As férias servem para muitas coisas, umas boas, outras menos boas.

Deixemos as menos boas. Para mim, entre as boas coisas das férias encontram-se aquelas que me permitem acreditar que tudo o que não gosto de fazer é adiável – porque não tenho horários fixados do exterior, nem rotinas impostas, nem tarefas urgentes… Enfim, é como se entrasse numa ilusão de infinitude temporal absolutamente libertadora.

Uma delas prende-se com o modo de ler: poder ler sem a pressa de estar a ‘aproveitar’ um tempo curto ou transitório, e regressar preguiçosamente a velhas ou menos velhas leituras, redescobrir livros que perdera de vista, folheá-los, escolher as partes que me darão mais prazer, abandoná-los de novo, pegar noutros… É como uma reciclagem, que me reconcilia sempre (um bocadinho, pelo menos) com a insolucionável desarrumação livresca, já que nessa desordem reaparecem alguns livros desaparecidos.

Mas há outro aspeto neste modo de ler preguiçoso e diletante. As leituras de férias sabem-me a regresso ao tempo em que, sem televisão, com demasiado calor para sair de casa, os livros eram, não apenas a única moeda de troca para poder escapar à sesta familiar, como também a possibilidade de fantasiar sobre uma imensidão de mundos completamente diferentes daquele que conhecia quotidianamente.

Outras gentes, outros lugares, outras vidas, às vezes outros tempos… Sem imagens como as que hoje nos rodeiam, tudo o que não se podia ver diretamente era um exercício de plausibilidade – à escala do pequeno e possível mundo real, claro. Não raras vezes, era do cinema que provinha alguma eventualidade de verosimilhança desses mundos imaginados (ressalvando as ideologias, os anacronismos e outros descontextos das matinés esmagadoramente hollywoodescas a que as crianças tinham acesso).

Foi numa dessas deambulações de férias pelos livros que reli a “Anedota búlgara”, de Drummond de Andrade. E, por seu turno, foi esse curto mas certeiro poema, com quase 90 anos, que me levou a esta cogitação pessoal sobre as minhas leituras de férias, os mundos que, outrora, elas me faziam imaginar, e os mundos que hoje, de outra forma, também me sugerem. A Anedota (in “Alguma Poesia”) pareceu-me, portanto, muitíssimo atual:

Era uma vez um czar naturalista

que caçava homens.

Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,

ficou muito espantado

e achou uma barbaridade.

Não precisei de grande esforço criativo para encontrar vários czares naturalistas no mundo de hoje, muitos deles, infelizmente, jovens, qualificados, urbanos, do mundo desenvolvido, profissionais bem-sucedidos, etc.. Em suma: pessoas que supostamente conhecem o mundo globalizado de hoje, mas que se comportam como se ele fosse todo igual ao modelo que fazem de si próprios.

Um deles é o fundador da Web Summit. Peço desculpa por ‘mais do mesmo’, já correu tinta que chegasse (a meu ver, publicidade gratuita a mais, quer para a cimeira, quer para Marine Le Pen).

Paddy Cosgrave deve ter ficado espantado e achado uma barbaridade as reações negativas a que assistiu, pelo menos até ter ‘aprendido’ qualquer coisa sobre o sentido do convite para alguns dos comuns mortais que não saberão nunca ser bons empreendedores.  É o que infiro do triste espetáculo e, sobretudo, da esfarrapada desculpa e da retórica artificial de Cosgrave, de que vários jornais transcreveram partes nos últimos dias.

Todo o texto original (a propósito de leituras…) é uma pérola de sabedoria, onde o brilhante mestre nos ensina, a nós que não sabemos do negócio, quão “difíceis” são estas decisões. E devem ser, de facto, pois, quando vale tudo e tudo vale o mesmo, as escolhas tornam-se infinitas.

Se o mundo em que vivo hoje é menos imaginado, ele é também maior e mais diversificado – tudo somado, pensando nas novas gerações, não trocaria esse balanço positivo pela virtualidade criativa da leitura na minha infância. Afinal, não só posso reconstruí-la pela minha própria vontade (ao invés de ser uma condição pré-determinada), como aquele mundo de há quase meio século era demasiado fechado e demasiado pequeno – logo, perigoso. Ainda bem que acabou, e ainda bem que o mundo mudou!

Mas não gostaria de ver fechar-se este de hoje. Porém, os sinais abundam, sem grande exigência de imaginação, menos ainda de leitura…

Ainda assim, e ainda a propósito de czares naturalistas, termino com a sugestão de uma pequena leitura: “The Unwanted”, uma história sobre o problema migratório às portas da Europa, pelo jornalista e banda-desenhista Joe Sacco (foi então publicada no “The Guardian”, e pode ler-se no VQR. A National Journal of Literature and Discussion).

Passa-se em Malta, há quase dez anos, e pode ajudar-nos a imaginar outro presente, se a Europa tivesse encontrado respostas firmadas na solidariedade humanista e no reforço da democracia institucional. Infelizmente, os czares naturalistas continuam bem vivos e vários deles têm mais força hoje do que quando Sacco fez a sua reportagem.