Em “O Pátio das Cantigas”, um dos melhores comediantes portugueses de sempre, Vasco Santana, criou um dos mais notáveis monólogos de que há memória: falava com um candeeiro. Este, como imaginamos, não lhe podia responder. A classe política portuguesa, sem ter no seu seio comediantes à altura de Vasco Santana, apesar dos esforços, dedica-se agora a fazer comédia estilo República das Bananas. Rasteira, pobre e sem graça. Julga que a sociedade portuguesa é o candeeiro de hoje de Vasco Santana. Mas ninguém acha piada ao que anda a fazer. Portugal está a transformar-se num pequeno Pátio das Tolices.

Enquanto não toma posse o novo Governo, que se antevê seja uma versão com “botox” do anterior, a leal oposição vai-se entretendo a tentar descobrir quem poderá ser o Incrível Hulk que conseguirá aguentar quatro anos a clamar no deserto contra o doutor António Costa. O emprego não é muito atraente para alguns dos principais príncipes do PSD e, ao CDS, ninguém liga neste momento. A única dúvida decente é se ideologicamente a IL e o Chega conseguirão que o PSD troque a sua Cartilha Maternal por um ensaio de Milton Friedman ou um romance de Ayn Rand como livrinho de cabeceira. De resto, o país agita-se com o preço da gasolina e pouco mais.

Este é o país do som do silêncio, numa versão pouco entusiasmante de “The Sound of Silence”, dos Simon & Garfunkel. O doutor António Costa e a sua corte vivem o seu momento Luís XIV: o Estado sou eu! Melhor: o dono do som e do gramofone sou eu. Como se a informação transparente deixasse de ser importante. A DGS emite agora um papelinho semanal sobre a Covid e a sua evolução. Segundo alguns entendidos, os dados são poucos, desconexos e atrasados. Isto é: parece que a Covid acabou.

 

 

O PSD, por exemplo, outrora um Grilo Falante sobre o tema, clama algo? Não. Uma juíza, a doutora Catarina Vasco Pires, decide que o senhor Mário Machado pode abdicar de ser controlado porque vai para a Ucrânia, “considerando a situação humanitária” vivida ali. Como? O senhor Machado vai, na realidade, fazer treino militar com outros colegas neonazis e o Estado português permite isso, candidamente, apesar da ministra da Justiça ter ficado muito nervosa, segundo parece. Nada que admire: o doutor Rendeiro foi passear até à África do Sul, enquanto a sua mulher ficava a tomar conta (em nome do Estado) de uns quadros que foi vendendo, e ninguém reparou.

O país do silêncio é brilhantemente sintetizado pelo doutor Durão Barroso, que passa por ser um dos homens mais poderosos do sítio, quando depois de ter acreditado piamente que o senhor Saddam Hussein tinha “armas de destruição maciça”, também acha que houve “alguma complacência” da Europa com o senhor Putin quando era presidente da Comissão Europeia. Não ele, claro! Nunca reparou naquilo que foi o verdadeiro assalto ao sector político ocidental pelo dinheiro russo. Estava distraído, claro. Não foi apenas o senhor Schroeder, que o senhor Barroso acusa logo. Foi o ex-chanceler alemão e muitos outros, que foram hipnotizados pelas toneladas de dinheiro que caíram nas sociedades ocidentais, em forma de gás natural, de investimentos em Londres lavando o dinheiro roubado pelos chamados oligarcas, e de dádivas a partidos políticos, sob a batuta do senhor Boris Berezovsky, cujo pupilo foi o senhor Abramovich, hoje cidadão português.

Nos territórios entre a Rússia e a Ucrânia operaram, durante anos, máfias russas e ucranianas (com um interesse comum: o dinheiro), onde se fazia tráfico de gás, seres humanos, ouro e tudo o mais, perante a distracção dos ocidentais, a começar pelos alemães chefiados pela senhora Merkel, mais interessados nos negócios próprios (e independentes dos interesses de toda a UE) e no castigo através da austeridade dos “ingratos” do sul, do que nos valores democráticos. O dinheiro caía do céu e ninguém fazia perguntas. Sobretudo sobre a destruição de Grozny onde o senhor Putin começou há muitos anos a sua estratégia de reconstrução do império. Não soviético, mas de capitalismo de Estado.

