À data em que escrevo, corre ainda a enorme agitação provocada pelos resultados dos concursos ao apoio financeiro da Direção-Geral das Artes (DGArtes). Nestes momentos assistimos à habitual voracidade mediática, dando nota de perplexidades, protestos, solidariedades… E também de oportunismos: ora de quem já fez melhor (sucedem-se as opiniões sábias de ex-responsáveis), ora de quem esperará ter agora o seu momento de glória na salvação da cultura e das artes nacionais. Pelo meio, claro, opiniões e informações que, de outra forma, dificilmente chegariam a público.

Sem “pimenta”, infelizmente, a cultura e as artes raramente interessam muita gente, ficam naquele limbo de serem, como agora se diz, uma “cola”, mais ou menos invisível, para o “equilíbrio” social. No presente tumulto, mais do que pimenta, tratou-se de gindungo, com a diferença de que este, picantíssimo embora, é digestivo, e à pimenta não lhe conheço essa propriedade.

Não é possível ficar indiferente às notícias das últimas semanas. E não é possível, do meu ponto de vista, negar as principais razões que lhe subjazem. Simplifiquemo-las em três ordens: os sucessivos (baixos) montantes dos orçamentos; os sucessivos modelos de aplicação dos mesmos; e os sucessivos ensaios de políticas que nunca chegaram a ser devidamente testadas e por isso não cuidaram de infraestruturar e, como hoje se diz, promover a sustentabilidade.

Estas ordens de razões alargam o debate a bem mais do que as artes independentes e o seu financiamento.

Nestes últimos dias, falou-se, embora pouco, de cinema – a nova lei acaba de ser promulgada pelo Presidente da República, com uma justificação, no mínimo, interessante: “[o] presente diploma e, sobretudo, os debates que suscitou, não equacionaram questões essenciais no domínio versado”, mas trata-se de evitar “um atraso suplementar na constituição dos júris e no financiamento ao setor”. Noutro contexto, a DGArtes já eliminou, mais do que uma vez, a audiência de interessados a seguir aos resultados dos concursos a apoio financeiro, com o mesmo tipo de justificação.

O património cultural, por exemplo, praticamente não foi mencionado. Ora, recorde-se, ao fim de seis meses do primeiro governo de Passos Coelho (2011), reduziram-se dois institutos (dos Museus e da Conservação, e de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico) a uma direção-geral, onde a perda orgânica de autonomia vem desmantelando desde então todo o trabalho anterior de infraestruturação e consolidação dos museus.

A atual dependência funcional dos diretores dos museus tornou-se praticamente absoluta, e o estrangulamento financeiro para atividade também: em 2017, a maioria dos museus nacionais teve montantes para atividade inferiores a 20 mil euros. Exceção feita, aparentemente, ao Museu Nacional de Arte Antiga, embora o exercício de conhecer a distribuição real do orçamento da Direção Geral do Património Cultural padeça das dificuldades de falta de um sistema de informação claro e transparente sobre a cultura.

O financiamento público à cultura tem diminuído em todos os países europeus e a crise não terminou, como todos sabemos. A hagiografia mercantil das indústrias criativas, por exemplo, tem servido para matizar a diminuição do papel dos Estados na cultura, sem, paralelamente, gerar debates alargados e sólidos. Debates capazes de identificarem soluções criativas, verdadeiramente adequadas aos tempos que vivemos, e, sublinhe-se, resultantes daquilo que queremos. Aquilo que queremos não é aquilo que cada um de nós quer, é aquilo que possa resultar de permanentes discussões públicas.

Na cultura e nas artes portuguesas têm-se feito verdadeiros milagres – diria que é a essência de uma certa resiliência portuguesa, habituada a gerir recursos extraordinariamente escassos. Mas a resiliência, em tempos de democracia, deveria originar práticas de participação – não apenas internas ou reduzidas aos possíveis diálogos diretos entre decisores e profissionais. Temos um défice de participação social, ou, como se diz, cívica.  Por isso, reagimos – como agora, a seguir aos resultados dos primeiros concursos – a um modelo de financiamento que fora auscultado, anunciado e objeto de consulta pública.

É fácil ser reativo, fazer análises retrospetivas e acusar os autores, os carrascos e os próprios destinatários. É muito mais difícil saber como mobilizar conversas, encontros, discussões em múltiplos contextos – não estamos habituados. Isso implica dispor de informação rigorosa e clara e de um trabalho de intermediação que legitime esses debates aos olhos da “opinião pública”.

Não basta que muitos sejam resilientes, é preciso que todos sejam envolvidos para a resiliência se traduzir em sustentabilidade: publicitar e discutir os valores, as condições, os recursos e as ações que permitam ao setor cultural e artístico afirmar-se, ser afirmado e ser criticado no espaço público. Sob pena de continuar(mos) à mercê daquilo que seja um hype mediático, a ser substituído pelo próximo.