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Ana Paula Pêgo, investigadora: “A Ciência pode dar muito ao país e os cientistas não têm medo da competição”

Portugal não pode mudar de visão ou alterar políticas de investimento na ciência a cada orçamento ou governo, diz Ana Paula Pêgo. A investigadora do i3S, que vai liderar a Sociedade Europeia de Biomateriais, abraça o enquadramento da razão científica numa visão humanista.
14 Novembro 2021, 19h30

Tem 48 anos, quase metade dos quais dedicados ao desenvolvimento de biomateriais para promover a regeneração do sistema nervoso. Investigadora e Vice-Diretora no i3S da Universidade do Porto, responsável pelo pelouro da Estratégia e Criação de Valor, foi recentemente eleita presidente da Sociedade Europeia de Biomateriais, pretexto para esta entrevista em que também analisa o estado da arte da Ciência em Portugal e nos dá a sua visão para o futuro.

O que é isto dos biomateriais?
Na última reunião de consenso sobre definições na área dos biomateriais, em 2018, em Chengdu, na China, foi aceite pela nossa comunidade que um biomaterial é uma substância, de origem natural ou sintética, que foi projetada, sozinha ou como parte de um sistema mais complexo, para direcionar, pelo controlo das interações com componentes de sistemas vivos, o curso de qualquer procedimento terapêutico ou de diagnóstico, quer na medicina humana quer na veterinária.

Que papel têm nas nossas vidas?
A importância dos biomateriais é tal que dificilmente alguém nos nossos dias aceitaria viver sem eles, dada a sua utilização e presença a todos os níveis. São usados para a preparação de suturas, cateteres, lentes de contacto, próteses da anca, pacemakers cardíacos, para listar apenas alguns dos exemplos mais comuns. E há muito mais potencial principalmente nas áreas da Medicina Regenerativa e da entrega de fármacos. As vacinas para a COVID são um ótimo exemplo: algumas baseiam-se em biomateriais que servem de veículo de entrega do material genético que irá despoletar a resposta imune.

Aos 48 anos vai presidir à Sociedade Europeia de Biomateriais. Quando começou a ouvir falar em biomateriais?
Tinha os meus 19-20 anos.

Em que circunstâncias foi?
Uma das primeiras memórias que tenho é dos tempos de faculdade, onde vi esse termo pela primeira vez num livro dos anos 60 dos meus pais sobre materiais. No fim do livro aparecia um breve parágrafo mencionando o grande potencial do uso de polímeros no desenvolvimento de uma classe de materiais em expansão: Biomateriais! Nessa mesma altura juntei-me ao grupo do Prof. João Paulo Ferreira, na Escola Superior de Biotecnologia onde, num estágio voluntário, dei os primeiros passos no uso de biomateriais para o desenvolvimento de sistemas de libertação controlada de fármacos. Aí apaixonei-me definitivamente pela área.

Que influência teve isso no evoluir da sua vida?
Formei-me em Engenharia Alimentar na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica. Curso que gostei muito de fazer e me deu excelentes bases, mas no fim sabia que queria aprender mais sobre a área dos Biomateriais e da Engenharia Biomédica. Por isso, fui à procura. Tive a sorte de me cruzar com pessoas fantásticas que me ajudaram a procurar e a escolher o local onde fiz o meu doutoramento. E assim dedico-me, há 23 anos, ao desenvolvimento de biomateriais para promover a regeneração do sistema nervoso.

Como olha Bruxelas para os biomateriais?
Pelo seu impacto, olha claramente com cuidado. E tem sido feito muito investimento nesta área, tendo sido financiados desde projetos mais fundamentais que levam ao desenvolvimento de novos biomateriais, até projetos de desenvolvimento e implementação no mercado de novos produtos que têm por base biomateriais.

Na geografia desta área, que lugar ocupa a Europa?
Ocupa um lugar central, mas neste momento o tabuleiro tem cada vez mais jogadores de peso. Veja-se o que evoluiu a China nos últimos 20 anos. E países como a Índia serão, no futuro, cada vez mais influentes. Por isso, há que continuar a trabalhar para manter a inovação e o desenvolvimento cá.

Existe espaço de melhoria?
O que tem de ser feito para aumentar a competitividade europeia nesta área?
Penso que há sempre espaço para melhorar. A Comissão Europeia é muito clara no plano estratégico do novo programa-quadro (Horizonte Europa), apoiando projetos que possam trazer novos produtos para a clínica nos anos mais próximos. Espera-se que em muitos desses projetos venham a ser desenvolvidos dispositivos médicos e novas terapias avançadas, que serão baseados ou alavancados por biomateriais. Isto é uma aposta muito clara na inovação.

