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A saída de Carlos Tavares ou o fim de uma certa ideia de liderança

Uma saída com “efeito imediato” é, para além de muito deselegante da parte dos acionistas, a evidência de que a indústria europeia dos automóveis está numa fase de profunda mudança.
2 Dezembro 2024, 10h57

A saída do gestor português Carlos Tavares do topo da gestão executiva do grupo Stellantis, a sexta maior empresa de montagem de veículos do mundo (em vendas) formada pela fusão do Grupo PSA e da Fiat Chrysler Automobiles (2021) não podia deixar de trazer associada uma teoria da conspiração. E como qualquer teoria da conspiração criada na Europa, envolve chineses – envolver russos era a alternativa, mas parece que desta vez ficam de fora. Assim, segundo alguns críticos e analistas, o que se passa é que, tendo os mega-projetos europeus do setor soçobrado à concorrência chinesa (nomeadamente na mobilidade elétrica), chegou a hora do emagrecimento. Que passa, evidentemente, pelos despedimentos do costume, mas também pela possibilidade de encontrar interessados em partes destes mega-grupos.

É num certo sentido a inversão da lógica empresarial que Carlos Tavares imprimiu desde que chegou ao topo da Stellantis – no que foi imitado em diversas latitudes. E se é assim, compreende-se: não se deixa no comando um general especialista em batalhas abertas quando a opção passa a ser a guerra de guerrilha.

Foi o grupo VW que tratou de deixar claro aos europeus – a quem sucessivos governos da Comissão vendem a teoria nunca colocada em prática da reindustrialização do bloco dos 27 – que o setor automóvel não está a correr bem. Percebe-se: a Europa está entre dois blocos, a China e os Estados Unidos, que ‘despejam’ investimento público sobre as suas indústrias como se não houvesse amanhã (apesar de os europeus tenderem a achar que só o perverso governo chinês faz isso). O que também se percebe: nenhum dos dois blocos tem um problema de financiamento para resolver: basta pôr as máquinas do dinheiro a trabalhar e deixar os défices públicos aumentar, que não há mercado ou investidor que leve isso a mal; inversamente, a Europa não consegue passar da fase do debate sobre eurobonds – e enquanto esse debate não for fechado não haverá dinheiro para reindustrialização nenhuma.

Ora, segundo rezam as crónicas, Carlos Tavares seria, ou terá sido, um excelente general para as grandes batalhas entre enormes poderios industriais, mas não será o sargento certo para a guerra de guerrilhas que por aí se aproxima. Muito provavelmente, o que irá suceder é que os grandes grupos tratarão de separar-se (talvez por marcas, só a Stellantis tem mais de dez), de ficar com o que ainda vale a pena (as marcas que estiverem mais próximas da eficiência energética) e de vender o restante para os apreciadores de nichos de mercado (com certeza chineses que querem passar por cima das barreiras legais à entrada na Europa).

Seja como for, o ‘despedimento’ de Carlos Tavares deixa antever que as posições dentro da administração do grupo Stellantis estariam extremadas: não é senão de propósito que o grupo comete a deselegância de mandar embora o seu gestor de topo “com efeitos imediatos”, como afirma um comunicado. É a evidência de que, no interior do grupo, se vinha travando uma guerra sobre governança que – acontece sempre – não deixa feridos, só mortos (os que são obrigados a sair). Infelizmente (ou talvez não) para o português, já não terá de se encontrar com a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, para tentar aligeirar as ‘obrigações climáticas’ que esperam a indústria automóvel europeia a partir de 1 de janeiro.

Aos 66 anos, Carlos Tavares – que segundo dizem é mais próximo dos socialistas que dos social-democratas – ainda não pensará na reforma (apesar de lhe faltarem só uns meses). Segundo parece, tem uma quinta no Douro, o que é sempre um divertimento assegurado e uma forma de ir perdendo gás sem ser de forma bruta – um pouco como se faz na apneia: aos bocadinhos. Para mais, terá pela frente uma carreira interessante: a de ser uma espécie de embaixador empresarial: conhecedor profundo do terreno ‘industrial’ que pisa, com uma agenda carregada com os números de telefone que interessam e disponibilidade imediata, Carlos Tavares será a próxima estrela de uma profissão que não tem um nome fixo e que também quase não tem concorrência, porque chegar lá é muito difícil. Mais fácil que arranjar um nome para essa profissão é dizer quem foi a personalidade que nela deu entrada antes de Carlos Tavares estar disponível: António Horta Osório.

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