Resolvida que esteja a importante questão da identificação jurídica na Res Digitales discutida no artigo anterior, para que esta tenha valor jurídico de forma autónoma, também vamos precisar de identificar e certificar os outros elementos das transacções que careçam de registo ou de prova no Estado de direito. Naturalmente, o objectivo é chegar à validade legal de uma qualquer transacção informática exercida em regime auto-execução não-custodial, sendo essa a verdadeira natureza da Res Digitales.

Como já discutimos aqui, a Inglaterra e o país de Gales (mas não a Escócia, nem a Irlanda do Norte) estarão preparadas para aceitar os Smart Contract no seu ordenamento jurídico (i.e., Common Law), referindo-se aos mesmos por Smart Legal Contract, apesar de ainda deixarem de fora a questão do direito de propriedade nesta primeira fase. Analisemos a questão.

Em primeiro lugar, quando se fala de direito, nem tudo pode ser executado nas DLT, mas apenas o que for passível de desmaterialização (i.e., programado em computadores), e de forma inequívoca, para que a autoxecução possa ter lugar. Estou a referir-me à propriedade de bens, direitos e a tudo o que, sendo verdadeiro, pode ser vertido em cláusulas claras e rigorosas.

É bem provável que dar factos como provados seja o mais arriscado e difícil dos passos do processo jurídico, o que não deixa de limitar a aplicabilidade dos Smart Legal Contract, porque tudo o que não possa ser dado como provado não pode ser tokenizado de forma a ser reconhecido pela economia regulada. Além disso, também há que prever a possibilidade de erro, o que parece ser um problema sem solução para uma tecnologia que não esquece, mas não é.

A Blockchain é extremamente eficaz a processar eventos representados por chaves criptográficas, as quais são inerentes ao próprio funcionamento de todo o sistema. Já a informação do mundo exterior à Blockchain carece tecnicamente dos chamados oráculos. É um nome péssimo, pois parece que a Blockchain está a adivinhar seja o que for, apesar de tal não ser verdade, pois esses oráculos apenas transportam a informação externa para o contexto da auto-execução ecossistémica. Então, que garantia temos sobre a veracidade dessa informação externa, incluindo a representação de bens e direitos? Pois bem, há essencialmente duas possibilidades.

A primeira, e mais simples, é a existência de sensores tecnológicos certificados nos quais se possa confiar. A Internet of Things pode ajudar, em particular se criptografada com certificados geridos na Blockchain. Porém, a IoT é limitada quanto à informação que pode ser detectada dessa forma. Então, como respeitar na Blockchain o resultado das decisões legais, em função dos valores e das regras de cada sociedade em particular?

A segunda forma de transportar a verdade externa para o interior das DLT passa pela aplicação da lei. Tem de ser a lei a ditar qual a informação juridicamente válida, e quais os seus mecanismos de autenticação, sendo a identificação digital jurídica discutida no artigo anterior apenas o primeiro passo. Assim, será cada entidade devidamente autorizada e munida do seu certificado a transportar a referida informação para a Res Digitales. Este elemento de prova vai acontecer, por exemplo, para os bens sujeitos a registo, pois vão ser transportados para os Smart Legal Contract pelas entidades já hoje responsáveis pelo seu registo legal.

Mais uma vez, esta proeza é conseguida com a aplicação dos token certificados, elemento-chave na arquitecura da identificação auto-soberana (Self Sovereign Identity) já discutidos no artigo anterior desta série.

Uma coisa é certa: toda a informação processada nas DLT carece de prova através da respectiva certificação, e é a verificação desses certificados que permite concluir sobre a validade legal dos elementos constantes nas suas transacções. Aliás, um dos elementos essenciais aos contratos é a livre expressão da vontade dos seus intervenientes, pelo que a certificação desse tipo de elementos contratuais é realizada pelos próprios, bastando para isso verificar a validade dos certificados de identificação dos mesmos. Afinal, este é um processo tão simples quanto o que já hoje acontece com a assinatura qualificada da chave móvel digital.

E pronto. Assim se processará a certificação legal dos elementos das transacções nos Smart Legal Contract da Res Digitales.

Os dois próximos e últimos artigos discutem como integrar nos Smart Legal Contract o consentimento das entidades participantes nas transacções, bem como a garantia de verificação da validade dos certificados, para assim dar finalmente vida à Res Digitales.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.