As assembleias gerais anuais das Nações Unidas não costumam ser um lugar onde os maiores problemas da humanidade fiquem à porta – mas não é todos os anos que discute as suas próprias dificuldades. O hemisfério norte tem no ativo duas guerras que ameaçam ‘mundializar-se’ – e que a ONU tem gerido com grande dificuldade.
Na Ucrânia, a organização – e mais particularmente o seu líder, o português António Guterres – foi acusada de ter chegado demasiado tarde até junto dos beligerantes, tendo eventualmente perdido a possibilidade de promover um entendimento rápido, antes de uma escalada que ainda não acabou. Quando Guterres finalmente visitou os dois países, já as diplomacias dos mais diversos países estavam a atuar no terreno. E nem o facto de a ONU ter estado por trás da assinatura do acordo que permitiu a exportação de cereais ucranianos via Mar Negro foi suficiente para balançar o mau momento – até porque ficou claro que o acordo ficou a dever-se mais à Turquia que à ONU.
Na Palestina, Guterres foi repetidamente acusado de, sem o assumir, defender a causa palestiniana. Quando poucas semanas depois do início da guerra acusou Israel de ter sido o prevaricador que induziu o ataque do Hamas de 7 de outubro – apesar dos desmentidos de Guterres – a diplomacia israelita exigiu a demissão imediata do secretário-geral.
Num quadro em que a ONU tem um largo histórico de ineficácia – muito por via do travão que constitui a possibilidade de veto dos cinco membros do Conselho de Segurança (Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido), muitos críticos dizem que a segurança mundial exige que as Nações Unidas passem por um momento de reforma, ou mesmo de refundação (segundo os críticos mais cáusticos). Uma das reformas propostas é precisamente acabar com os vetos dos cinco países – que, na prática, impedem a organização de atuar a tempo e em profundidade em quase todas as situações onde a geopolítica internacional faça parte da equação. E como não se passa quase nada que não tenha a ver com geopolítica, a ONU, dizem alguns, está votada a ser constantemente ultrapassada pelos acontecimentos ou ser não mais que um ‘sleeping partner’ no quadro global.
De fora das críticas estão as diversas organizações emanadas do interior da ONU e que fazem no terreno um trabalho que não existiria se as Nações Unidas acabassem.
Para todos os efeitos, a questão ucraniana voltará a estar presente no longo desfilar de discursos e intervenções das dezenas de chefes de Estado e de governo que costumam viajar para a sede da ONU em Nova Iorque. E a Turquia já fez saber que fará o mesmo com a questão palestiniana. Mas o gabinete Recep Erdogan deixou saber que o presidente turco, que fará o seu 14º discurso numa Assembleia Geral da ONU, juntará às suas quase sempre polémicas palavras um pedido de reforma daquele organismo internacional. Aquele que é considerado o país mais problemático da NATO – que mantém relação amistosas com a Rússia – parece estar interessado em elevar o patamar do debate interno, na tentativa de promover qualquer tipo de reforma que possa fazer regressar a ONU a um nível que lhe permita ter uma palavra a dizer no quadro das relações internacionais.
Erdogan, que participou pela primeira vez da sessão de setembro da assembleia em 2005, defenderá um pedido de reforma nas Nações Unidas. “O mundo é maior que cinco”, referindo-se aos membros permanentes do Conselho de Segurança, será um dos seus slogans. “Uma ONU que se renove, que seja mais democrática e transparente, que tenha a capacidade de representar a vontade conjunta de todos os Estados-membros, uma fonte de soluções para conflitos internacionais, vista como a garantia da paz global, respeitada por todos os membros, mais ativa e preventiva, é do interesse comum da humanidade”, disse Erdogan anteriormente. Mais propriamente em 15 de setembro de 2005, recorda o gabinete. De então para cá, nada melhorou.
Apresentado pela sua ‘entourage’ como “uma figura amada em países ignorados ou explorados por superpotências, no mundo islâmico, na Ásia, em África e em outros lugares, Erdogan pediu repetidamente que esses países também tenham uma palavra a dizer nos assuntos internacionais. E essa é outra reforma que Erdogan exigirá. A dúvida é se exigirá também que a ONU reconheça e receba no seu seio, como membro de pleno direito, o Estado da Palestina.
As Nações Unidas já abriram formalmente o período de trabalhos da 79ª Assembleia Geral com um discurso do presidente, Philemon Yang, dos Camarões. Segundo a organização, o debate de alto nível contará com a presença de chefes de Estado e de governo dos 193 países-membros da organização, além de representantes globais a partir de terça-feira, 24 de setembro.
Horas depois de assumir a liderança da Assembleia Geral, Philemon Yang disse que a visão do seu mandato será “a pedra angular construída sobre os princípios da unidade na diversidade, promovendo um ambiente onde cada voz não seja apenas ouvida, mas valorizada”. E defendeu a procura de avanços pela paz, garantindo que “os esforços internacionais para a resolução de conflitos sejam proativos e duradouros”. Yang apontou ainda o desenvolvimento sustentável como foco fundamental, “à medida que o mundo se esforça para equilibrar o crescimento económico equitativo com a gestão ambiental” – prometendo que dará primazia ao multilinguismo na ação à frente do principal órgão deliberativo da ONU.
No topo das prioridades para o novo período da Assembleia Geral, refere ainda ONU, está a discussão de “crescimento económico sustentável, explorando estratégias em favor do crescimento, garantindo sustentabilidade e equidade”. Em segundo lugar, a paz e a segurança continuarão “a ser de suma importância, com a procura de estratégias eficazes de manutenção da paz e resolução de conflitos e a determinação para os resolver”, incluindo na Faixa de Gaza, no Haiti e na Ucrânia. Como terceira questão prioritária para esta nova sessão, Philemon Yang disse que a Assembleia Geral continuará a defender a proteção e a promoção dos direitos humanos. O quarto ponto será abrigar discussões sobre o fortalecimento do direito internacional e das estruturas de justiça como “um dos temas-chave das deliberações”, em particular nos domínios do desarmamento, do controlo das drogas e do combate ao terrorismo internacional.
No evento inaugural da 79ª sessão da Assembleia Geral, o secretário-geral António Guterres disse haver alguma coisa que ainda pode ser feito para a realidade de “um mundo em turbulência”. Resta saber o quê – e se a própria ONU terá ou não margem para ser a organização que um dia pretendeu ser.
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