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A violência doméstica continua a matar mulheres. “Números preocupantes”, “impunidade” e “relações de poder”

Relatório da UMAR indica que, nos primeiros seis meses de 2018, foram assassinadas mais 16 mulheres, vítimas de violência doméstica. Nos últimos 14 anos registaram-se 488 vítimas mortais no total, deixando mais de mil crianças órfãs. Deputadas do PS questionam ministros sobre o que pode ser feito ao nível da prevenção e combate. PpDM alerta para um problema mais vasto de violência contras as mulheres.
28 Agosto 2018, 10h44

Nove deputadas do PS remeteram na semana passada um conjunto de perguntas – dirigidas ao ministro da Administração Interna, à ministra da Justiça e à ministra da Presidência e da Modernização Administrativa – sobre a prevenção e o combate ao crime de violência doméstica. As deputadas socialistas pretendem saber que papel é que o poder local pode desempenhar na prevenção da violência doméstica, o que deve ser alterado no quadro legislativo e que ações têm sido desenvolvidas ao nível das escolas. “A violência contra as mulheres é um dos maiores obstáculos à corporização da igualdade e uma fragilização da democracia”, sublinham.

No que respeita ao ministro da Administração Interna, as deputadas questionam sobre o que pode ser feito pelo poder local, no âmbito da Estratégia Nacional e do Plano de Prevenção e Combate à Violência Contra as Mulheres. E ressalvando que estão atualmente disponíveis 447 Salas de Atendimento à Vítima (SAV) em postos, esquadras e subunidades, questionam o ministro sobre as perspetiva para a cobertura a 100% de SAV e que balanço foi efetuado em relação ao Programa Especial de Policiamento à Violência Doméstica.

Quanto à ministra da Justiça, baseando-se nas conclusões do Relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica, as deputadas questionam sobre quais as responsabilidades a apurar e as eventuais medidas consideradas pertinentes e que ainda se encontrem em falta no atual quadro legislativo, normativo e procedimental. Também questionam sobre quais as medidas que o Ministério da Justiça poderá aplicar, no âmbito da organização judiciária, para garantir uma maior agilidade e especialização na prevenção e no combate ao crime de violência doméstica.

Por sua vez, a ministra da Presidência e da Modernização Administrativa é questionada sobre os resultados das ações desenvolvidas ao nível das escolas, as ações que estão planeadas, os parceiros que estão envolvidos e as medidas futuras previstas ao nível interministerial para combater a violência doméstica e de género. “A visibilidade que o tema tem vindo a adquirir, associada à redefinição dos papéis de género e a uma nova consciência de cidadania, obrigou os poderes públicos a quebrar o silêncio e a adotar políticas de prevenção e combate ao flagelo, mas que por diversos motivos não têm produzido os resultados a que aspiramos em termos de erradicação dos feminicídios”, concluem.

 

“São números preocupantes” e que “persistem”

“Para o PS, a prevenção e o combate à violência doméstica e a qualquer tipo de violência de género é e sempre foi uma prioridade política”, realça a deputada Elza Pais, uma das signatárias da iniciativa parlamentar, ao ser questionada sobre os objetivos da mesma. “As principais medidas adotadas em Portugal relativamente a este combate têm a assinatura do PS, desde a definição de crime público (no ano de 2000), a definição de um novo tipo legal de crime (em 2007), a lei de prevenção e proteção da violência doméstica (2009), a criação de linhas financeiras específicas de apoio às ONG e autarquias para prevenção, proteção e formação de públicos específicos (a partir de 2007), até uma das mais recentes leis para proteger as crianças em situação de violência doméstica entre os seus progenitores, na linha da Convenção de Istambul (2017), apenas para citar alguns exemplos”.

“No âmbito do poder local, muitas autarquias estão a implementar Planos Municipais para a Igualdade onde se integra a prevenção e o combate à violência doméstica, em estreita articulação com ONG. Trata-se de um trabalho de base territorial que vem sendo desenhado na atual Estratégia para a Igualdade de Género e Cidadania e respetivos planos, onde se integra o Plano de Prevenção e Combate à Violência Contra as Mulheres”, prossegue a deputada socialista.

