Há um conhecido aforismo jurídico, atribuído a Santo Agostinho, segundo o qual a necessidade não tem lei. Num Estado de Direito, porém, não é de todo assim. A necessidade tem uma lei própria e, no caso português, os estados de exceção constitucional estão regulados com bastante densidade pelo artigo 19º da Constituição e pela Lei do Estado de Sítio e do Estado de Emergência.

Foi ao abrigo destas disposições que o Presidente da República declarou, a 18 de março, o estado de emergência e o renovou, a 2 de abril, abrindo a porta a uma torrencial normatividade de exceção, que corre paralela à preexistente ordem jurídica de normalidade.

Considerando o enorme impacto que estes dois decretos presidenciais tiveram e têm na vida dos portugueses – em si mesmos e por força dos inúmeros diplomas do Governo que lhe dão execução –, é extraordinário o escasso debate jurídico que têm gerado.

Por muito que as pessoas compreendam a necessidade de suspender alguns dos seus direitos fundamentais – as liberdades de deslocação, de reunião, de manifestação e de culto, os direitos de propriedade e de iniciativa económica, e alguns direitos dos trabalhadores –, seria de esperar que a medida concreta da compressão destes direitos fosse discutida caso a caso, com toda a atenção.

E há muito para discutir, tanto mais que parece inevitável uma segunda renovação do estado de emergência. Desde logo, à medida que os dias vão passando, e que a emergência de saúde pública parece ser controlável, é a emergência económico-financeira que se apresenta como verdadeiramente avassaladora.

Acontece, contudo, que o “estado de emergência” admitido pela Constituição – com a forte suspensão de direitos que implica – responde apenas e só à situação de calamidade pública que estamos a viver. Serve para proteger a vida, a integridade física e a saúde das pessoas, preservando a paz social e o regular funcionamento das instituições públicas.

O combate à crise económico-financeira – agora e por todo o tempo em que durarem as ondas de choque desta pandemia – tem de ser feito com respeito por todos os direitos fundamentais dos cidadãos, apenas com as limitações e restrições que são permitidas em circunstâncias de normalidade constitucional. Em particular, o apoio à subsistência das empresas, a proteção do emprego e a garantia do rendimento das pessoas têm de ser conseguidos num quadro de pleno exercício das liberdades económicas e dos direitos dos trabalhadores.

No plano constitucional, portanto, a crise económica e financeira decorrente deste vírus não é substancialmente diferente da crise da dívida soberana que atingiu Portugal há uma década, bem como vários outros países da zona euro.

Nesse sentido, é com preocupação que se regista – do primeiro para o segundo decreto presidencial de declaração do estado de emergência – um significativo alargamento do âmbito da suspensão do direito de propriedade, da iniciativa privada e até de direitos dos trabalhadores, sem que essa extensão esteja direta e especificamente justificada pelas razões que determinaram a presente situação de exceção constitucional.

Ao decreto de declaração do estado de emergência exige-se não apenas uma enunciação rigorosa dos direitos suspensos, mas também que os seus efeitos sejam claros e devidamente delimitados e fundamentados.