doméstico nos clientes de retalho do BES”.
Porque é que o Banco de Portugal tomou essa medida? O supervisor considerou que iria permitir “salvaguardar os clientes de retalho do banco de perdas decorrentes de um eventual incumprimento pela ESI das responsabilidades associadas aos títulos de dívida por esta emitidos, não permitirem assegurar o ring-fencing [uma separação de segurança entre empresas do mesmo grupo] do grupo ESFG face ao ramo não financeiro do GES”.
Esta carta do BdP foi analisada na reunião do conselho de administração da ESFG a 17 de fevereiro, encontro em que participaram Ricardo Salgado, José Manuel Espírito Santo, Manuel Fernando Espírito Santo e José Castella.
Nessa reunião, Ricardo Salgado, José Manuel Espírito Santos e Manuel Fernando Espírito Santo “confrontados com a proibição de continuarem a dívida da Rioforte junto de clientes do retalho do BES e percebendo que imporia séria limitação ao seu plano de aprofundamento do endividamento da Rioforte para passar liquidez à ESI e impedir que esta incumprisse o reembolso da sua dívida, não se conformaram com tal decisão”.
Decidiram então escrever uma carta a 20 de fevereiro a comunicar ao BdP que a “proibição de colocação de dívida da Rioforte nos clientes do BES era “incompreensível e discriminatória”, que implicava a interrupção do ciclo de financiamento e que entendiam não seria aplicável aos clientes do BPES uma vez que se enquadravam no segmento Private/Institucional. Terminaram pedindo que fosse “concedido o tempo e o espaço necessários” para poderem gerir com sucesso o programa de desalavancagem do GES”.
Mais tarde, a 26 de fevereiro, “apesar de cientes dessa proibição” do BdP, Ricardo Salgado, José Manuel Espírito Santo e Amílcar Pires participaram na reunião do Comité ALCO do BES “onde, em violação dessa determinação do BdP de 14.02.2014, aprovaram a manutenção da oferta de papel comercial para renovação das emissões do emitente Rioforte, nada tendo feito para cancelarem as emissões de papel comercial doméstico que, no caso das 38ª e 39º emissões, subscritas em 27.02.2014 [no valor total de 31,3 milhões de euros], foram parcialmente colocadas em clientes de retalho do BES,
gerando nestes avultados prejuízos económicos já que não vieram a ser reembolsadas,
conforme abaixo melhor se descreverá”.
O Banco de Portugal responde a 26 de fevereiro à carta subscrita por Ricardo Salgado enviada a 20 de fevereiro. Na missiva, o supervisor reafirma a “suspensão da comercialização de dívida de entidades do ramo não financeiro do GES junto de entidades do grupo ESFG, referindo mesmo que a carta subscrita por Ricardo Salgado permitia “indiciar um potencial conflito entre os interesses do grupo ESFG e do ramo não financeiro do GES”.
O MP aponta que, apesar desta segunda carta do BdP, os arguidos “insistiram nos seus propósitos de continuar a colocar papel comercial da Rioforte em clientes de retalho do BES”.
O que é que decidiram fazer? A 12 de março “mandataram Joaquim Goes e Rui Silveira para remeterem carta ao BdP solicitando autorização para renovar os montantes de papel comercial da Rioforte junto dos clientes de retalho do BES”.
Já a 17 de março, os arguidos “remeteram duas cartas ao BdP, uma em nome da EFSG e a outra em nome do BES, a primeira assinada por Ricardo Salgado e José Manuel Espírito Santo (…), a segunda por Ricardo Salgado a solicitar autorização para renovarem, até ao final do primeiro semestre de 2014, os montantes de papel comercial emitido pela Rioforte, mantendo o respetivo volume total colocado em clientes de retalho do BES”.
O BdP responde à carta do BES e da ESFG a 25 de março. Na missiva, o supervisor liderado por Carlos Costa reafirma a “proibição de comercialização junto de clientes de retalho do BES de papel comercial emitido por qualquer entidade do ramo não-financeiro do GES, independentemente de na sequência do ETRICC [Exercício Transversal de Revisão da Imparidade da Carteira de Crédito dos principais grupos bancários nacionais] não ter sido proposta qualquer imparidade a uma específica entidade desse ramo.”
Assim, o Ministério Público considera que “não obstante o teor inequívoco da resposta do BdP de 25 de março, os arguidos “não desistiram dos seus propósitos de continuar a colocar dívida da Rioforte em clientes de retalho do BES.
Depois, a 2 de abril, seguiu nova carta para o BdP assinada por Amílcar Pires, onde os arguidos “reiteraram o pedido formulado ao BdP na carta de 17.03.2014, solicitando autorização para renovarem o papel comercial emitido pela Rioforte e colocado junto dos clientes de retalho do GBES até ao final do primeiro semestre de 2014”.
A 8 de abril, “confrontados com a proibição do BdP de proibir a colocação de papel comercial da Rioforte junto dos clientes de retalho do BES”, os arguidos decidiram escrever nova carta ao BdP, assinada por Ricardo Salgado e José Manuel Espírito Santo. Na missiva, sugeriram ao BdP que “autorizasse a comercialização junto dos clientes particulares qualificados do grupo BES de dívida emitida pela Rioforte”.
“No entanto, não obstante não terem logrado a alteração da determinação do BdP de 14.02.2014 que proibia a “comercialização, quer de forma direta quer indireta (v.g., através de fundos de investimento, outras instituições financeiras) de dívida de entidades do ramo não financeiro do GES junto de clientes de retalho” do BES, Ricardo Salgado, José Manuel Espírito Santo, Amílcar Pires e Manuel Fernando Espírito Santo, os três primeiros simultaneamente administradores do BES e da ESAF SGPS, determinaram que os Fundos ES Investments Liquidity e Caravela Short Term continuassem a investir em títulos de dívida emitidos por sociedades do ramo não financeiro do GES, assim possibilitando a violação daquela determinação.”
Segundo a acusação do MP, entre 14 de fevereiro de 2014 e 23 de junho de 2014 – “e em violação da determinação do BdP de 14.02-2014” -, “aqueles Fundos, detidos, em parte, pelos Fundos ES Liquidez e ES Rendimento cujas unidades de participação eram clientes do BES, do BEST e do BAC, investiram 729,7 milhões de euros em títulos de dívida de sociedades do ramo não financeiro do GES, designadamente da Rioforte, da ES Irmãos, da Euroamerican, e da Quinta da Foz”. Este investimento está dividido por: Fundo ES Investment Liquidity, 600 milhões de euros; Fundo Caravela Short Term, 129,4 milhões de euros.
Depois do Ministério Público ter anunciado ontem que vai acusar 25 arguidos, 18 pessoas singulares e sete pessoas coletivas nacionais e estrangeiras no âmbito do Universo Espírito Santo, Ricardo Salgado veio a público dizer que “não praticou qualquer crime”, considerando que a acusação do MP “‘falsifica’ a história do Banco Espírito Santo”. Seis anos depois da queda do BES, o MP acusou o ex-líder do banco, outrora considerado um dos homens mais poderosos de Portugal, de associação criminosa e corrupção.
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