O início do desconfinamento não marca o regresso à vida habitual. Será, como diz uma canção, o primeiro dia do resto da vida dos portugueses. Por isso, falar de regresso pode parecer abusivo uma vez que a realidade atual é manifestamente diferente daquela que se vivia quando começou o ano de 2020.
Uma situação nova porque poucos são os portugueses que já tiveram a experiência de um convívio indesejado com uma pandemia. A pneumónica ou gripe espanhola deixou o rasto de morte há mais de um século e, apesar do aumento da esperança de vida, é reduzido o número daqueles que festejam um centenário de existência.
Um retomar titubeante à vida profissional. A passagem do estado de emergência para o estado de calamidade não permite dúvidas, mesmo a quem não tem pretensões de ser constitucionalista. “Emergência” e “calamidade” são palavras que todos entendem sem necessidade de saberem que só a primeira está inscrita na Constituição. Ou que a primeira decorre da proposta do Presidente da República, respaldada pela Assembleia da República, enquanto para a segunda a vontade governamental é suficiente.
Sendo inquestionável que os portugueses estavam saturados do confinamento, não é menos verdade que o final que esperavam era muito diferente. Acreditavam que fosse faseado. Julgavam que exigiria menos adaptações.
Aliás, também as pessoas estão diferentes. A quarentena cobrou um preço elevado. Banalizou a morte. Os mortos perderam mais do que o direito à vida. Passaram a ser números. Daí que a ministra da Saúde, que mais merecia ser designada como ministra da Pandemia, não tivesse rebuço em agendar as conferências de imprensa diárias para a hora do almoço. Sabia que o incómodo inicial desapareceria quando o estômago passasse a dar horas. Depois o hábito encarregar-se-ia do resto.
Os portugueses estão diferentes. A família, que já vivia mergulhada numa prolongada crise existencial, ressente-se ainda mais. Todos aqueles que puderam aceitaram que os avós deixassem de constituir os fiéis depositários dos netos. Pelo menos no curto prazo. Depois logo se verá. A retoma económica não vai ser fácil. Uma inevitabilidade que até o Governo não sente coragem para desmentir. Os mais velhos podem ter de ser chamados de novo ao serviço. Oxalá não demorem a descobrir a vacina.
São estes portugueses que, a partir do dia 4 de maio, começaram a bater à porta da nova realidade fora das quatro paredes da residência em que estiveram encarcerados. Uns mais do que os outros, verdade seja dita.
Nos primeiros tempos, surgirão de máscara no rosto sempre que o cenário for fechado. Ficarão sobressaltados com a mínima tossidela ou espirro. Desconfiados de tudo e de todos. Tudo em nome do distanciamento social. Aquele que não foi possível salvaguardar com recurso ao teletrabalho. Há profissões que não se podem dar a esse luxo. Se luxo se pode chamar à partilha de um espaço exíguo onde os papeis familiares e profissionais se atropelam com demasiada frequência.
Viver em tempos de incerteza não vai ser fácil. A reabertura dos cabeleireiros só retoca por fora. As marcas do confinamento são rugas internas. Difícil também se afigura a tarefa do Governo. Nunca como agora as reflexões de pensadores como Daniel Innenarity ganham pertinência. O Governo terá de aprender a antecipar o futuro. A receita baseada na experiência já não se revela suficiente. É preciso governar tendo o imprevisto como companheiro. Será essa capacidade ou inépcia que determinará a dimensão da crise económica e social. A única certeza no imediato.