A cada crise económica agrava-se a distribuição de rendimentos. É o que se antecipa hoje perante a subida galopante da inflação e a resistência em aumentar salários nominais, enquanto grandes empresas anunciam lucros extraordinários.

Por entre a tempestade, surgem soluções tradicionais para o problema como defender o aumento dos salários dos mais desfavorecidos, respostas que se confundem muitas vezes com o papel da Segurança Social. Mas eliminar a desigualdade é mais do que erradicar a pobreza, exigindo a compreensão das dinâmicas que afetam os rendimentos das chamadas classes médias, que têm no trabalho a sua fonte principal de riqueza e que constituem os principais recursos produtivos do país.

A compactação dos salários a que se tem assistido nas últimas décadas é aniquiladora: destrói a procura interna e o capital humano de um país, gerando uma fuga de cérebros à procura de melhores oportunidades e desincentivando até de estudar. Por tudo isto, a desigualdade é hoje o grande obstáculo do crescimento económico, logo, do Estado de bem-estar e da coesão social.

A visão da teoria económica

A desigualdade entrou no discurso político, sendo mesmo convertida em Objetivo de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, a somar à redução da pobreza.

Há muito, no entanto, que inquieta os economistas. Em 1955, Kuznets apresentava a sua curva em U-invertido, a ideia que a desigualdade tenderia a aumentar com o crescimento económico, para depois diminuir. Piketty e Saez retomam o tema, demonstrando que a desigualdade está em expansão desde os anos 1980, sobretudo em economias desenvolvidas, sendo movida pela concentração da riqueza nos muito ricos.

Para Milanovic, mais otimista, a desigualdade terá diminuído à escala global, potenciada pelo crescimento do rendimento per capita de grandes economias, como a China e a Índia. Segundo Kanbur, Ortiz-Juarez e Sumner (VoxEu, 2022), dentro de uma década ocorrerá um efeito boomerang sobre a redução da desigualdade global, isto é, uma tendência para a inversão do movimento descrito por Milanovic.

A teoria preocupa-se ainda com a forma como a desigualdade se manifesta em outras dimensões como o género, ou a raça, ou com o facto de ter uma incidência espacial diferenciada. Neste sentido, as cidades, o local onde o crescimento é potenciado, são preocupantes pois, se concentram níveis elevados de riqueza, são também propícias à coexistência de infraestruturas modernas com bolsas de privação extrema.

Produtividade, crescimento e desigualdade

A crise financeira reforçou a ideia de que a desigualdade se amplia nos períodos de recessão, levando muitos autores a adotar a tese da estagnação secular de Summers – a procura é inibida pelo excesso de poupança dos mais ricos que é característica de situações desiguais, contribuindo para a estagnação económica.

Sabe-se também que o desacelerar da produtividade e as taxas persistentemente baixas de investimento e crescimento que caraterizam os últimos 50 anos foram acompanhadas pelo aumento da desigualdade. Ora, existirá causalidade entre os dois fenómenos? É o crescimento fraco que amplia a desigualdade, ou será esta que enfraquece o ritmo de crescimento?

Inspecionemos o nosso grupo de integração. O objetivo último da União Europeia seria aproximar o nível de vida dos seus Estados-membros, promovendo a convergência real. Os tratados que previam a livre circulação de bens e fatores produtivos pretendiam tornar este movimento natural, a abertura económica conduzindo a maior integração e crescimento.

O que sabemos sobre a convergência europeia? Em 2019, a propósito dos 20 anos do euro, o Banco de Portugal fazia o balanço da aproximação entre a economia portuguesa e os seus parceiros europeus, concluindo que, entre 1995 e 2018, Portugal perdeu posições no ranking do rendimento per capita europeu. Mais, nos últimos 25 anos, particularmente para os Estados-membros que aderiram antes de 2004, não se verifica uma relação clara entre o nível de rendimento inicial e o comportamento posterior de crescimento dos países, isto é, não há sinais de convergência.

Uma análise do índice de Gini, uma medida de desigualdade que se aproxima de uma média, revela que, em 1995, as economias mais desiguais de entre os 12 fundadores da zona euro eram Espanha, Grécia, Irlanda, Itália e Portugal. Estas posições mantiveram-se até 2019, nalguns casos com uma pequena contração, enquanto os restantes Estados-membros, mais ricos, viram aumentar os seus níveis de desigualdade, numa convergência perversa com os parceiros.

Na zona euro, nos últimos 25 anos, enquanto o crescimento económico desacelerou, a desigualdade aumentou. A disparidade na distribuição do rendimento é o novo normal no continente do Estado de bem-estar.