A recessão democrática da Europa começou aí. As democracias deixaram de ser capazes de defender os seus próprios princípios e abriram as portas para a via do populismo, do autoritarismo e da ditadura em troco de “negócios”. Agora não voltámos à Guerra Fria, que dividiu o mundo em termos ideológicos, entre comunismo e democracia liberal. Agora é tudo uma questão de comércio e de vitória no mercado, com concepções mais ou menos musculadas de sociedade. Resta ao Ocidente o valor da liberdade, porque os seus líderes claudicaram em todas as outras frentes, rendidos ao dinheiro.

No meio de tudo isso Portugal vai fazendo a sua vidinha pobretana, pacata e, agora, silenciosa. Portugal é um país que foge da mudança como da sua própria sombra. Prefere uma desilusão conhecida a uma ilusão desconhecida. Há algo de claramente romano na forma como se gere o país. No período de expansão do Império Romano os grandes líderes do sistema político, os “patronus”, rodeavam-se de “cliens” (ou clientes). O “patronus” controlava o acesso às áreas vitais do poder, algo que os que circulavam à sua volta não conseguiam. Mas como não havia recursos disponíveis para todos, os líderes geriam a porta de entrada para o paraíso dos recursos. Se pensarmos bem, e com excepções que merecem a nossa admiração, é assim que tem funcionado a sociedade portuguesa nos derradeiros séculos.

Estamos descansados. Os optimistas não acreditam nas más notícias e estampam-se na primeira esquina. Os pessimistas não creem nas boas notícias e ficam em casa. A política portuguesa é a do mata-borrão. Quando a caneta rebenta, tenta-se remediar o que é possível. E o resto que seja o destino a definir.

 

 

O irrequieto Bob Dylan

A 19 de Março de 1962 foi editado um álbum inesperado de um trovador irrequieto: “Bob Dylan”. Foi o primeiro de uma longa série de registos que o levaram da folk ao rock e ao Nobel da Literatura. Robert Allen Zimmerman tornara-se Bob Dylan, fiel fã de um dos grandes nomes da folk americana, Woody Guthrie e na vibrante Greenwich Village conheceria John Hammond, produtor reconhecido, que o acolheu como um talento emergente.

A gravação foi complicada, porque Dylan tinha uma personalidade muito sólida e possuía uma técnica deficiente. O milagre foi conseguido: gravou-se o disco, com 13 temas, sobretudo de outros artistas de blues, country e folk que ele costumava cantar nos clubes de Nova Iorque e duas de Dylan. Comercialmente, o disco foi um fracasso: vendeu apenas 2500 cópias nos EUA. A editora Columbia, que pouco dinheiro arriscara, não se preocupou.

Este não é, claro, o mais relevante disco de Dylan. É apenas início de de uma carreira que, aos 80 anos, Dylan ainda não terminou, feita de rupturas surpreendentes, de ligações icónicas (como com Joan Baez, que o santificou junto das multidões folk dos anos 60, antes de Dylan ter trocado a viola acústica pela guitarra eléctrica). Os seus maiores álbuns e as suas grandes canções viriam depois (como a emblemática “Like a Rolling Stone”, onde quase sem bagagem, aliviado de convenções ou regras, “having no directon home”).

Dylan envelheceu, mas ao contrário de muitos músicos, nunca tentou negar esse facto: as suas palavras dizem-nos que não se consegue escapar ao passado, e se tentamos perceber o que se passa, é melhor começar por olhar para trás. Dylan sempre cantou a fragilidade da vida, mesmo no contexto mundial, como é notório em “A Hard Rain’s A-Gonna Fall”. Que parecia falar sobre a guerra nuclear e que hoje nos soa como uma meditação sobre as mutações climáticas: “I’ve stepped in the middle of seven sad forests/I’ve been out in front of a dozen dead oceans/I’ve been 10,000 miles in the mouth of a graveyard”. Dylan continua a ser único, mesmo nesse imberbe primeiro álbum que, agora, faz 60 anos.

