[weglot_switcher]

Cinquenta anos de democracia em números: o país que era e que passou a ser

Portugal em números não revela tudo o que mudou porque deixa de lado as mentalidades. Mas os números servem sempre para evidenciar que quem os induz já não é a mesma sociedade.
24 Abril 2024, 13h30

No dia em que a democracia portuguesa celebra o seu 50º aniversário, a Pordata, a base de dados estatísticos da Fundação Francisco Manuel dos Santos, divulga um retrato que mostra como Portugal era em 1974 e no país que se tornou depois de cinco décadas em democracia, dando pistas sobre os desafios que ainda persistem.

O país envelheceu. Entre 1974 e 2022, a população em Portugal cresceu de 8,8 milhões para 10,4 milhões e o perfil demográfico alterou-se: há menos crianças e jovens com menos de 15 anos (-45%) e quase triplicou o número de pessoas com 65 ou mais anos (+190%) .

Em cinco décadas, Portugal foi o país da União Europeia onde mais aumentou a população sénior e o 3.º que mais perdeu crianças e jovens. Foi também o país da UE que mais inverteu a posição do seu índice de envelhecimento: de 1.º país com menos idosos por jovens para o 2.º com mais idosos por jovens.

“O envelhecimento demográfico não significa apenas um maior peso dos seniores face às crianças e jovens, mas também que temos menos filhos e que vivemos mais. Hoje, uma pessoa com 65 anos pode esperar viver em média mais 20 anos, mais sete do que há cinco décadas”, refere o estudo.

A composição da população também mudou e a sociedade portuguesa tornou-se mais cosmopolita. Em 1974, era reduzido o número de estrangeiros a viver no país e hoje a comunidade estrangeira representa 7,5% dos residentes. De destacar, com maior importância numérica, os cidadãos brasileiros (240 mil) e do Reino Unido (45 mil).

As famílias também mudaram. Em 1975, passam a ser permitidos os divórcios entre casamentos católicos. Em quase 50 anos, os divórcios aumentam 24 vezes e os casamentos caem para metade. Com a laicização da sociedade, os casamentos católicos perdem expressão: em 1974, 8 em cada 10 casamentos eram celebrados pela igreja católica e hoje não chegam a 3 em cada 10. Em contrapartida, crescem as uniões de facto. De acordo com os Censos de 2021, mais de um milhão de pessoas estavam, nesse ano, em união de facto (11% face a 4% em 2001). E, em 2010, foram registados os primeiros casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

Em consequência da secularização da sociedade, hoje, 6 em cada 10 bebés nascem fora do casamento. Há 50 anos, estes bebés representavam 7% dos nascimentos, não obstante os mais de 15 mil bebés nascidos, em média, todos os anos, de pais e mães não casados.

O aumento da escolaridade, a maior participação da mulher no mercado de trabalho e o acesso generalizado aos métodos contraceptivos contribuíram para o adiar de projetos de maternidade e para o “encolher” das famílias. Hoje, uma família é composta, em média, por 2,5 pessoas e, em 1970, era por 3,7 pessoas. A proporção das famílias numerosas, com 5 ou mais elementos, desce 22 pontos percentuais e cresce o peso das pessoas que vivem sozinhas (em 15 pontos percentuais).

Adiantou-se em cerca de 10 anos  a idade média do primeiro casamento, as mulheres têm o primeiro filho, em média, sete anos mais tarde. Nestas cinco décadas, os nascimentos diminuíram para metade (172 mil para 84 mil) e Portugal passou de 4.º país da UE com maior taxa bruta de natalidade para o 5.º com menor taxa bruta de natalidade, a seguir a países como Itália ou Espanha.

Foi só no período democrático que se generalizou o acesso à saúde, permitindo uma maior longevidade e qualidade de vida. Uma das áreas onde se verificou maior impacto destas transformações foi na sobrevivência dos bebés. A evolução dos cuidados materno-infantis e a evolução das condições socioeconómicas explicam o recuo sem precedentes da mortalidade infantil. Em 1974, Portugal era o país da União Europeia onde mais crianças morriam com menos de um ano: 38 por cada 1.000 nascimentos (a média na UE era de 21). Em 2022, Portugal ocupava o top dez dos países com menor taxa de mortalidade infantil (2,6‰, sendo a média europeia de 3,3‰). É de lembrar que, em 1970, apenas 38% dos partos ocorriam em estabelecimentos de saúde. Cinco anos depois, este valor já era de 61% e, atualmente, praticamente todas as crianças nascem em hospitais.