Note-se que os países identificados como mais desiguais formam os PIIGS, o acrónimo depreciativo pelo qual seriam conhecidos após a crise da dívida soberana. Os seus níveis relativos de pobreza e desigualdade não foram irrelevantes para o aumento do défice e da dívida que resultaram da crise financeira, gerando uma recessão profunda que, mais uma vez, compactou o rendimento salarial, agravando a desigualdade e prejudicando o crescimento e a recuperação destes países.

Compressão salarial: para lá dos suspeitos do costume

É comum apontar fatores que contribuem para a redução dos salários como causas da desigualdade: a globalização que alarga o mercado de trabalho e estende a concorrência entre trabalhadores a outras economias; a perda da capacidade reivindicativa dos sindicatos; a automação que substitui trabalhadores por maquinaria, incluindo robôs;  a maior escolarização de uma parcela da população que é capaz de acompanhar a corrida tecnológica; a evasão fiscal, uma forma de desviar rendimento para os lucros em detrimento dos salários.

A cada vez maior separação entre o crescimento da produtividade e o crescimento dos salários seria o resultado da conjugação destas realidades.

Para o Economic Policy Institute, a supressão dos salários que ocorreu nas últimas décadas foi provocada pela erosão do poder dos trabalhadores face aos empregadores e alimentada por políticas públicas que favoreceram deliberadamente os mercados. Assim, nos EUA, os salários dos últimos 60 por cento dos licenciados são hoje mais baixos do que em 2000, contra uma escalada dos salários dos executivos e do sector financeiro.

Mas um consenso em torno da rejeição do uso de políticas macroeconómicas também terá tido o seu papel na concentração do rendimento e da riqueza. Banir o uso da política orçamental e fiscal como estabilizador económico, uma tendência que se acentuou após a crise financeira, culminou numa política monetária extremamente expansionista. O corolário óbvio foi a redução das taxas de juro de referência e a inflação dos ativos financeiros e reais. Estes, detidos sobretudo pelas classes mais ricas, terão contribuído para aprofundar a desigualdade, desta feita através da riqueza.

Hoje, sobretudo nas grandes cidades, onde se concentram os melhores empregos, a combinação de salários baixos e preços da habitação exorbitantes é um impacto evidente da desigualdade. No caso português, é mais um fator que instiga a migração, especialmente dos mais jovens e mais qualificados.

Esta é um vetor marcante da forma como a desigualdade prejudica o crescimento – esvaziando o país dos seus melhores fatores produtivos depois de suportar os encargos com a sua formação. À fuga de cérebros tende a seguir-se a fuga do capital físico – as empresas não investirão se não tiverem procura, o que depende em primeiro lugar do poder de compra da população do país – e o declínio do crescimento.

Quebrar a maldição da desigualdade

O problema da desigualdade não é mera retórica política e exige soluções urgentes. Protelar a sua resolução conduzirá a uma espiral de maior desigualdade e contração do crescimento. Que políticas públicas conseguirão resolvê-lo de raiz? As que consigam ultrapassar o efeito de estagnação secular ao mesmo tempo que permitam fixar recursos produtivos no país, isto é, políticas que atuem simultaneamente do lado da procura e da oferta.

A medida mais ajustada para responder a estas duas vertentes é repor os salários reais que, por promover a recuperação do poder de compra das famílias, consegue, por um lado, sustentar a procura interna e, por outro, reter no país a sua força produtiva qualificada. Esta medida não deve ser confundida com o aumento dos salários mínimos que, apesar do seu relevante papel social, é insuficiente para gerar uma dinâmica de inovação e de crescimento sustentado. A subida dos salários deve ser transversal, invertendo a tendência global de esmagamento dos salários das últimas décadas.

Compete aos Governos atuarem como força motriz desta transformação, dando o exemplo no setor público e criando estímulos para que o setor privado aja na mesma direção. Incentivos fiscais para as empresas que aumentem os salários a par dos aumentos da produtividade são uma via possível. E, naturalmente, legislar para eliminar as situações de precariedade no mercado de trabalho.

Outra frente paralela será melhorar a eficácia da política fiscal para evitar fugas ao fisco por parte de empresas e trabalhadores. A dimensão elevada do setor informal em Portugal é prejudicial à redistribuição e cria uma sensação de injustiça relativa por parte dos que declaram os seus rendimentos na íntegra e por isso são sujeitos a uma carga fiscal mais elevada. Este sentimento prejudica a coesão social e geracional entre indivíduos e alimenta ideias populistas que são nocivas para a democracia e resolução da desigualdade.

E, claro, a harmonização fiscal na zona euro tem que ser debatida e resolvida, evitando que alguns estados-membros façam dumping fiscal a outros.

Aplicadas em conjunto, estas medidas poderão extinguir o vírus da desigualdade e impedir que este extinga a economia.