Os deputados à Assembleia da República (AR) podem trabalhar em simultâneo – como administradores, consultores, advogados, etc. – para empresas que celebram contratos com entidades públicas, mas não podem deter mais de 10% do capital social dessas empresas. É uma das poucas restrições inscritas no Estatuto dos Deputados (ED).
Segundo o Artigo 21º Impedimentos, é vedado aos deputados “no exercício de atividade de comércio ou indústria, direta ou indiretamente, com o cônjuge não separado de pessoas e bens, por si ou entidade em que detenha participação relevante e designadamente superior a 10% do capital social, celebrar contratos com o Estado e outras pessoas coletivas de direito público, participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, empreitadas ou concessões”.
No entanto, o Jornal Económico detetou oito casos em que o cumprimento dessa norma gera dúvidas. Os deputados em causa (ver caixas) têm participações superiores a 10% em empresas (ou sociedades de advogados) que firmaram contratos com entidades públicas, ao mesmo tempo que exercem funções na AR. Com a agravante de serem contratos por ajuste direto, sem concurso público. Ao que acresce a revelação de que alguns dos deputados terão omitido (nos registos de interesses) participações que detêm noutras empresas.
Questionado pelo Jornal Económico sobre estes oito casos, o presidente da Subcomissão de Ética, Luís Marques Guedes (deputado do PSD), informa que as situações vão ser averiguadas: “A Subcomissão de Ética, como lhe compete, solicitou aos deputados visados os esclarecimentos necessários para aferir das dúvidas que estão a ser colocadas. Na sequência dessa aferição, a Subcomissão de Ética responderá ao por si suscitado”.
De acordo com o ED, ao verificar que a referida norma foi infringida, a Subcomissão de Ética poderá notificar o deputado para, no prazo de 30 dias, “pôr termo a tal situação”. Mais, poderá sancioná-lo com “advertência e suspensão do mandato enquanto durar o vício, e por período nunca inferior a 50 dias, bem como a obrigatoriedade de reposição da quantia correspondente à totalidade da remuneração que o titular tenha auferido pelo exercício de funções públicas, desde o início da situação de impedimento”.
Para João Paulo Batalha, porta-voz da Transparência e Integridade, Associação Cívica (TIAC), estamos perante “um testemunho eloquente da indiferença, até do desprezo, com que estes deputados encaram a conduta ética dos titulares de cargos públicos e as leis referentes a incompatibilidades e impedimentos. Infelizmente, a política em Portugal tornou-se um terreno fértil para ‘políticos de negócios’ que, numa situação de absoluta promiscuidade entre o interesse público e os seus interesses privados, promovem negócios com o Estado para proveito próprio ou de amigos. E o abuso desse poder público para benefício privado é a nossa definição de corrupção”.
“Pior do que a conduta destes oito deputados é a cultura de absoluta permissividade das instituições de controlo, a começar pela Subcomissão de Ética,” considera o porta-voz da TIAC. “Qualquer punição exemplar nestes casos, a ocorrer, seria absolutamente inédita, uma vez que a Subcomissão de Ética – e as várias Comissões de Ética que a antecederam – nunca teve, ao longo dos anos, qualquer papel reconhecível na verificação de incompatibilidades e impedimentos e na promoção de padrões éticos na vida política”.
Batalha conclui que se trata de “um organismo tornado inútil pela reiterada falta de vontade política dos deputados que a compõem e que tem contribuído, como poucas outras instituições neste país, para o descrédito da política e das instituições democráticas”.
Sociedades de advogados
Entre os oito casos assinalados, quatro envolvem a prática de advocacia: Luís Montenegro, Paulo Rios de Oliveira e Ricardo Bexiga em sociedades de advogados e Guilherme Silva em nome individual. Uma fonte próxima de Montenegro explica que a Sousa Pinheiro & Montenegro é uma sociedade civil, à qual se aplicam as normas da lei civil em detrimento das normas da lei comercial. Mais, diz que a advocacia não funciona segundo a lógica das atividades de comércio e indústria, referidas na norma do ED, pelo que não há impedimento. A mesma fonte acrescenta que se trata de uma profissão liberal e regulamentada por leis próprias, nomeadamente o Estatuto da Ordem dos Advogados que não estabelece qualquer incompatibilidade ou impedimento para os deputados. Caberá à Subcomissão de Ética avaliar se essa interpretação jurídica é ou não válida.