Estas transformações no sistema de saúde associam-se igualmente à modernização dos serviços e ao crescimento do número de profissionais de saúde. Em cinco décadas, o número de médicos aumentou quase 5 vezes, e o de enfermeiros quase 4 vezes. Em 2021, estavam registados nas respetivas ordens profissionais 564 médicos e 771 enfermeiros por cada 100 mil habitantes. Contudo, os Censos de 2021 registam um número inferior de médicos e enfermeiros que responderam estar efetivamente a trabalhar na área da Saúde, em Portugal.

A democratização do acesso ao ensino também se deu. Em 1970, um em cada quatro portugueses  (25,7%) era analfabeto, o correspondente a 1,8 milhões de pessoas (64% das quais, mulheres). A taxa de analfabetismo baixou para 3,1%, em 2021, atingindo 293 mil pessoas.

Grosso modo, até à década de 1970, as crianças não frequentavam além dos 4 anos do ensino primário, o atual 1.º ciclo, mas com o aumento da escolaridade obrigatória generaliza-se o acesso ao ensino, como demonstra a taxa real de escolarização . Atualmente, com exceção do secundário, mais de 90% das crianças frequentam os diferentes ciclos de ensino . De destacar ainda o peso residual das crianças e jovens a frequentar o ensino secundário em 1974, assim como a minoria das crianças que frequentavam o pré-escolar. Hoje, este primeiro contacto com a escola já é uma realidade para mais de 90% das crianças.

Também o acesso ao ensino superior se tornou uma realidade: em 2023, há cinco vezes mais alunos do que em 1978 (446 mil vs. 82 mil), e há mais mulheres do que homens. De acordo com os Censos de 1970, apenas 49 mil pessoas em Portugal tinham o ensino superior, não chegando a 1% da população com 15 ou mais anos. Os Censos de 2021 registaram 1,8 milhões de pessoas com este grau de ensino, o equivalente a 20% da população; 60% são mulheres.

A revolução de 1974 trouxe grandes conquistas no mundo do trabalho, tais como a implementação do salário mínimo nacional, os subsídios de Natal e de férias ou o direito à greve. Para além do trabalho passar a ser exercido com mais direitos, importa lembrar que, durante a ditadura, o desinvestimento na educação, com os reduzidos anos de escolaridade obrigatória,  e a pobreza levavam muitas crianças a trabalhar desde cedo. De acordo com os Censos de 1960, eram mais de 168 mil e, nos Censos de 1970, registaram-se cerca de 91 mil crianças, entre os 10 e os 14 anos, a trabalhar.

A entrada da mulher no mercado de trabalho é outra das grandes transformações: em 1970, apenas 25% das mulheres com 15 ou mais anos trabalhavam. Em 2021, esse valor é de 46%.

Ainda a destacar, a profunda alteração na distribuição dos trabalhadores pelos grandes setores económicos. Em 50 anos, diminuiu consideravelmente o peso da mão-de-obra na agricultura e pescas (setor primário), decresce também a indústria (setor secundário) e, em contrapartida, cresce o emprego nos serviços e o trabalho terciariza-se.

É só na década de 1970 e 1980 que se concretiza um efetivo sistema de segurança social, no sentido do alargamento da proteção social ao conjunto da população e à melhoria da cobertura das prestações sociais. Entre 1974 e 2022, as pensões de velhice atribuídas pela Segurança Social aumentaram de 441 mil para 2 milhões. Também se registaram importantes avanços na criação de medidas de proteção à infância e à família, ou às situações de maior vulnerabilidade, como o desemprego ou a pobreza. Exemplos destas medidas são o complemento social para idosos ou o rendimento social de inserção. A importância da proteção social é visível pelo aumento das despesas das prestações sociais da Segurança Social: entre 1977 e 2022, estas despesas cresceram de 5% para 12% face ao PIB.

De acordo com os Censos de 1970, era frequente a inexistência de instalações básicas nas casas: 68% não tinham duche ou banheira; 53% não tinham água canalizada; 42% não tinham instalações sanitárias; 40% não tinham esgotos; e 36% não tinham eletricidade.

Nos últimos anos, o aumento dos preços das casas veio relançar o debate sobre a habitação. Apesar de, em Portugal, 70% dos alojamentos de residência habitual serem casas próprias, é de ressalvar que 18% das pessoas diz-se incapaz de aquecer convenientemente a sua habitação e 29% dos inquilinos vivem em sobrecarga financeira com as despesas de habitação.

Conclusão: o dia 25 de Abril foi o primeiro dia de uma revolução lenta mas consistente, que mudou radicalmente o país que era então e que é agora. Ao menos por uma vez, a máxima segundo a qual tudo muda para tudo ficar na mesma talvez não seja verdadeira.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.