O filósofo francês Gilles Lipovetsky disse ao JE que a inteligência é a única riqueza da Europa”.
Qual é a sua perspetiva?
Não li a entrevista, mas do que conheço do trabalho de Lipovetsky, aquilo a que ele chama de inteligência é a razão científica. Ele considera a razão científica a melhor oportunidade de resolvermos os problemas da humanidade atuais e futuros. Por isso defende que devemos dar prioridade à formação intelectual universitária, à investigação científica nas empresas e nas universidades. A Europa tem na valorização da razão científica uma das suas maiores forças. Concordo com esta visão; percebo que ele veja isso como uma das nossas maiores riquezas. E concordo também com a importância que Lipovetsky dá à expressão artística como forma de nos realizarmos. Também nesta área a Europa é pioneira. Uma coisa que prezo muito na Europa é o enquadramento da razão científica numa visão humanista, em que queremos que as necessidades básicas do ser humano sejam supridas.

Que lugar ocupa a Ciência em Portugal? Na escala de zero a 20, como a classifica?
Esta pergunta tem muitas dimensões e poderá ter várias respostas. Atualmente, como país, valorizamos a ciência e somos bastante receptivos a novas tecnologias. Por isso, acho que nós merecemos uma classificação muito elevada. Em termos da qualidade científica temos feito um trabalho notável, com áreas em que somos realmente inovadores. A área dos biomateriais é uma delas. Mas no global ainda há muito a fazer; há que promover a translação; há que fomentar o investimento público e privado na investigação. Ainda não estamos na média dos países da União Europeia e longe da meta dos 3% do PIB definidos no Tratado de Lisboa. Mas se analisarmos o que e onde publicamos e normalizarmos para os recursos que temos em Portugal para a ciência, disparamos novamente para um ótimo lugar. Por isso, acho que conseguiríamos fazer mais e muito melhor com investimento mais robusto na investigação e desenvolvimento.

António Costa Silva, autor do documento base do Programa de Recuperação e Resiliência, diz que os portugueses são criativos, o problema é colocar as ideias na economia. Como se pode gerar riqueza a partir do conhecimento que é produzido na academia?
No contexto europeu, Portugal é agora considerado um dos países mais inovadores.Temos boas ideias, mas ainda temos muito que caminhar para as tornarmos realidade com expressão económica. Esta caminhada no sentido da inovação e desenvolvimento começou há vários anos e está agora a dar os seus frutos. Na edição de 2020 do European Innovation Scoreboard, Portugal subiu seis lugares, abandonando o grupo de “moderadamente inovadores” e entrando no de “fortemente inovadores”. Nesta categoria estão países como Bélgica, Alemanha, Áustria, Irlanda, França e Estónia. Mas ainda há muito caminho a percorrer e este trabalho tem de ser continuado e, acima de tudo, reforçado: desde as nossas escolas, nas quais os alunos devem ser mais expostos, e mais cedo, ao ciclo da inovação, passando pelo cuidado em protegermos a nossa propriedade intelectual, em criarmos mecanismos de aceleração de inovação, fomentando a criação de start-ups, e na necessidade de diversificar as fontes de investimento. É um círculo virtuoso que tem de ser mantido para que possamos tirar dividendos económicos que possam eles mesmos retro-alimentar o ciclo.

Acontece nos biomateriais?
A área dos biomateriais tem ainda muito por onde crescer no nosso país. Temos pessoas com formação de muita qualidade. Veja-se o curso de Bioengenharia da U.Porto: tem atraído, desde a sua criação, os nossos melhores alunos, que depois têm uma excelente empregabilidade dentro e fora do país. Mas há que fomentar a criação de novas empresas na área. Criar centros nucleadores, como é o caso do Biocant, parece-me uma solução ganhadora.

Os laboratórios colaborativos criados pelo ministro Manuel Heitor são o caminho para o desenvolvimento da ciência e da investigação e a criação de riqueza em Portugal? Existe algum na área dos biomateriais?
Não existe nenhum CoLab totalmente dedicado à área dos biomateriais. Mas vários dos CoLabs aprovados envolvem e/ou desenvolvem biomateriais de alguma forma. Não diria que os CoLab são “o caminho”, mas um dos caminhos para a criação de riqueza. Como o próprio nome indica, procuram fortalecer a colaboração entre instituições de ciência, tecnologia e ensino superior e o tecido económico e social. A meu ver, só com colaboração e criação de sinergias podemos evitar desperdiçar recursos, que são limitados, em redundâncias e visões simplistas de problemas complexos.