Assumiu o mandato de deputado à AR em Outubro de 2015, mas ainda assim continuou a desempenhar as funções de gerente da empresa Frutas Cruz II Lda. até Abril de 2016. José Rui Cruz mantém 34% do capital social dessa empresa, a qual tem 20 contratos por ajuste direto registados no portal “Base”, perfazendo um valor global de cerca de 164 mil euros. Três desses contratos (visando a “aquisição de produtos alimentares” e totalizando cerca de 25 mil euros) foram celebrados entre Dezembro de 2015 e Março de 2016, com a Guarda Nacional Republicana e duas escolas públicas, quando o gerente e sócio da Frutas Cruz II Lda. era deputado ao mesmo tempo. Questionado sobre estes dados, Cruz mostrou-se disposto a explicar a situação mas acabou por não responder.
Foi eleito deputado em 2011 e integrou o Conselho de Administração da AR (até 2015), ao mesmo tempo que prosseguiu a atividade de gerente da Virgílio Macedo SROC Unipessoal (VMSU). A empresa é detida a 100% pelo deputado Fernando Virgílio Macedo e presta serviços de auditoria, revisão legal de contas e consultoria. Desde que Macedo entrou no Parlamento, a VMSU firmou dois contratos por ajuste direto (“aquisição de serviços de auditoria externa”) com entidades públicas: o Município de Valongo em 2014, por 25 mil euros, e o Município de Vila Nova de Gaia em 2013, por 58 mil euros.
Em 2015, o total de vendas faturado pela VSMU foi de 122 mil euros. Outro dado a ter em conta (e omitido no registo de interesses) é que Macedo tem uma participação de 33,33% na empresa Rodrigo, Grégório & Associado SROC Lda., a qual já obteve sete ajustes diretos (municípios de Chaves e Vila Nova de Gaia, entre outros), perfazendo um valor de cerca de 168 mil euros, enquanto Macedo exerce o mandato de deputado. O total de vendas desta empresa em 2015 cifrou-se em 455 mil euros. Confrontado com estes factos, Macedo respondeu: “Perante as questões colocadas, já contatei a Subcomissão de Ética para esclarecimento total e cabal das mesmas, sendo que, na minha opinião, obviamente, não existiu qualquer incumprimento do Estatuto dos Deputados.”
Está na AR desde 2002, é o atual líder parlamentar do PSD e continua a exercer advocacia ao mesmo tempo, sendo proprietário de 50% do capital social da Sousa Pinheiro & Montenegro. Entre 2014 e 2017, a firma de Montenegro obteve seis contratos por ajuste direto de entidades públicas: quatro do Município de Espinho (presidido por Joaquim Pinto Moreira, do PSD) e dois do Município de Vagos (presidido por Silvério Regalado, do PSD), perfazendo um valor global de cerca de 188 mil euros. O contrato mais recente foi assinado no dia 18 de Janeiro de 2017, visando a “aquisição de serviços jurídicos e de contencioso” pelo Município de Espinho, por 36 mil euros. Montenegro foi presidente da Assembleia Municipal de Espinho (2009-2013) e vereador na Câmara Municipal de Espinho (1997-2001). Perante estes dados, fonte próxima de Montenegro invoca que a Sousa Pinheiro & Montenegro é uma sociedade civil e que a advocacia é uma profissão liberal que não funciona segundo a lógica das atividades de comércio e indústria, pelo que o impedimento previsto no ED não se aplica ao seu caso.
Tornou-se deputado em 2015, mantendo a atividade paralela de advogado e administrador da firma Ricardo Bexiga, Oliveira e Silva & Associados, na qual detém 60% do capital social. Em Abril de 2016, a firma de Bexiga celebrou um contrato por ajuste direto com o Município de Valongo, por 62 mil euros, visando a aquisição de “serviços de advocacia e demais serviços de natureza jurídica”. Este já é o quarto contrato (totalizando mais de 200 mil euros) que Bexiga obtém do Município de Valongo desde que José Ribeiro, do PS, assumiu a presidência daquela autarquia em 2013. Questionado sobre estes dados, Bexiga alegou que “as autarquias são as entidades em que se organizam as comunidades locais, nada tendo a ver com o aparelho do Estado, seja da administração direta, seja da administração indireta e das respetivas pessoas coletivas públicas.” Pelo que “o impedimento não tem aqui aplicação,“ concluiu o deputado. No entanto, a lei refere-se explicitamente a “celebrar contratos com o Estado e outras pessoas coletivas de direito público,“ onde se inserem as autarquias. Além da sociedade de advogados, Bexiga também mantém uma participação de 2% na empresa Quaternaire Portugal. Desde Outubro de 2015, quando Bexiga assumiu o mandato de deputado, a Quaternaire Portugal já obteve 39 contratos por ajuste direto de entidades públicas, faturando cerca de 1,35 milhões de euros.