“De Igual modo, há projetos em curso para prevenir e combater a violência no namoro, fenómeno emergente, com números preocupantes e sobretudo estereótipos que necessitam de ser eliminados, como por exemplo o facto de os jovens ‘considerarem a agressão como uma forma de amor’. Há estratégias em curso integradas no Programa Piloto de Educação para a Igualdade e Cidadania, em 230  agrupamentos escolares, o qual será alargado a todos os agrupamentos já no próximo ano letivo. Pretendemos saber como é que este tipo de trabalho tem vindo a ser desenvolvido  e qual o impacto previsto junto dos públicos alvo”, explica Pais. “Sabemos também que a formação neste domínio tem sido uma constante, quer junto dos magistrados, quer junto das forças de segurança, e por isso queremos saber, dada a especificidade deste tipo de intervenções, se o Ministério da Justiça está a prever algum tipo de medidas específicas ou piloto em termos de organização judiciária”, acrescenta.

Apesar de todas as medidas implementadas, o flagelo da violência doméstica tem vindo a agravar-se nos últimos anos? “As participações às forças de segurança, de que o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) nos dá conta, revelam uma estabilidade das participações e uma redução do homicídio conjugal de 38 (em 2015) para 30 (em 2016) e para 20 (em 2017).  De acordo com o Relatório Intercalar 2018 do Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA), da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, no primeiro semestre deste ano já ocorreram 16 mortes. Segundo os dados do OMA, nos últimos 14 anos perderam a vida 472 mulheres, deixando mais de mil crianças órfãs. São números preocupantes”, responde Pais.

“Independentemente de uma ligeira subida ou descida de um ano para o outro, tal não poderá traduzir-se em nenhum abrandamento do combate, porque enquanto houver uma mulher a ser assassinada em contexto de relações de intimidade, este tipo de prevenções e combates não pode deixar de se fazer com determinação e eficácia. Relativamente às participações, o crime de violência doméstica é, no âmbito dos crimes contra as pessoas, dos mais participados, pelo que deve continuar a ser dada prioridade política a esta área. E mesmo assim os números persistem”, lamenta.

“Ainda relativamente à visibilidade dos números, sabe-se pelo aprofundamento científico da área e por um inquérito europeu de 2014, da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), que os dados denunciados correspondem apenas a um terço dos dados reais. Pelo que a ocultação do fenómeno, pese embora tudo o que tem sido feito relativamente ao apelo à denúncia, continua a ser grande. Este tipo de ocultação não é apenas um fenómeno português, mas europeu e mesmo mundial. Daí que as estratégias integradas (salienta-se a importância da Convenção de Istambul) devem continuar a implementar-se e constituir prioridades políticas, como tem acontecido em Portugal”, defende a antiga Secretária de Estado da Igualdade.

Esta iniciativa do Grupo Parlamentar do PS (GPPS) foi promovida apenas por deputadas, não há um único deputado entre os signatários. Porquê? “No GPPS, a prevenção e o combate à violência doméstica é um tema bastante consensual, não só entre deputadas como deputados. Orientamo-nos pelo princípio de que os direitos das mulheres são direitos humanos e que devem ser defendidos por mulheres e por homens. Há deputados muito ativos nesta área, com iniciativas das quais inclusivamente são os primeiros subscritores. O facto de estas perguntas só terem sido assinadas por mulheres é  muito circunstancial, pese embora na distribuição dos nossos trabalhos haver de facto mais mulheres deputadas nesta área do que homens, inclusivamente na composição da Subcomissão da Igualdade e Não Discriminação, realidade que gostaríamos de ver alterada futuramente”, esclarece.

