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A nova lei que consagra “Israel como Estado-nação para o povo judaico” institui um regime de “apartheid”?

O Knesset aprovou a “Lei básica: Israel como Estado-nação para o povo judaico”, determinando que o povo judaico “tem um direito exclusivo à auto-determinação nacional”. Mais, Jerusalém “unida” é a capital e o hebraico é a única língua oficial. Com que implicações para o processo de paz israelo-palestiniano?
20 Agosto 2018, 13h02

No dia 19 de julho de 2018, o Knesset (Parlamento do Estado de Israel) aprovou a denominada “Lei básica: Israel como Estado-nação para o povo judaico”, com 62 votos e favor e 55 votos contra. A nova lei determina que “Israel é a pátria histórica do povo judaico e, nela, ele tem um direito exclusivo à auto-determinação nacional”, consagra a cidade de Jerusalém “unida” como capital (ignorando a histórica pretensão dos palestinianos em relação a Jerusalém Oriental) e estipula que o hebraico é a única língua oficial (ou seja, o árabe perde o estatuto de língua oficial). Trata-se de uma lei com valor constitucional, inscrita nas leis básicas do Estado de Israel.

Como é que interpreta a aprovação desta nova lei? Que implicações terá no processo de paz israelo-palestiniano? “A aprovação da chamada ‘Lei do Estado-nação’, adotada recentemente no Knesset israelita, faz parte dos esforços do Governo israelita de direita de redesenhar todas as estruturas e articulações do Estado ocupante, de acordo com uma ideologia religiosa. Algo que se está a materializar através de um conjunto de leis, que o Governo de Benjamin Netanyahu começou a legislar desde 2009 como sendo leis básicas, equivalentes à Constituição. Esta lei, racista, carrega em si uma mensagem política clara, enviada pelo Governo de direita do Estado ocupante à comunidade internacional”, responde Fadi Alzaben, encarregado de negócios da Missão Diplomática da Palestina em Portugal.

“Mensagem que transmite a rejeição absoluta de qualquer esforço para resolver politicamente o conflito com base no princípio da solução de dois Estados”, prossegue Alzaben. “Também é uma negação anunciada da existência histórica, civilizacional, cultural e nacional do povo palestiniano na terra da Palestina. Algo que foi proclamado por Avi Dichter, do partido Likud, político que propôs o projeto desta lei e que afirmou, logo após a sua aprovação: ‘Esta lei confirma que não havia ninguém antes de nós nesta terra e que não haverá ninguém depois de nós”. Esta lei é considerada uma extensão da chamada ‘Lei de Regresso’, aprovada em 1950, que fechou a porta ao regresso dos palestinianos expulsos à terra da sua pátria, abrindo simultaneamente a porta à imigração dos judeus para o país ocupante, como se este fosse o ‘Estado do povo judeu esteja onde estiver’. A aprovação desta lei racista e discriminatória fez cair a máscara, para sempre, mostrando a incoerência gritante das alegações do país ocupante que se intitula como sendo ‘o único país democrático no Médio Oriente'”.

Por seu lado, Esther Mucznik, estudiosa de temas judaicos, considera que “a nova lei tem um carácter essencialmente simbólico, porque na verdade não altera a realidade existente. Tal como resulta do voto das Nações Unidas para a partilha da Palestina, a 29 de novembro de 1947, o Estado de Israel tira a sua legitimidade do consentimento das nações, mas também, como está escrito na Declaração de Independência, do ‘direito natural do seu povo de ser, como todas as nações, senhor do seu destino no solo do seu próprio Estado soberano’. Israel é desde a sua criação, em 1948, o Estado-nação do povo judeu, onde este exerce de facto o seu direito natural à auto-determinação e no qual a língua hebraica, embora partilhe com o árabe e o inglês o estatuto de língua oficial, na prática é a língua oficial de comunicação. Isto não significa que o inglês e muito principalmente o árabe deixe de constar, não só como língua falada e ensinada, mas também nos documentos oficiais. Isso faz parte do reconhecimento da importância da minoria árabe no país e do direito à sua língua”.

“Não creio que esta lei tenha alguma implicação no chamado ‘processo de paz israelo-palestiniano’, porque este, infelizmente, é de facto inexistente”, sublinha Mucznik. “As centenas de rockets que caem diariamente em Israel não são propriamente uma mensagem de paz. No entanto, a nova lei poderá ter como consequência o reforço das forças mais radicais tanto de um lado como do outro”.

 

“A paz só terá lugar no quadro de dois estados independentes”

Na prática, esta nova lei inviabiliza a eventual solução de um Estado binacional, tornando obrigatória a solução de dois estados? “O atual Governo israelita não aceita uma entidade palestiniana, nem um Estado palestiniano”, afirma Alzaben. “A evidência disso é clara, passaram-se décadas em negociações e não resultaram em nada, a não ser em cada vez mais colonatos, confiscação e ‘judiação’ de terras e construção do muro de separação racista, o muro da vergonha que devora os territórios palestinianos e que é um obstáculo perante o estabelecimento de um Estado palestiniano. Sem esquecer as guerras sucessivas que levaram à destruição das infraestruturas de qualquer Estado futuro, entre elas as guerras contra o nosso povo na Faixa de Gaza, que sofreu com o massacre de milhares de inocentes, onde se incluem crianças, mulheres e civis, e com o ferimento de muitas centenas de pessoas. Acrescentando ainda a tudo isto a utilização de uma política descabida de detenção israelita contra o nosso povo, na qual milhares de prisoneiros permanecem encarcerados, entre eles mulheres, crianças e detidos administrativos, sem julgamento. Tudo o que foi mencionado acima mostra de uma forma rápida e clara que a política seguida por Israel é a política da não aceitação de uma entidade e de um Estado palestiniano independente e soberano”, acusa o diplomata palestiniano.

