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Especial Vinhos 2018: A tradição e a inovação dos nossos vinhos

Há apostas em técnicas de vinificação únicas. Enviam garrafas para o alto mar ou simulam naufrágios. E há quem deixe a uva ganhar a ‘podridão nobre’.
24 Dezembro 2018, 21h00

Foi num artigo de 1875, escrito pelo “grande homem da viticultura” da época, António Augusto de Aguiar, que Domingos Soares Franco, da sexta geração da José Maria da Fonseca (JMF), descobriu que fazia os vinhos de talha como os romanos.

“É fácil de avaliar, pela succinta descripção que vos faço, que o vinho do Alemtejo fica, pelo fabrico, á prova de todos os defeitos. Aos estragos causados pela balsa pútrida, junta-se o sabor do pez e o gosto privativo do nosso azeite vulgar. Dos três criminosos o mais inocente é o pez, porque envelhece á custa das propriedades do vinho que estraga, acabando por se tornar insipido”, escrevia o homem do século XIX.

A técnica da vinificação em talhas de barro é uma herança deixada pelos romanos e assim é conhecido porque “tem um symbolo, que é a talha”, isto é, “faz-se e guarda-se o vinho dentro de potes”, numa tradição alentejana com mais de dois mil anos, lê-se naquele artigo.

Em 2018, Soares Franco orgulha-se de fazer o vinho em talha tal e qual como vem descrito no artigo do século XIX. “Só não uso o carneiro, que ele [Augusto de Aguiar] refere na última página”. É que, segundo os ditames antigos dos vinhos em talha, “depois da trasfega, encontrar-se um quarto de carneiro a avinhar a talha” era costume.

De resto, “é tudo feito à mão”, explicou Soares Franco. “A apanha, a separação do bago do engache, a fermentação, tudo é feito à mão como está descrito nesse artigo, quer o branco, quer o tinto”. Além disso, “usamos castas tradicionais e fui buscar madeiras neutras, como se usavam antigamente”, frisou. “Fui buscar o castanho que é praticamente neutro. Portanto, a cor do [vinho] branco, é uma cor alaranjada”.

A JMF tem alguns vinhos flagship, nomeadamente os moscatéis de Setúbal, mas os Vinhos de Talha, que Domingos Soares Franco passou a fazer “na brincadeira”, em 1986, depois de comprar a vinha de José de Sousa, em Reguengos de Monsaraz, têm um carinho especial para o produtor. “Eu tenho cinco filhos, seres humanos; o vinho de talha é o sexto”. Mas só 14 anos mais tarde sentiu-se desafiado por um “conhecido do meio” e resolveu colocá-lo no mercado.

Algures nas adegas da JMF há cascos com Moscatel Torna Viagem que não estão à vista e “há membros da família que nem sabem onde estão”, disse Domingos Soares Franco.

O Moscatel Torna Viagem remonta ao século XIX, como explica Soares Franco. “O José Maria da Fonseca, na sua época, pedia aos capitães das fragatas para tentar vender os vinhos dele, que iam em cascos. Mas havia uns que voltavam para trás e verificou-se uma evolução positiva nos vinhos.”

A comercialização foi interrompida, mas não a produção. “No ano 2000, quando o Navio Escola Sagres foi ao Brasil comemorar os 500 anos da chegada dos portugueses, o meu irmão conhecia o Chefe de Estado Maior da Armada e pediu-lhe”, contou Soares Franco.

Uma ida e volta demora normalmente cinco meses. “O vinho fica melhor devido às diferenças térmicas, do dia para a noite. Mas também devido à ondulação do mar e à sua sanilidade. O sal vai impregnando-se dentro da madeira e passa para o vinho”, explicou o produtor do moscatel. “Devido a todos esses factores, o vinho torna-se mais macio, elegante, complexo, e escurece um bocado e fica mais concentrado”. Do Torna Viagem, a JMF tem dez edições, cerca de 20.000 litros, de moscatel branco, roxo e bastardinho. Soares Franco contou que “em seis meses, indo daqui ao Brasil, o vinho envelhece entre 20 e 25 anos”.