 

 

Um herói atormentado

Há muito, muito tempo, ou seja, há mais de dois séculos, um livro foi publicado em Londres. O seu título era amplamente descritivo e simples: “Os Sofrimentos de John Coustos na Inquisição em Lisboa”. A obra revelou-se incrivelmente popular, apareceu em francês e alemão, e teve muitas outras edições nos anos seguintes.

Podemos recuar um pouco no tempo: John Coustos nasceu em Suíça em 1703, filho de refugiados huguenotes que escaparam da França dezoito anos antes, quando as igrejas protestantes foram banidas e perseguidas. Ainda criança foi levado para a Inglaterra e lá foi treinado para ser um lapidador de diamantes. A partir de 1736 trabalhou em França durante cinco anos. Depois foi para Lisboa. A sua principal esperança era ir para a então colónia portuguesa do Brasil, onde os diamantes tinham sido descobertos em 1729, mas ele não foi capaz de obter autorização e por isso ficou em Lisboa, exercendo o seu ofício. Ali estabeleceu uma Loja Maçónica, com ele mesmo Mestre; e essa foi a causa dos seus problemas.

A prática tinha sido proibida pela Igreja Católica em 1738 e era ilegal em Portugal: “Devo informar o leitor de que as nossas Lojas em Lisboa não estavam instaladas em tabernas ou afins, mas funcionavam alternadamente em casas particulares de amigos escolhidos. Ali costumávamos jantar todos juntos e praticar os rituais secretos da maçonaria”, escreve). Foi denunciado como maçon. Em Março de 1743 foi preso e levado para o presídio da Inquisição, onde permaneceu durante quinze meses. Depois de alguns dias lá, ele foi barbeado e o seu cabelo foi cortado, sendo levado os inquisidores pela primeira vez.

Depois de alguma conversa, eles deixaram claro que ele havia sido preso pelo crime de maçonaria, de eles queriam saber mais pormenores. Coustos disse que devido ao juramento que fizera, nada poderia dizer, embora na altura já existisse alguma informação publicada sobre a maçonaria, algo que tornaria fácil à Inquisição saber. Foi instado a tornar-se católico, mas Coustos argumentou que desejava viver e morrer como um protestante.

Coustos acabou libertado por influência do rei britânico e do embaixador em Lisboa, que pediu ao rei de Portugal essa deferência, algo que sucedeu em finais de Outubro de 1744. A descrição de Coustos foi sobretudo um testemunho da sua prisão em Lisboa e também um bom documento para aumentar a visibilidade da Maçonaria em terras europeias. Tornou-se, de alguma maneira, num herói. Este livro vem completado com várias páginas sobre a origem da Inquisição, que ajuda a contextualizar o mundo de intolerância religiosa onde a maçonaria se movimentaria.

É também sobre isso que Armindo Azevedo, Grão-Mestre da GLLP/GLRP fala no prefácio, separando as águas: “não pode concluir-se (…) qualquer intenção de reacender um eventual conflito da maçonaria com a Igreja católica” apoiando “as posições recentemente desenvolvidas, junto do papa Francisco, tendentes à reconciliação da maçonaria com a Igreja católica, ciente de que os princípios e valores que partilhamos constituem uma sólida base para a edificação de um mundo de paz onde reine o respeito absoluto por todas as religiões e pelo ser humano sem qualquer distinção”. Este livro, em suma, é um documento que ajuda a perceber melhor o mundo e a sua evolução nos últimos séculos.

John Coustos, “Os sofrimentos de John Coustos na Inquisição de Lisboa”, Edição Vega/GLLP/GLRP, 144 páginas, 2022

 

 

Chás e víveres

Antes da dimensão actual, a Jerónymo Martins & Filho (“fornecedor da Casa Real”), em inícios do século XX tinha uma loja de chás no nº19 do Chiado onde era o “único depositário” do Chá Lipton. Local bem próprio do seu armazém de víveres.