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A Veneza de Corto Maltese também é a nossa

Quem leu “Fábula de Veneza”, de Hugo Pratt, rendeu-se ao fascínio que a cidade-labirinto-de-terra-e-água exerce sobre os comuns mortais. Felizmente, Pratt imortalizou-a sob o signo de um marinheiro, aventureiro sem pátria, que nas suas deambulações pela Sereníssima nos vai revelando prodigiosos segredos, entre símbolos maçónicos e pátios que escondem portas para outros mundos.
18 Julho 2025, 08h41

Acontecem coisas inacreditáveis nesta cidade”. Veneza. A Sereníssima. Território mágico e belo que nos provoca todo o tipo de indolências e sortilégios. Corto Maltese garante que assim é. E nós acreditamos. Nele e nos lugares mágicos e secretos que os venezianos procuram quando estão cansados das autoridades. No fundo dos pátios, no que parecem inofensivos poços de água, abrem-se portas para países fantásticos e aventuras mil.

Mas quem é Corto Maltese? Quiçá a mais poética personagem da BD europeia, arriscamos dizer, criada por Hugo Pratt. Marinheiro errante, nascido em Malta a 10 de julho de 1887, filho de mãe cigana (espanhola) e pai marinheiro (inglês), Corto Maltese é alto, usa brinco na orelha esquerda e patilhas compridas, boné de marinheiro e não dispensa um cigarro. Anti herói romântico, vive intensamente as primeiras décadas do século XX, surgindo nos mais remotos lugares como testemunha da História. Do Pacífico Sul à Irlanda, da China à Sibéria, passando pela Argentina e Brasil, sem esquecer a sua muito amada Veneza, cidade onde o seu criador passou a infância. Não será mentira dizer que a vida aventurosa de Corto Maltese se confunde com a de Hugo Pratt, que também deambulou entre a Europa, África e Américas.

Sendo a efabulação um traço comuns a ambos, talvez esta tirada de Pratt numa entrevista a um jornal italiano nos dê algumas pistas sobre autor e personagem. “Tenho 13 maneiras de contar a minha vida e não sei se há uma verdadeira, ou sequer se alguma é mais verdadeira do que outra. [Fernando] Pessoa dizia que «temos todos duas vidas: a verdadeira, que é a que sonhamos na infância; e a falsa, que é a que vivemos em convivência com os outros»; e essa que sonhamos é a vida onde queremos viver, e talvez a mais autêntica. […] para mim, a verdadeira vida é um sonho, embora se possa também dizer que nasci em Itália, Rimini, a 15 de junho de 1927”.

Ignoramos o acidente geográfico que foi o local onde Pratt nasceu, porque os anos de infância em Veneza foram os mais relevantes para a sua formação. Até porque foi habituado, desde a mais tenra idade, “a evoluir por entre todas as espécies de crenças, culturas, mitologias”, questões essas que sempre o deslumbraram e que encontram na Sereníssima o palco ideal para ele dar largas à sua feérica imaginação.

A magia de Veneza,
labirinto de terra e água
Em Veneza, o mar está por toda a parte e em parte alguma. Disparate? Contrassenso? Nada disso. São as ilhas que erguem a sua silhueta, como que a protegê-la do horizonte, que nunca se avista. Daí que para perceber a ligação original entre a Sereníssima e o mar tenhamos que ir até ao Arsenal, o estaleiro-naval-fortaleza que, desde o século XII, se veste de símbolo do poder marítimo veneziano. E percorrer o bairro do Castello, que cruza o caráter popular com o cosmopolitismo desta zona, onde, ao longo dos tempos, coabitaram arménios, dálmatas, turcos e helénicos. Hoje, será o que de mais parecido há com uma ‘aldeia’ em Veneza, e porto de abrigo de santuários de silêncio como a Scuola di San Giorgio degli Schiavoni, a bela igreja San Giorgio dei Greci ou a igreja de San Francesco della Vigna.

Muitas vezes, a névoa paira sobre a laguna, as ilhas, os canais. Para aqueles que não se importam de despertar com o sol, para se deslumbrarem com a Basílica de São Marcos, antes das hordas chegarem, terão só para si a inconfundível silhueta deste templo desde sempre ligado ao poder político. Basta lembrar que era nela que outrora se elegia o Doge. A praça homónima é o coração pulsante de Veneza, mas está na hora de rumar a lugares menos óbvios no bairro de São Marcos, como o antigo Casino Venier – que hoje acolhe a Alliance Française de Veneza –, outrora um local privilegiado de encontros sociais, ou não fosse a cidade e o seu Carnaval vistos como sinónimo de jogo na Europa oitocentista e além. Por aqui conviviam aristocratas, aventureiros e falsários, que podemos imaginar em amena conversa entre os seus sumptuosos frescos, espelhos e recantos.

Já a caminho do Campo S. Maurizio, seguimos pela Calle Zaguri, passamos a ponte, chegamos ao Campiello della Feltrina, onde se encontra a mais antiga loja de papeis impressos à mão de Veneza, a Legatoria Piazzesi. Atravessando a ponte seguinte, teremos diante de nós a Igreja de Sta. Maria del Giglio, que dá nome à praça. Desenhada pelo arquiteto Giuseppe Sardi, foi encomendada pela família Barbaro para celebrar os seus feitos políticos e marítimos. Observe os baixos-relevos inesperados e depois relaxe, mesmo ali ao lado, na esplanada do Palazzo Gritti, hoje um hotel de luxo, que mais parece flutuar sobre o Canal Grande.

Nos bairros de San Paolo e Santa Croce há duas obras-primas para visitar: a Igreja de Santa Maria Gloriosa dei Frari [ver caixa] e a Scuola Grande di San Rocco. Depois, deixamo-nos levar pela sombra de Corto Maltese até ao ponto de partida da sua viagem para Pequim, na rota dos mercadores venezianos, que é na realidade um singelo mas belo pátio, de seu nome Corte Botera [ver caixa]. Não terá uma passagem secreta daqui até às Gallerie dell’Academia, mas é para lá que vamos, em busca da sua extensa coleção de arte veneziana. Se nas obras de Bellini, Giorgione e, claro, Ticiano, a cor é a deusa maior, nas pinturas dos seus sucessores, e também mestres, Tintoretto e Veronese, a luz é o que nos entra retina adentro.

Por estas bandas fica também a mítica Ponte dei Pugni [ver caixa], perto do Campo San Barnaba. Imagine os combates (reais e imaginados) que aí se travaram [ver caixa], mas não a atravesse. Aponte à Fondamenta delle Zattere, procure o ancoradouro e apanhe um vaporetto para a ilha da Giudecca, ali mesmo em frente. Ou deixe-se vencer pelo convite à viagem, conquiste o tempo, que em Veneza assume muitas formas, como Cronos ou Saturno [ver caixa] e parta, depois, à descoberta das ilhas mais pequenas da constelação veneziana, como São Lázaro dos Arménios, a sul, ou San Francesco del Deserto, a norte, povoadas de mosteiros ricos em lendas. Quem sabe não irá encontrar por lá um tal de Corto Maltese, absorto, de olhos fixos na lua.

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