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Ana Gomes: “Luanda Leaks? A procissão ainda vai no adro”

Acordo de Rui Pinto com as autoridades judiciais portuguesas marca um ponto de viragem, mas a ex-eurodeputada mostra-se muito descrente quanto à conclusão das investigações. Sobre o caso ‘Luanda Leaks’, Ana Gomes pensa que nem o alegado ‘hacker’ faz ideia de toda a informação que tem.
25 Abril 2020, 13h30

Um ano e um mês após a detenção de Rui Pinto, o alegado hacker vai colaborar com as autoridades judiciais portuguesas. A ex-eurodeputada Ana Gomes assinala ponto de viragem, mas não deposita confiança na justiça desportiva.

Este é um ponto de viragem?
A abertura das autoridades judiciais à colaboração com Rui Pinto é um ponto de viragem na atitude relativamente aos whistleblowers, a pessoas que podem ter um papel fundamental no alertar das autoridades para irem atrás da grande criminalidade, e designadamente da criminalidade de colarinho branco que está por detrás do tipo de crimes que foram expostos no ‘Football Leaks’, ‘Luanda Leaks’ e ‘Malta Files’.

Havia sinais contrários da parte da justiça até agora?
Antes, havia um sinal completamente contrário que tinha sido dado com a extradição e depois a prisão preventiva tão prolongada de Rui Pinto, que era a de que se valorizava mais o outro tipo de crimes que se imputa (o acesso ilegal, a violação de correspondência e até o tal crime de extorsão na forma tentada que era o único que justificava a prisão preventiva). Há uma clara viragem na atitude das próprias autoridades e lembro sempre o importante artigo da procuradora distrital de Lisboa Maria José Morgado que se referia ao “amigo hacker”, reconhecendo que, quando a criminalidade de colarinho branco utiliza os meios digitais para transferir dinheiro e para gozar com as autoridades, é importante que estas saibam tirar partido destas pessoas, que têm capacidade para ajudar os investigadores. Rui Pinto sempre disse que recorreu a esquemas como o ‘Football Leaks’ depois de se fartar de fazer denúncias pelo canais que a polícia e o Ministério Público têm.

Mas este acordo é uma viragem?
É uma viragem, espero que tenha consequências e que a colaboração seja alargada não apenas aos dois suportes digitais que a polícia já tinha acesso e que estavam desencriptados (e que Rui Pinto, aliás, tinha partilhado com autoridades de outros países, o que já podia ter acontecido com as autoridades portuguesas). Nem sei se o próprio Rui Pinto tem ideia de tudo o que tem nesses suportes. No caso dos ‘Luanda Leaks’, ainda a procissão vai no adro porque o consórcio de jornalistas só explorou um ou outro ângulo do manancial de informação que está disponível.

A justiça desportiva pode vir a ser obrigada a investigar graças a esta colaboração?
Não percebo nada de futebol, mas confesso que não tenho muita confiança nas designadas autoridades desportivas. É um mundo que parece ser perfeitamente manipulável pela criminalidade organizada que não está apenas ligada aos crimes fiscais, mas também ao branqueamento de outro tipo de criminalidade ainda mais pesada. Não é do futebol que espero algo, apesar de terem sido revelações do ‘Football Leaks’ que levaram à investigação que retirou o Manchester City da próxima edição da Liga dos Campeões. Em última análise, é das autoridades judiciais que vou esperar uma atitude e mesmo aqui não vou ter muitas ilusões. Boa parte da vicissitude deste ‘caso Rui Pinto’, pela ação e inação, tem a ver com o facto de os setores judiciais e policiais estarem infiltrados pelas redes criminosas, não tenhamos ilusões. A impunidade com que se passeiam determinadas pessoas não obstante terem sido expostas, nomeadamente pela imprensa, e nada acontece. Muitas vezes, não é a incompetência que explica tudo, são de facto esquemas de infiltração.

Porque demorou este acordo tanto tempo a ser concretizado?
Não consigo perceber porque é que as autoridades portuguesas não se moveram como aconteceu com as belgas, as francesas e as holandesas (que quiseram saber mais sobre as revelações do ‘Football Leaks’), e mobilizaram-se por causa de uma queixa da Doyen! Mas o que é a Doyen, continuo eu a perguntar! Esteja-se dentro ou fora de futebol, é nítido para qualquer pessoa que a Doyen não é uma organização impoluta. Está a ser investigada em Espanha, não tem sequer sede em Portugal, tem sede em Malta e Londres e tem por trás um grupo cazaque muito duvidoso… e porque é que isso fez mover as autoridades portuguesas? Sabemos que a Doyen era apenas a frente e por trás estavam os poderosos interesses infiltrados em vários clubes e alguns meios da nossa sociedade e aqui não posso descartar o papel dos intermediários, que são quem faz a engenharia de todos os esquemas financeiros que branqueiam o produto da criminalidade organizada: os advogados, os consultores… não tenho dúvida nenhuma que boa parte do encarniçamento contra Rui Pinto tem a ver com o papel de certos escritórios de advogados na orquestração desses esquemas que favorecem interesses corruptos. Nesse aspeto, o ‘Luanda Leaks’ é muito ilustrativo: vemos consultoras e advogados portugueses a conceberem projetos de decreto-lei para Angola para expropriar populações e deixar à filha do ex-presidente a possibilidade de redinamizar zonas da capital. Isso foi concebido com a ajuda de escritórios portugueses, conscientes dos conflitos de interesse e de outro tipo de criminalidade que poderiam estar a incorrer. Não tenhamos ilusões: quem trabalha no meio judicial sabe que há muita interpenetração do setor da advocacia com os operadores da justiça no Ministério Público. Talvez seja isso que explique boa parte do comportamento das autoridades judiciais e policiais portuguesas até que finalmente decidiram fazer o que era adequado.

Entrevista publicada no Jornal Económico de 24-04-2020. Para ler a edição completa, aceda aqui ao JE Leitor

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