A forma como o regime populista totalitário chinês lidou com o surto de coronavírus começou por ser criticada devido à violação de direitos humanos e liberdades individuais. No entanto, essa atitude crítica alterou-se devido ao crescimento exponencial do número de infetados e de mortos em países europeus, designadamente em Itália e Espanha, ao passo que a situação começava a ser controlada na China.
A forma lenta e desajustada como os governos italiano e espanhol – que, por acaso, também integram ou são liderados por partidos populistas – lidaram com a fase inicial da epidemia provocou uma onda de aceitação da estratégia seguida por Pequim. Aliás, houve mesmo quem preconizasse a replicação do modelo em terras ocidentais. Uma forma de dizer que a democracia pode ceder o lugar à ditadura sempre que o interesse público o exigir. Uma revisitação do modelo clássico que criou o ditador como magistrado extraordinário.
Trata-se de uma interpretação demasiado perigosa para passar em claro, mesmo aceitando que tempos excecionais requerem – e possibilitam até certo limite – medidas de exceção.
De facto, qualquer que seja a dimensão do perigo – e a atual pandemia representa uma ameaça enorme – a democracia é o regime que melhor defende o interesse público. Desde logo porque, como se viu em Portugal com o decretar do estado de emergência no todo nacional e da situação de calamidade em Ovar, o regime democrático dispõe de figuras e procedimentos constitucionais para acorrer a situações que colocam em risco a segurança coletiva.
Depois, porque só a democracia permite uma justa avaliação das responsabilidades individuais e coletivas. Ao contrário das ditaduras onde, como se viu no caso chinês, as vozes denunciadoras da ameaça são silenciadas, em democracia, a liberdade de expressão, se convenientemente usada, ajuda à formação da opinião pública. Sendo óbvio que continuará a haver julgamento na praça pública, não é menos verdade que o normal funcionamento das instituições acautela os direitos, no pressuposto da exigência dos deveres, de todos aqueles que são chamados a gerir a res publica.
Finalmente, se a ditadura opta pela rápida criação de um bode expiatório cujo sacrifício apazigua os ânimos sociais e possibilita a manutenção do statu quo, em democracia os cidadãos dispõem de uma arma muito mais assertiva. Uma arma que usam quando colocam a cruz no boletim de voto. É nesse ato que os eleitores mostram o grau de satisfação e de descontentamento com a praxis governativa. Tal como indicam a forma como valorizam as propostas alternativas apresentadas pela oposição.
Como decorre da História, nem sempre as escolhas feitas pela maioria correspondem aos anseios dos cidadãos. Afinal, a democracia é uma construção diária e, por isso, eternamente incompleta. Uma constatação que não implica – bem pelo contrário – uma diminuição do grau de exigência dos cidadãos.
Voltando à pandemia com que nos vemos confrontados, a luta vai ser difícil e teimosamente demorada. Os sacrifícios, a incerteza e a dor vão marcar os tempos mais próximos – um ativo que por ter sido obtido na dor nos dá maior capacidade de reivindicação no que concerne à qualidade da democracia que queremos e a que temos direito.
Um século atrás, um poeta andava preso em liberdade pela cidade. Agora, há que ficar responsavelmente preso em casa para que a cidade possa vir a saudar o regresso da liberdade.