Não se percebe a indignação da ministra da Saúde com a questão da ADSE. Aliás, quem devia estar indignado é todo e qualquer português do setor privado que, se quiser receber tratamento médico fora do Serviço Nacional de Saúde (SNS), está por sua conta e risco, e nunca se viu o Governo a puxar as orelhas às seguradoras por terem um poder discricionário.
Mas vamos por partes. A ADSE é o seguro de saúde dos funcionários públicos. O problema coloca-se desde logo aqui. Faz sentido que exista? Hoje sim, na medida em que é financiado a 100% pelas contribuições dos beneficiários, garantia dada por João Proença em 2017. Mas não foi sempre assim. Foi com a troika em Portugal que foram tomadas medidas para que este sistema não bebesse de outras receitas do Estado, porque até então as contribuições dos beneficiários não eram suficientes. Devemos nós, contribuintes, financiar um seguro de saúde dos funcionários públicos? Categoricamente não. Temos o dever, porque vivemos num Estado que protege os seus – funcionários públicos e privados –, de financiar o SNS. Ponto.
Como não podemos corrigir os erros do passado, regozijemo-nos pelo facto de a troika ter metido ordem na casa. O que me leva ao segundo ponto: a ADSE é o que no sistema privado chamaríamos de fringe benefit. Dado pelo Estado quando contrata um colaborador que, em média, ganha mais 500 euros mensais do que um trabalhador do setor privado. Uma diferença de valor que resulta da reposição dos rendimentos cortados no período da troika e de carreiras com maior progressão e longevidade (análise e números de 2017 da Síntese Estatística do Emprego Público). Ou seja, ganham melhor e têm mais benefícios. E querem mantê-los outra vez à custa do setor privado, neste caso os hospitais privados.
Um problema dos funcionários públicos e dos hospitais privados? Sim, mas não só. Este fringe benefit dos funcionários públicos toca-nos a todos. Antes porque o financiávamos, agora porque se terminar, teremos cerca de 1,5 milhões de pessoas que, se não contratarem um seguro privado de Saúde, vão cair, potencialmente, no SNS.
E o que está em causa é mesmo a sustentabilidade do sistema, agora que os principais grupos privados de Saúde bateram com a porta e a Cruz Vermelha se prepara para fazer o mesmo por falta de acordo em relação às tabelas de comparticipação que estão completamente desajustadas da realidade. Com este movimento concertado, têm o poder negocial. Está errado? Não.
Está na altura de o Estado aprender a negociar fora do pedestal da autoridade, com uma ADSE que trata os privados como a Autoridade Tributária trata os contribuintes. É que ao contrário dos impostos, os privados sobrevivem sem o Estado, mas o Serviço Nacional de Saúde colapsa sem aqueles. Uma vez que hoje qualquer funcionário público pode sair da ADSE, as seguradoras cá fora estão disponíveis para os receber. Os funcionários públicos vão descobrir o que custa a qualidade do serviço de saúde que receberam até agora. E esperemos que este Governo não dê mais uma machadada na qualidade do nosso SNS. Porque, esse, já o pagamos todos os meses e a peso de ouro.