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“A alteração do regime da prescrição tributária é uma prioridade”

Comissão de reforma do processo tributário liderada por Rogério Fernandes Ferreira, advogado e ex-secretário de Estado, propõe 20 anos para prescrição de dívidas fiscais, eliminando o efeito das interrupções. E ainda regras fiscais para “resolução célere” dos litígios e um prazo único de 90 dias para a execução de decisões favoráveis aos contribuintes, entre outras medidas. Perito faz balanço do trabalho e sinaliza prioridades.
27 Setembro 2025, 09h00

Há um ano foi nomeado presidente da Comissão para a Revisão do Processo e Procedimento Tributário e das Garantias, com o objetivo de acelerar processos entre a Autoridade Tributária e os contribuintes. Quais são as prioridades assinaladas por esta Comissão?
As prioridades da Comissão foram claras desde o início: celeridade, simplicidade e eficácia do procedimento e processo tributários, e reforçar as garantias e os direitos dos contribuintes. Procurámos rever em profundidade o regime dos juros, harmonizar prazos e procedimentos, clarificar direitos de impugnação, rever o regime da prescrição tributária, simplificar, através da desmaterialização, e não menos importante, consolidar diferentes diplomas através da harmonização legislativa. A opção deliberada da Comissão foi a de não promover alterações estruturais, privilegiando intervenções “cirúrgicas” em vez de reformas radicais, porque entendemos que o sistema atual tem funcionado bem e ao longo de muitas décadas.

O que foi proposto em termos de celeridade dos processos? Em que medida as novas tecnologias podem ajudar a essa celeridade e eficácia da justiça tributária?
A Comissão propôs o alargamento de alguns prazos de reação, harmonizando-os nomeadamente na arbitragem tributária, eliminou passos desnecessários, por exemplo em relação ao prazo da impugnação judicial após o ato tácito de indeferimento e formalidades incongruentes, e promoveu a uniformização de prazos únicos para a execução de decisões judiciais. Foram propostos a desmaterialização dos processos, o reforço do Portal das Finanças para que os contribuintes possam consultar o estado de tramitação, a implementação de notificações eletrónicas obrigatórias e a tramitação eletrónica dos processos, incluindo das execuções fiscais e também em sede de arbitragem tributária. Estas medidas procuram reduzir significativamente os tempos de tramitação e eliminar burocracias, permitindo maior transparência e previsibilidade. As novas tecnologias serão aqui fundamentais.

Como ficam as custas processuais e o acesso à justiça tributária?
A Comissão entendeu que era necessário clarificar as regras e facilitar o acesso à justiça tributária. Assim, propôs-se a previsão expressa do princípio da gratuitidade do procedimento tributário, a isenção de encargos para contribuintes em situação de insuficiência económica devidamente comprovada, a redução da taxa de justiça agravada para metade, com âmbito de aplicação mais abrangente, e a revisão dos critérios de fixação do valor da causa para assegurar maior correspondência entre o valor e o benefício económico efetivo da ação.

Que alterações espera ver concretizadas?
O Governo tem naturalmente plena liberdade para avaliar o mérito das propostas apresentadas e de adotar a metodologia e as medidas que julgue mais adequadas para executar. As propostas de alterações e as recomendações não constituem uma reforma do sistema, mas a introdução de um conjunto de medidas circunscritas e diretas que visam ganhos de eficiência, de qualidade e de fiabilidade no contencioso tributário num caminho para uma justiça tributária mais célere, previsível e efetiva.
Sem prejuízo do que afirmei, entendo positivo que de imediato fosse adotado um prazo único de 90 dias para a execução de decisões favoráveis aos contribuintes, a harmonização das notificações eletrónicas, a uniformização dos prazos da reclamação graciosa – por exemplo em IRS e IRC – e o acesso através do Portal à informação sobre o estado dos processos. São medidas relativamente simples de implementar, mas que podem fazer grande diferença. A alteração do regime da prescrição tributária é uma prioridade, estabelecendo um prazo máximo absoluto de 20 anos e eliminando o efeito duradouro das interrupções. Outra inovação importante é a criação do procedimento para resolução de litígios fiscais internacionais.

Quais as questões cuja resolução não depende de alterações legislativas, mas de melhor gestão?
De acordo com o mandato que foi conferido à Comissão as propostas apresentadas pressupõem alterações legislativas concretas. Não competia à Comissão formular recomendações de carácter gestionário. No entanto, várias questões identificadas dependem mais de “melhor gestão” do que de alterações legislativas. Só alterações legislativas não chegam, é necessário um compromisso político para dotar de recursos adequados a administração fiscal e os órgãos de justiça tributária. A formação e capacitação das pessoas, a reorganização interna dos serviços, a melhoria da comunicação com os contribuintes e a implementação de novas tecnologias de inteligência artificial são áreas onde essa gestão mais eficaz pode produzir resultados imediatos sem necessidade de mudanças legais. É essencial também haver mudança de postura institucional da Autoridade Tributária e Aduaneira, cada vez mais transparente, colaborativa e responsável, continuar a investir na digitalização e no planeamento, designadamente antes de novas leis entrarem em vigor, e evitar problemas informáticos e atrasos.

Os contribuintes podem esperar mudanças que vão tornar a máquina mais oleada?
Consideramos que as propostas apresentadas constituem um contributo para uma justiça tributária mais célere, previsível e efetiva. Se grande parte das propostas de alteração legislativa e recomendações forem adotadas, acredito que os contribuintes podem efetivamente esperar melhorias visíveis. Passaremos a ter prazos mais previsíveis, procedimentos mais simples, execuções mais rápidas, consultas de procedimentos mais acessíveis, eliminando-se redundâncias normativas, passando a legislação processual e procedimental a ser mais clara. Espera-se também maior colaboração por parte da Administração Tributária. O objetivo é colocar o contribuinte em primeiro lugar!