“A solução de um Estado binacional é inviável e não é devido a esta lei, mas devido à própria situação de guerra latente ao longo dos 70 anos de existência do Estado de Israel”, argumenta Mucznik. “Este ponto é, aliás, unânime entre a maioria esmagadora do povo judeu que tem plena consciência de que seria o fim de Israel, não só como Estado democrático mas como Estado tout court. A ser possível, a paz só terá lugar no quadro de dois estados independentes e soberanos. Mas isto pouco tem a ver com esta lei: tem a ver com vontade politica, coragem politica e confiança politica. Com a obrigação por parte dos palestinianos do abandono definitivo do sonho insensato e irrealista de destruir Israel e dos israelitas de lembrar que a vocação sionista inicial não era a redenção messiânica da terra, mas sim construir um lar onde os judeus pudessem finalmente ser donos do seu destino”, adverte.

 

“Reconhecimento da dignidade igual para todos os seres humanos”

Concorda com as acusações que se está a oficializar assim, em letra de lei, um regime de apartheid em Israel? “Dia após dia, apercebemo-nos dos perigos catastróficos e das dimensões coloniais e racistas da chamada ‘Lei do Estado-nação’. Esta lei é um guarda-chuva para a aprovação de ideologias, políticas e programas do Governo de direita em Israel, principalmente no que diz respeito à colonização e ‘judiação’. Consideramos que o silêncio da comunidade internacional incentiva a implementação destas políticas de ocupação. Como tal, exigimos um mecanismo internacional de proteção para o nosso povo e a obrigatoriedade de Israel respeitar o Direito Internacional e as Convenções de Genebra. As ações de Israel nos territórios palestinianos são um resultado da passividade, indiferença e negligência flagrante no cumprimento das obrigações, resoluções e leis internacionais, algo que encoraja Israel a persistir na violação destas leis e normas como se fosse um Estado acima da lei, desrespeitando, descaradamente, a comunidade internacional”, responde Alzaben.

“Do ponto de vista teórico do Direito e do Direito Constitucional, a nova lei aprovada por Israel põe, definitivamente, em causa que o Estado de Israel possa ser descrito como um Estado de Direito”, prossegue. “Em primeiro lugar, porque a nova lei é formalmente contrária ao princípio da igualdade, ou, por outras palavras, contradiz com o princípio de proibição de qualquer tipo de discriminação. Como é do conhecimento geral, a afirmação e a protecção da igualdade são condições sem as quais um Estado de Direito não pode existir, já que a sua fundação é o reconhecimento da dignidade igual para todos os seres humanos. Em segundo lugar, o secularismo é um dos fundamentos de um Estado de Direito. Logo, ao se vincular Israel exclusivamente ao povo judeu, o seu carácter secular, como Estado, é posto em causa”.

“Por último, mas não menos importante, é obrigação de um Estado de Direito proteger os direitos das minorias. Este não é apenas um argumento de natureza teórica. Na prática, muitos exemplos mostraram que quando um Estado protege exclusivamente uma maioria, daí resulta a criação de cidadãos de diferentes classes. Enquanto os cidadãos de ‘primeira classe’ desfrutam da proteção do Estado e do reconhecimento dos seus direitos, os cidadãos de ‘segunda e terceira classes’ estão sujeitos à discriminação sistemática, já que não desfrutam do reconhecimento formal ou material (ou proteção) dos seus direitos. Os pontos acima mencionados mostram que a nova lei viola alguns dos princípios mais essenciais de um Estado de Direito, tornando-se definitivamente num sistema de apartheid“, conclui Alzaben.

Na perspetiva de Mucznik, “as pessoas que fazem acusações de apartheid deveriam ir a Israel e verificar com os seus próprios olhos. Nas ruas das cidades de Israel, nas suas universidades, comércios e escolas cruzam-se israelitas judeus, árabes cristãos e muçulmanos, protegidos pela mesma lei, embora nem sempre com a mesma eficácia. Também se cruzam no Parlamento, onde estão representados, além dos partidos políticos, os grupos étnico-religiosos, nomeadamente árabes. Em Israel, a liberdade religiosa está inscrita na lei: a soberania pertence ao povo e não à Torá. Assenta no sufrágio universal e segundo o princípio da separação de poderes. Os direitos cívicos são assegurados pela independência do sistema judiciário, pela prática parlamentar, por uma imprensa vigorosa e por uma opinião pública muito politizada e pouco inclinada ao respeito cego pela autoridade. É esta população que é o principal garante dos direitos democráticos de todos os cidadãos, incluindo obviamente os das minorias”.

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