1. A fome no mundo vem a alastrar desde há seis anos. Quase um terço da Humanidade, ou seja, cerca de 2,4 mil milhões de pessoas, encontra-se num quadro de insegurança alimentar.

A população em risco está distribuída tanto pelo hemisfério Norte, como pelo hemisfério Sul e até apanha 10% da população europeia.

A Covid-19 expôs, com toda a crueza, as grandes fragilidades da interdependência entre os países na área agrícola e alimentar, aliás como em toda a economia, com relevo para as dificuldades acrescidas de funcionamento dos circuitos de abastecimento, geradas por um processo de globalização, completamente desregulado e anarquizante.

No mundo, poucos são os países, com dimensão, produtores de matérias-primas agrícolas. China, EUA, Brasil, Índia e Rússia apresentam uma forte concentração da produção mundial.

Tomando como paradigma o trigo, um dos bens alimentares mais importantes, temos para uma produção mundial de 749.467.531 toneladas (safra de 2020/2021), os cinco maiores países a deterem 52.3% do global, sendo a China o maior produtor, com 131.696.392 (17,6%), Índia 93.500.000 (12,5%), Rússia 73.294.568 (9,8%), EUA 62.859.050 (8,4%) e Canadá 30.486.700 (4,0%).

No escalão de 20 a 30 milhões de toneladas/ano, perfilam-se mais seis países com a França à cabeça (29.504.454; 3,9%), a Ucrânia em sétimo lugar do mundo, (26.098. 830; 3,5% do total mundial), ocupando a Turquia o último do grupo, com 20,6 milhões de toneladas de produção (2,7%). Estes dados mostram a elevada concentração num número reduzido de países, pois os 11+ realizam 72,2% da produção global de trigo.

Para além desta concentração da produção, como o caso do trigo revela, regista-se ainda uma tendência para a redução do número de variedades de espécies cultivadas (tipo clones). É o que está a acontecer com a banana. Tentou-se apurar a espécie mais produtiva e isso trouxe problemas. O processo tornou-se vulnerável a doenças específicas.

Por outro lado, contrapõem os especialistas que sistemas sustentados em maior variedade oferecem melhor resistência. Mas a produtividade exige, e a acumulação financeira, o lucro, faz correr riscos. Vem o fungo, não importa, muda-se de produção. O negócio à frente!

Uma outra série de factores, como as catástrofes naturais, tem vindo a afectar o sistema agroalimentar. Por exemplo, na última colheita, a produção de trigo na Índia sofreu uma quebra de 20%, devido a vagas de calor. Os produtores estão indignados, pois sendo o Governo quem adquire a maior parte, estabeleceu um preço mínimo abaixo do mercado, reduzindo as expectativas de rendimento e, posteriormente, condicionou a exportação. Neste aspecto, a Índia foi acompanhada por uma vintena de outros países. Tudo isto são medidas que perturbam o funcionamento dos circuitos dos bens alimentares.

Uma crise mundial ou duas numa?

2. Nos últimos 15 anos, esta é a 3ª crise alimentar. De acordo com os especialistas e estudos FAO, as razões de fundo da crise continuam a ser as mesmas. Problemas de estrutura da organização do sector na área da produção, ligados a uma forte concentração do comércio mundial na mão de quatro grandes grupos multinacionais que controlam entre 80 e 90% do comércio mundial de cereais, cujos nomes são bem conhecidos, Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus.

Em termos de países, cinco também controlam 66,5% da exportação mundial de trigo: Rússia, EUA, Canadá, França e Ucrânia.

Face a estes dados é de apontar, na presente fase, para a existência de duas crises que, de algum modo, se sobrepõem. A de natureza estrutural, que tende a replicar-se enquanto não forem tomadas as políticas de fundo para remover o tipo de organização sectorial existente, o que oferece resistências por parte das quatro multinacionais que lhes permitem uma significativa margem de especulação, e uma outra crise associada no presente a um aumento continuado de preços que havia começado dois anos antes da guerra Rússia-Ucrânia. Assinale-se que, em 2021, os preços internacionais dos bens alimentares registaram um aumento de 30%.

A configuração da crise actual

Apesar das perturbações que a invasão da Ucrânia pela Rússia provocou no sistema alimentar mundial e noutros domínios da economia, convém ser isento e não apontar a guerra como a grande causadora da crise alimentar.

Como se viu, o sistema alimentar, devido à sua composição produtiva e comercial tem tendência para gerar especulação de mercado e, consequentemente, crises. Aliás, várias entidades internacionais, como a Oxfam, apontam esta situação estrutural como a causa mais importante da miséria e da fome no planeta.

A guerra em nada contribuiu, assim, para o modelo de organização do sector. Segundo, a outra face da crise – a subida vertiginosa de preços – também já se tinha declarado antes.

É evidente que a guerra trouxe perturbações ao sistema, mas não é a raiz da crise alimentar, nem tem a dimensão que os políticos do Ocidente lhe estão a atribuir, mesmo juntando os impactos da Rússia e Ucrânia, sendo evidente pela dimensão que os impactos da Rússia na comercialização mundial são bem maiores que os da Ucrânia.

Situando a questão

A Ucrânia contribui para a produção mundial, em média, com 3,5% da produção de trigo e 9,4% das exportações mundiais. A posição no comércio é relativamente mais significativa pois os grandes produtores como a China e a Índia exportam pouco. A Federação Russa produz, em média, 9,8% e é o maior exportador mundial com uma quota de 16,4%.

Os dois países, por razões diferentes, têm hoje problemas na distribuição comercial. A Rússia pelas sanções o que coloca problemas de pagamentos e entregas, e a Ucrânia na não expedição pelo mar negro. Sobre este aspecto, diz Jonatham Bentham, analista de defesa marítima do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, a Ucrânia “defendeu o seu litoral com minas e navios estrategicamente afundados”, acrescentando, “mesmo que a guerra termine amanhã, pode levar meses ou anos para tornar o Mar Negro seguro”.

Sem dúvida. Há países afectados pelas dificuldades de acesso ao trigo de origem ucraniana, caso do Líbano, entre outros, onde a dependência é de 80% e, muitos mais ao trigo da Rússia, como o Egipto.

Mas atenção: a falta de acesso pelo Mar Negro ao trigo ucraniano deve-se, principalmente, à inoperacionalidade provocada pela Ucrânia. Dir-me-ão, em nome da defesa militar! Pois, mas era preciso ter previsto as consequências.

Concluindo, anda-se a especular politicamente com a crise alimentar mundial derivada da guerra, o que não tem fundamentação técnica. As crises já estavam em curso por uma oferta desregulada e pela subida de preços anterior à guerra, decorrente de especulação e falhas de mercado.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.