Apesar do vinho ficar melhor, há um senão. “Isto não é para ser vendido já. Há uma coisa com o meu irmão e comigo”, conta Soares Franco. “Enquanto nós formos vivos, este vinho não é vendido”.

O Poseidon é outro vinho com ares de marujo que se faz em Portugal, assim batizado em homenagem ao deus grego do mar. Manuel Dias e Francisco Baptista, sócios da Lua Cheia em Vinhas Velhas, associaram-se ao Clube de Oficiais da Marinha Mercante, para fazer o ‘vinho da volta’.

O ‘vinho da volta’ retomou a tradição da Gafanha da Nazaré, uma cidade piscatória cujos pescadores, quando iam para a pesca do bacalhau na Terra Nova, “entre os géneros alimentares, incluíam o vinho”, explicou enólogo, Manuel Dias. Depois da primeira edição deste tinto, em 2015, com a colheita do ano anterior, “notámos que o vinho que foi no barco estava mais redondo, com um estágio de garrafa como se estivesse engarrafado há dois anos”, disse o enólogo. “A técnica é inspirada na tradição do ‘vinho da volta’, praticada em tempos pelo Vinho da Madeira. O balanço e as condições da travessia concedem-lhe características únicas”, disse Manuel Dias, quando lançou o Poseidon.

Os encantos da vinicultura portuguesa vão além dos vinhos viajantes ou dos vinhos do antigamente. Duarte Leal da Costa, produtor e gerente da Ervideira, lembrou-se de simular os vinhos que iam nos barcos que naufragavam e começou a produzir o Vinho de Água, que estagia pelo menos oito meses nas profundezas do Alqueva.

“Surgem da história”, explica Leal da Costa. “Cada vez que há um naufrágio, se alguém consegue retirar os vinhos, eles vêm diferentes”. Ora, “se isto acontece com os naufrágios, por que não criar uma situação idêntica ao do naufrágio, em que o vinho fica submerso?”.

Ao contrário dos ‘vinhos viajantes’, que envelhecem, ao Vinho da Água acontece “exatamente o contrário”. O estágio, nunca inferior a oito meses, “onde há zero luz, com as garrafas paradas, sempre à mesma temperatura, que ronda os 16 graus, zero contacto de oxigénio e com o efeito da pressão, bloqueia a evolução do vinho”, explica Leal da Costa. A grande vantagem é que “lhe garante um potencial de envelhecimento muito maior”.

Quando volta à superfície, “o vinho vem com uma boca muito mais intensa, parece que vem mais encorpado, mais jovem”, garante o produtor. Ainda há quatro caixas perdidas no Alqueva, mas já foram produzidas 30 mil garrafas de tinto, 4.000 do branco e outras tantas de espumante, que tem tendência para aumentar.

Mas há vinhos que ficam aquém-mar, a estagiar na vinha por períodos mais prolongados, até que a uva desidrate na vinha. É o caso do Grandjó, um branco doce, o vinho de colheita tardia [late harvest) que a Real Companhia Velha produz na Quinta do Casal da Granja, em Alijó, a 600 metros de altitude.

É no final da época das vindimas, em meados de outubro, que as uvas de casta Boal são colhidas. Mas o Grandjó é um produto da natureza que favorece Alijó. A precipitação da chuva e aparecimento de neblinas matinais e elevada humidade relativa no ar, facilita o aparecimento da podridão nobre que cobre a uva.  É este “pózinho branco do Papa”, como lhe chama Silva Reis, que envolve as uvas, que assinala que a uva está pronta a ser colhida. Coisa rara no mundo vinícola, porque “este fungo só se desenvolve em três regiões do mundo”, explicou.

Pedro O. Silva Reis, o fine wine manager, garante que o “vinho fica mais doce, porque as uvas têm menor concentração e mais açúcar”.

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