 

“A violência contra as mulheres continua a ser invisível e impune”

Na perspetiva da direção da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM), “os números do feminicídio em Portugal refletem a dominação masculina nas relações de intimidade entre mulheres e homens e a debilidade do sistema na proteção das mulheres e na investigação, acusação e condenação dos agressores”. Questionada sobre como é que se explica um número tão elevado de vítimas mortais de violência doméstica, apesar de todas as medidas implementadas nos últimos anos, a PpDM salienta que “o número médio de queixas apresentadas por mulheres às forças de segurança em Portugal por violência doméstica é de cerca de 70 por dia. A violência doméstica é o terceiro crime mais reportado e sabe-se que nem todas as mulheres que são violentadas apresentam queixa. Sabe-se também que poucos são os homens que, julgados e condenados pelo crime de violência doméstica, cumprem pena de prisão efetiva. Ou seja, persiste uma impunidade face a este crime em Portugal e as mulheres sobreviventes acabam por ter um papel ativo determinante na sua própria segurança”.

“A violência em relações de intimidade faz parte de um continuum de violência contra as raparigas e mulheres, que se manifesta de múltiplas formas e que envolve uma grande variedade de agressores (desde parceiros íntimos, familiares, colegas de trabalho, conhecidos e estranhos, atores institucionais). As diferentes formas de violência (como, por exemplo, a violência sexualizada, a prostituição, o assédio sexual de rua ou no local de trabalho, a pornografia, a violência online, etc.) estão relacionadas e são fruto de uma cultura sexista mais abrangente que visa manter as mulheres silenciadas e numa posição de subordinação”, explica a direção da PpDM.

“Daqui resulta que a violência contra as mulheres, em todas as suas formas, continua a ser invisível e impune. E embora a legislação e as políticas promotoras da igualdade entre mulheres e homens e de combate à violência contra as mulheres e raparigas, em Portugal, tenham evoluído bastante nas últimas décadas, uma dominação masculina baseada em estereótipos de género e incrustada em práticas institucionais e profissionais, nas estruturas e nos discursos pessoais/individuais e sociais/coletivos emerge de forma particularmente evidente nesses números”, conclui.

O que é mais prioritário fazer para erradicar ou pelo menos debelar este flagelo social? “Há três questões essenciais. Primeira, a alteração do paradigma de ‘violência doméstica’ para ‘violência masculina contra as mulheres’, isto tanto ao nível legislativo como ao nível político-programático. Importa salientar que, pela primeira vez em Portugal, a nova Estratégia Nacional para a Igualdade e Não-Discriminação (2018-2030) e o seu Plano de Ação para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica (2018-2021) referem explicitamente a violência contra as mulheres, num horizonte de 19 anos. É um ponto de partida importante para as necessárias alterações”, enaltece a PpDM. “Esta foi uma questão pela qual a PpDM se bateu nos contributos que deu para a definição da política”.

“Segunda, o fim da impunidade dos agressores. Os dados estatísticos são gritantes. Em 2015, apenas 9% dos agressores condenados tiveram pena efetiva e a 91% dos agressores condenados foi aplicada a suspensão da pena. Em 2016 registou-se uma elevada taxa de arquivamento de processos (72%) e aplicou-se a suspensão provisória a 10% dos processos na fase de investigação. Há que pôr termo à impunidade aos agressores de violência contra as mulheres em todas as suas formas de violência, através da implementação de medidas eficazes para assegurar que as investigações e os procedimentos judiciais sejam realizados adequadamente (e em devido tempo) e condenados os agressores a penas efetivas”, defende a PpDM.

