Num organismo que durante anos funcionou sem estar formalizado nos tratados europeus, que não tem atas públicas e onde tudo o que é revelado para o exterior são declarações ou comunicados recheados de eufemismos e lugares-comuns, para não porem em causa a unanimidade das decisões tomadas nos encontros, é difícil vislumbrar o que se passa por detrás da cortina.
O mais recente livro de Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças grego, é um raro testemunho das forças em presença quando os ministros da Zona Euro se reúnem, no que é conhecido como Eurogrupo. Escrito com recurso a gravações que o próprio fazia com o telemóvel, durante as reuniões, “Comportem-se como adultos” (Editora Marcador) traça um retrato impiedoso dos líderes políticos europeus durante a primavera e verão de 2015, quando o Syriza chega ao poder e quer pôr termo às medidas mais emblemáticas do programa da troika.
O Eurogrupo foi o principal palco político onde a Europa decidiu esmagar as pretensões da esquerda grega. E a figura em primeiro plano era Wolfgang Schäuble, o poderoso ministro das Finanças alemão, ainda que uma série de outras personagens tenham tido papéis de relevo.
O primeiro ultimato com três dias de Governo
O primeiro contacto de Varoufakis com a força do Eurogrupo dá-se apenas três dias depois da tomada de posse do Governo Syriza. Num expediente sem precedentes, ditado pela preocupação com um partido que tinha ganho com uma campanha antiausteridade, o presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, visita Varoufakis em Atenas. É acompanhado por uma eminência parda de Bruxelas: Thomas Wieser, o presidente do Grupo de Trabalho do Eurogrupo. Este organismo tem o papel aparentemente neutro de preparar as reuniões dos ministros das Finanças com documentos técnicos, para os governantes tomarem depois as decisões políticas, mas a realidade é diferente. O grupo de trabalho acaba por afunilar as escolhas que são discutidas, ao tomar como boas apenas as visões que estão de acordo com o consenso político das instituições europeias. Wieser era o “fiel da balança” da Zona Euro, como lhe chama Varoufakis. Neste primeiro encontro, a mensagem do Eurogrupo é clara: o Governo Syriza deveria respeitar os compromissos assumidos ao abrigo do Memorando de Entendimento – na prática, deveria repudiar todas as propostas eleitorais que haviam sido legitimadas pelos gregos, nas urnas. “O atual programa tem de ser concluído, caso contrário não há mais nada”, avisa Dijsselbloem. Caso não houvesse recuo, o caminho estava subentendido: o BCE fecharia a torneira aos bancos gregos e Atenas seria por certo forçada a levar a cabo um Grexit, para restabelecer um sistema de pagamentos nacional. “Estás a dizer-me na prática: ‘Compromete-te com um programa que não vai funcionar ou sais da Zona Euro’. Há outra leitura para o que estás a dizer?”, questiona Varoufakis. O presidente do Eurogrupo encolheu os ombros e sorriu, recorda o ex-ministro grego. O encontro termina com uma conferência de imprensa que se tornou célebre, com Varoufakis a afirmar que não iria trabalhar com a troika, e com Dijsselbloem algo perdido na tradução do grego.
Seria o primeiro de muitos confrontos entre os dois líderes políticos. E esse encontro seria um cartão de visita para a receção que o ministro do Syriza iria ter no seu primeiro Eurogrupo, algumas semanas mais tarde.
Impasse desde a primeira reunião
No verão de 2015, Varoufakis chegou a afirmar em público que o Eurogrupo era uma “orquestra bem afinada”, dirigida pelo ministro Schäuble. No livro, a descrição da primeira reunião pormenoriza um pouco mais o modus operandi do grupo de ministros, que funciona numa mesa retangular. Nas extremidades estão o presidente do Eurogrupo, o presidente do Grupo de Trabalho do Eurogrupo, o presidente do BCE (Mario Draghi), os representantes do FMI (Christine Lagarde) e da Comissão Europeia (Pierre Moscovici e Valdis Dombrovskis). Os ministros das Finanças sentam-se nos dois lados mais compridos. “Do mesmo lado que Schäuble estavam aqueles que vim a considerar as suas majoretes: os ministros das Finanças finlandês, eslovaco, austríaco, português, esloveno, letão, lituano e maltês. O meu lugar era diagonalmente oposto ao de Schäuble, com os demais esbanjadores, num bonito alinhamento […]”.
Nessa primeira reunião, depois de Varoufakis apresentar o propósito de renegociar os termos do memorando, uma tarefa sufragada pelos eleitores gregos, o ministro alemão pediu para falar. A frase inicial foi lapidar: “Não se pode permitir que as eleições alterem a política económica”. Depois do discurso do alemão, “várias das suas majoretes pediram a palavra para o apoiar”. Mesmo entre os governantes que discordavam da austeridade, o grego não encontrou apoios. “No caso de um grupo pequeno mas significativo, com França no centro, por medo de que Schäuble lhes impusesse austeridade no futuro, se o contestassem”. De facto, apesar das palavras quase sempre simpáticas que Varoufakis recebia nos encontros em privado, as posições oficiais mostravam uma total falta de disponibilidade para montar um novo programa menos austero na Grécia.
Depois dessa reunião, várias outras deram em coisa nenhuma. Em sucessivos impasses, parte considerável do tempo servia para discutir os termos em que o comunicado final deveria ser emitido, já que não havia qualquer tipo de entendimento. Num beco sem saída, a tensão foi subindo de tom. Varoufakis conta que Dijsselbloem chegou a solicitar a Alexis Tsipras, via email, que demitisse o ministro das Finanças grego, com o argumento de que estaria a impedir o avanço das negociações. Mais tarde, já com as duas partes em rutura quase completa, o holandês impõe que uma reunião com representantes do Governo de Atenas fosse feita sem o seu ministro das Finanças.
Dijsselbloem chega a reunir o Eurogrupo sem a presença da Grécia – uma exclusão de um Estado-membro sem precedentes. A história acabou como se sabe: Alexis Tsipras sacrificou Varoufakis, que saiu do Governo, e sacrificou as promessas eleitorais, acatando mais um pacote de medidas de austeridade, em tudo semelhante às anteriores.
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