O que é proposto para melhorar a coerência entre os diversos códigos tributários e os prazos legais?
Para melhorar a coerência, a Comissão propôs a unificação de prazos, a uniformização terminológica com outros diplomas e entre diplomas, a harmonização da impugnação judicial e da ação administrativa, aproximando-as numa forma processual única, mais clara e coerente, e a eliminação de contradições que hoje existem entre diferentes códigos e diplomas. Esta harmonização é fundamental para dar previsibilidade e segurança jurídica aos contribuintes. Saliento também a consolidação normativa, através da concentração de regimes dispersos, e a eliminação de preceitos obsoletos.

“Medidas simplificam a vida dos contribuintes e reforçam
a confiança no sistema”

Como fica o reforço dos direitos dos contribuintes e da proteção contra abusos?
O reforço dos direitos e das garantias dos contribuintes é transversal a praticamente todas as propostas, uma vez que foi um dos objetivos primordiais da Comissão e do seu mandato. Propôs-se o alargamento dos direitos de impugnação para incluir quem suporta o imposto por repercussão económica, e não apenas por repercussão legal, a consagração expressa e concreta do princípio da tutela jurisdicional efetiva, a proteção contra litigância de má-fé aplicável também à Administração Tributária, o direito à informação sobre a tramitação de procedimentos, a clarificação do âmbito da impugnação judicial, garantindo que os indeferimentos em sede de reclamação graciosa ou recurso hierárquico possam ser discutidos em tribunal, a garantia de decisões fundamentadas e vinculativas por parte da Autoridade Tributária, bem como a definição de prazos claros. Foi reposto algum equilíbrio no regime dos responsáveis subsidiários e maior proteção no acesso a informação sensível, como a bancária. Estas e outras medidas reforçam significativamente a segurança jurídica ou a posição do contribuinte em face da Administração tributaria.

Que medidas propõe para maior transparência, simplificação e eficácia administrativa?
Para maior transparência, a Comissão propôs a obrigação de a Administração Tributária disponibilizar eletronicamente a legislação tributária atualizada, assim como as regras de liquidação de imposto, a consolidação das orientações genéricas na Lei Geral Tributária, a publicação obrigatória de decisões de primeira instância dos tribunais administrativos e fiscais, a consagração do princípio da boa-fé como orientador da atividade administrativa tributária, a eliminação de redundâncias e a harmonização das notificações. Tudo isso contribuirá não só para simplificar a vida dos contribuintes, mas para reforçar a confiança no sistema.

Como será harmonizado o Código de Procedimento e Processo Tributário com a agenda anticorrupção?
O relatório apresentado pela Comissão não aborda especificamente questões anticorrupção, mas as propostas de alteração legislativa e as recomendações alinham-se claramente com essa lógica. As medidas de transparência e de reforço do contraditório contribuem indiretamente para um ambiente menos propício a práticas inadequadas. A obrigatoriedade de executar decisões judiciais, a publicidade das decisões e os deveres reforçados de fundamentação da Administração são medidas que aumentam a responsabilização e a integridade do sistema. Todos estes aspetos são um contributo para melhorar a transparência e caberá ao poder político estabelecer essa ligação com a Estratégia Anticorrupção para os próximos anos.

Quais foram os principais desafios da Comissão de Reforma?
O principal desafio consistiu em cumprir no prazo estabelecido o mandato que nos foi conferido e a necessidade de alcançar consenso entre todos os membros da Comissão em matérias mais sensíveis, o equilíbrio entre modernização e manutenção da estabilidade do sistema, associados à amplitude do mandato, que exigia tratar praticamente todo o procedimento e processo tributário. Os trabalhos da Comissão duraram nove meses, entre julho de 2024 e abril de 2025. Nesse período começámos por realizar um vasto conjunto de audições, onde ouvimos mais de cem personalidades, entre os quais académicos, magistrados, advogados, consultores, técnicos e dirigentes da Autoridade Tributária e Aduaneira, e instituições do setor público e privado. Seguidamente debatemos soluções e, por fim, redigimos as propostas de alteração legislativa e as nossas recomendações.

Como é que avalia uma descida transversal da taxa de IRC, tendo em conta que só menos de metade das empresas pagam
o imposto?
Entendo que a avaliação deve ser feita a dois níveis. A nível puramente fiscal onde resultam efeitos positivos, em termos de competitividade, para o sistema fiscal português. E a nível orçamental onde importa ter atenção ao impacto nas contas públicas decorrente da perda imediata de receita fiscal. No entanto trata-se de matéria que não se enquadra e extravasa o âmbito da missão da Comissão a que presidi e sobre a qual não desejo, neste contexto, pronunciar-me. O nosso relatório não aborda questões de política fiscal, nem alterações às taxas de IRC. O nosso mandato centrou-se, exclusivamente, em questões procedimentais e processuais e nas garantias do contribuinte – não em políticas de tributação material.

Quais devem ser as prioridades fiscais e não fiscais do Executivo?
Na qualidade de Presidente da Comissão não desejo também pronunciar-me, neste momento e nesta sede, sobre essa questão. O nosso trabalho foi o de apresentar propostas técnicas de alteração legislativa e recomendações para a modernização do contencioso tributário. Como referimos no relatório, trata-se de um projeto de intervenção legislativa de caráter incremental e técnico que não vincula o legislador, mantendo o processo de reforma em aberto para essas decisões políticas futuras.

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