“Terceira, a prevenção. Uma estratégia de prevenção da violência contra as raparigas e as mulheres desde as idades mais precoces, com recurso a múltiplas técnicas (desde campanhas públicas de consciencialização até trabalho nas escolas, em todos os níveis de ensino), à capacitação de profissionais (por exemplo, profissionais do sistema educativo, do sistema de saúde, do sistema social, das forças de segurança, do sistema judicial, com particular destaque para a sensibilização/capacitação de juízes, sem o que não existirá um pleno acesso das mulheres à justiça) e baseada nos direitos humanos das mulheres. Para além disto muito mais há a fazer. Necessitamos de uma estratégia holística de proteção às mulheres e raparigas sobreviventes das várias formas de violência masculina, com respostas e serviços de apoio especializados para todas as formas de violência contra as mulheres (como a violência sexualizada, incluindo a prostituição) e em todo o país. Mais, o estabelecimento e manutenção de padrões mínimos de intervenção especializada, com profissionais capacitados e competentes. E tudo isto assente numa cultura de direitos humanos das raparigas e mulheres, passando do assistencialismo para a dignidade humana em sociedades onde a igualdade, o direito e a justiça prevalecem”, finaliza.

 

“Relações de poder e de dominação dos homens sobre as mulheres”

No quadro legislativo, especificamente, faltam leis para prevenir e combater a violência doméstica? “A ratificação da Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica (designada como Convenção de Istambul, tendo Portugal sido o primeiro país da UE a ratificar) contribuiu muito para o avanço legislativo e particularmente político em Portugal, com reflexos na Estratégia Nacional para a Igualdade e Não-Discriminação e no Plano de Ação para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica. A Convenção de Istambul representa um quadro jurídico abrangente que contempla padrões mínimos para a resposta do Estado à violência contra mulheres, bem como para a sua prevenção. Centra-se na mudança de paradigma, do enfoque na violência doméstica perspetivada de modo neutro para o enfoque na violência contra as mulheres e as raparigas”, destaca a PpDM.

“A Convenção de Istambul obriga ao reconhecimento de que a violência contra as mulheres é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens que conduziram à dominação e discriminação contra as mulheres pelos homens. E que a natureza estrutural da violência exercida contra as mulheres é baseada no género, sendo o género, como definido na Convenção de Istambul ‘os papéis, comportamentos, atividades e atributos socialmente construídos que uma determinada sociedade considerada serem adequados para mulheres e homens’. O género constitui um dos mecanismos sociais cruciais pelo qual as mulheres são forçadas a assumir uma posição de subordinação em relação aos homens. Ao nível legislativo, parece-nos que o crime de feminicídio deveria ser tipificado, bem como o crime da compra de sexo. Mais, deve ser garantida a permanência das mulheres em casa em segurança e o afastamento dos agressores, contrariamente à prática em Portugal.  Em geral, há a necessidade de integrar de forma sistemática a dimensão da igualdade entre mulheres e homens na legislação e nas políticas nesta área em Portugal, a todos os níveis (prevenção, proteção e ação penal)”, conclui.

Consideram que deveria verificar-se uma maior participação de homens no combate cívico a este flagelo? Ou no que respeita a outras causas entendidas como “feministas”, nomeadamente o problema da discrepância salarial ou a sub-representação crónica das mulheres em cargos políticos e de direção executiva nas empresas? “A violência contra as mulheres não será erradicada sem uma mudança profunda das representações dos homens sobre os papéis das mulheres e dos homens nas sociedades e sem que estes questionem a normalidade do modelo das relações de poder e de dominação dos homens sobre as mulheres. Sem que os homens afirmem e pratiquem de forma evidente a recusa de toda e qualquer violência contra as mulheres e a condenem publicamente”, sublinha a direção da PpDM.

“Há organizações de homens que visam promover essa mesma alteração e acabar com a cultura sexista vigente, que afeta desproporcionalmente as mulheres e as raparigas nas mais diversas esferas das suas vidas mas que tem, também, impacto nas vidas dos homens. Como é o caso da organização francesa Zéromacho – Des Hommes Engagés Contre la Prostitution et pour L’Égalité (Zeromacho – Homens Contra a Prostituição e Pela Igualdade), cuja existência em Portugal seria muito bem-vinda. A PpDM tem como membros organizações de direitos humanos das mulheres e que promovem a igualdade entre mulheres e homens e algumas delas são organizações compostas por mulheres e homens, raparigas e rapazes”.

 

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