O Governo levou a proposta do OE para 2022 ao Parlamento e a maioria dos deputados votou contra. Se pudesse, que medida inscreveria no documento?
O Orçamento de Estado foi chumbado. Pelo que, olhando pela perspetiva do copo meio cheio, temos uma oportunidade de fazer melhor. Este Governo gizou como um dos seus objetivos investir no nosso capital humano por via da educação e formação dos nossos jovens e recursos humanos, e também pela valorização do emprego científico. Assim, concordo com a necessidade de apoiar a formação universitária, incluindo a continuação do investimento na formação avançada (doutoramentos) e garantir no orçamento os recursos necessários para que as nossas instituições possam não só manter, mas aumentar contratos de trabalho para os investigadores. Mas, no que toca à ciência, há que ir além da formação e da empregabilidade de investigadores. Como disse antes, falta a Portugal ter uma visão estratégica de longo prazo, com um investimento continuado na formação, investimento significativo em projetos de investigação e inovação, manutenção de recursos humanos que suportam a estrutura científica nacional e infraestruturas. Relativamente a estas últimas, a renovação periódica do parque de equipamentos é essencial. Senão perdemos competitividade. É algo que penso ser essencial inscrever no próximo orçamento: o investimento na remodelação do parque de equipamentos científicos.

O Prof. Luís Miguel Bernardo documenta num livro extraordinário “As Causas do Atraso Científico em Portugal – Uma Digressão Histórica”.
O que é necessário, no seu entender, para construir um sistema científico robusto? O país está nessa rota?
Interessante a sua referência a este estudo. Acho muito importante conhecermos a história para percebermos porque somos e estamos assim. Nesse livro é dito “a ciência moderna, surgida no século XVII, foi durante séculos considerada em Portugal uma atividade inútil, perigosa, culturalmente indesejável ou economicamente desinteressante.” Quando eu nasci, ser investigador(a) era visto por alguns como uma atividade para alguém que não quer trabalhar, o “eterno estudante” que não retribui o investimento feito pela sociedade na sua formação. Felizmente, o 25 de Abril veio mudar a perceção da importância da ciência e em Mariano Gago vejo aquele que delineou, no século passado, uma estratégia para a ciência em Portugal. E para tal trabalhou nas várias frentes que considero essenciais: formação, fomento de projetos de investigação, investimento em infraestruturas e equipamento, e promoção da cultura científica e tecnológica em Portugal (a rede de Centros Ciência Viva são obra sua – só cidadãos informados podem valorizar o papel da ciência). E, com esta visão a longo prazo, mudou a ciência no nosso país e colocou-nos no bom caminho. Agora há que estabelecer novas metas e garantir que o sistema é sustentável. Penso que é isso que nos faz falta. Pensar a longo prazo, traçar a meta e trabalhar em conjunto com todos os parceiros. Não podemos mudar de visão ou alterar políticas de investimento na ciência a cada orçamento, ou mesmo a cada governo. Só com uma visão a longo prazo e uma estratégia orçamental estável conseguiremos ser competitivos. A Ciência pode dar muito ao país e os cientistas não têm medo da competição. Precisamos de meios, nas frentes todas. Não chega sermos apenas mais.

O que é o mundo que tem agora nas mãos? Pode traçar um breve retrato da Sociedade?
A Sociedade Europeia de Biomateriais (ESB) foi criada em 1976 para agregar os vários investigadores, clínicos e empresas europeias que, até à data, tinham contribuído significativamente para o desenvolvimento de aplicações médicas deste tipo de materiais. Desde a sua fundação, a Sociedade tem-se dedicado a criar colaborações e a estabelecer pontes entre investigadores e utilizadores das tecnologias, para que a área possa evoluir mais depressa e melhor. É nas conferências anuais da ESB que se tem materializado a maioria das iniciativas. Para além de ciência discutem-se questões regulamentares, e promove-se sempre a translação. Este ano, eu, juntamente com os meus colegas Cristina Martins (i3S) e Pedro Granja (i3S), organizámos a 31ª Conferência da ESB e dedicámos uma sessão à criação de start-ups nesta área. Pela primeira vez, conseguimos envolver Business Angels, colocando em contacto os nossos investigadores com capitais de risco. O feedback das partes foi extremamente positivo. São pequenas ações assim que têm ajudado a Sociedade a crescer.

Com que expectativas encara o desafio?
Abracei este desafio com entusiasmo e sentido de missão. Cada um dos presidentes anteriores deixou a sua marca e contribuiu para que a nossa sociedade evoluísse.

Que ideias leva consigo para a liderança da Sociedade?
Considero que estamos num momento de viragem, no qual temos que perceber o que mais pode fazer a ESB pelos seus membros. Temos que fazer chegar mais e melhor informação aos nossos membros, 70% dos quais têm menos de 40 anos, num mundo inundado de “informação”. Estamos ativamente a participar em mais redes europeias e a criar pontes com outras Sociedades para ligar os nossos membros ao maior número de partes interessadas e a decisores políticos. Estamos também a refletir sobre como serão as conferências do futuro. Nada ficará igual depois da COVID. Por fim, gostaria de conseguir atrair mais membros de países menos representados, como por exemplo os países bálticos, onde a área está a ter cada vez mais expressão. n

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