Ao ser eleito deputado em 2015, Luís Moreira Testa declarou no registo de interesses que tem participações em duas empresas: 33,3% da Up2Com e 21,18% da CCP e Associados. Contudo, não referiu que o cônjuge (em comunhão de adquiridos), Maria Arménia Moreira Testa, detém 15,39% de uma outra empresa – Costa, Calado, Pina e Associados Lda. – que celebrou um contrato por ajuste direto com o Município de Portel, em Julho de 2016 (quando Testa já era deputado), visando a “publicitação de eventos, feiras e iniciativas”. O preço contratual foi de 2.400 euros. A Up2Com também tem dois contratos por ajuste direto com entidades públicas, registados no portal “Base”, mas são anteriores à entrada de Testa no Parlamento.
É deputado à AR desde 1999 e no registo de interesses declara apenas uma participação no capital social da empresa Nuno Sampaio – Arquiteto Lda., detida em 15% pelo cônjuge, Maria Sampaio, e em 85% pelo respetivo filho, Nuno Sampaio. Desde 2009, enquanto Renato Sampaio se mantém na AR como deputado, a empresa Nuno Sampaio – Arquiteto Lda. já obteve 15 contratos por ajuste direto de entidades públicas (Parque Escolar, Administração Regional de Saúde do Norte, Município de Castelo Branco, etc.), faturando um valor global superior a 716 mil euros. O contrato mais recente foi celebrado no dia 23 de Janeiro de 2017, com o Instituto Politécnico do Porto, visando a aquisição de “serviços de elaboração do projeto da residência de estudantes” por 71.200 euros. O mais avultado remonta a Março de 2010, quando a Parque Escolar adjudicou a “elaboração do projeto de arquitetura” de uma escola em Castelo de Paiva por mais de 204 mil euros, sem realizar um concurso público. Por outro lado, Renato Sampaio detém 49,90% da empresa Muro – Sociedade de Construções, mas terá omitido esse dado no registo de interesses.
Deputado à AR desde 2011, em acumulação com as atividades profissionais de advogado e consultor jurídico, Paulo Rios de Oliveira detém 45% do capital social da Rios, Pinho & Cristo, sociedade de advogados que obteve dois contratos por ajuste direto da União das Freguesias de Lordelo do Ouro e Massarelos, em Setembro de 2015 e Janeiro de 2016 (com Oliveira em plenas funções na AR), por cerca de 14 mil euros. Objeto dos contratos: “Aquisição de serviços de consulta jurídica, elaboração de documentos, contratos ou protocolos de natureza jurídica.” Oliveira também possui participações em duas sociedades imobiliárias (28% da Rent 4 You e 100% da Green Leaves) que não estão inscritas no seu registo de interesses. Importa salientar que Oliveira é membro da Subcomissão de Ética e da Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas. Questionado sobre estes factos, o deputado não respondeu.
Foi deputado à AR durante 28 anos, entre 1987 e 2015, mantendo a atividade paralela de advogado. Nos últimos seis anos em que esteve na AR, de 2009 a 2015, Guilherme Silva obteve 25 contratos por ajuste direto de entidades públicas (Vice-Presidência do Governo Regional da Madeira, Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, Universidade da Madeira, Estradas da Madeira, etc.), faturando um valor global de cerca de 638 mil euros. Quase todos os contratos visaram a aquisição de serviços de consultoria jurídica, representação jurídica ou elaboração de pareceres jurídicos. O mais dispendioso foi celebrado em Abril de 2014 com a Secretaria Regional do Plano e Finanças, por mais de 170 mil euros.
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