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Anália Torres: “Tanto homens como mulheres no recrutamento para um posto de trabalho preferem os homens”

Em entrevista ao Jornal Económico, a coordenadora do estudo “Igualdade de Género ao longo da vida”, Anália Torres, defende a necessidade de combater os estereótipos de género desde a infância e fala sobre a diferença de horas de trabalho não pago entre mulheres e homens.
  • Cristina Bernardo
28 Maio 2018, 14h41

Anália Torres é professora catedrática e coordenadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Igualdade de Género da Universidade de Lisboa. Criou e lecionou diversos cursos de mestrado e de pós-graduação no domínio da sociologia, da família e do género e foi presidente da European Sociological Association entre 2009 e 2011. O mais recente desafio foi a coordenação do estudo “Igualdade de Género ao longo da vida”, lançado esta segunda-feira pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Em entrevista ao Jornal Económico, diz que “Portugal, em particular, tem uma ideia muito maternalista e que penaliza as mulheres desse papel simbólico que lhes é atribuído. Mas os homens também têm constrangimentos. Há uma valorização simbólica de ser homem no plano público e uma desvalorização destas dimensões do privado”.

Uma das principais conclusões do estudo é que na educação na infância prevalecem estereótipos de género. Ainda assim tem existido uma evolução nesta esfera?

Há estudos qualitativos que mostram que existe alguma evolução, mas são coisas muito pontuais. Não há muitos estudos sobre os estereótipos de género na infância, há muita produção de como combater os estereótipos, mas estudos aprofundados não. Não só em Portugal como no resto da Europa. É, aliás, uma das áreas em que se deveria investigar mais, porque há toda uma discussão sobre em que idade é que essas questões são mais fortes.

O que sabemos é que há muitos fatores que contribuem para que os estereótipos de género sejam reproduzidos. Por um lado, vamos imaginar que temos um infantário em que os professores e professoras se envolvem no sentido de dar mensagens contra o que são os padrões dos estereótipos de género, como, por exemplo, deixar os brinquedos abertos e achar normalíssimo que um menino vá buscar uma boneca e uma menina um trator. O que acontece é que às vezes essas iniciativas são contrariadas pelos pais em casa. E aí são mais punidos os rapazes quando adotam um comportamento de não estar de acordo com o estereotipo do que as raparigas, há uma margem de manobra das raparigas a esse nível. Há uma história que uma vez que me contaram de um infantário em que se procurava fazer de facto uma educação aberta e em que o rapazinho ia a guiar o seu bebé numa saída que fizeram e encontraram alguém. Houve logo uma mensagem do pai ou da mãe dessa criança a dizer que não queriam que fizessem este tipo de exercício. Há todo um trabalho e uma desconstrução ainda a fazer.

Em que medida em que os papéis desempenhados no contexto familiar acabam por perpetuar ou mitigar as desigualdades de género?

Muito, são fulcrais. A família tem um papel muito importante, os pares têm um papel muito importante e a sociedade, a um nível global, também tem um papel. Esta questão é uma aliança que se tem que desenvolver enquanto tal. As famílias têm que estar conscientes, cheias de boas intenções, do mal que podem fazer ao estar a empurrar as crianças para o desempenho de certos comportamentos. Digo que é por boas intenções porque ninguém quer que a criança seja ostracizada, não é? Mas está a afunilar-se desde logo os horizontes de uma criança, ao dizer que aquilo só pode ser para o rapaz e aquilo para a menina, os horizontes ficam muito mais fechados. E o exemplo em casa é fundamental. Se uma criança estiver a ver que os dois pais trabalham, chegam os dois mais ou menos à mesma hora, mas é a mãe que está na cozinha a fazer as tarefas domésticas… Embora haja mais casais a fazer uma maior divisão de tarefas, os números mostrem que, apesar de tudo, ainda não é significativo do ponto de vista do trabalho não pago. É este exemplo que fica na cabeça de uma criança, que quando crescer e for ela própria mãe acaba por incorporar que é obrigação dela fazer mais coisas do que faz o marido.

Existe uma diferenciação na educação do filho e da filha? À filha continua a ensinar-se as tarefas domésticas, enquanto existe uma menor responsabilização do filho nessa área, uma maior benevolência?

Mas responsabiliza-se mal, não é? Há uma questão de fundo que importa perceber muito bem: quando perguntamos porque é que há desigualdade de género, há vários patamares para explicar esta desigualdade, uma delas é a desigualdade estrutural. Isto é, às mulheres estar associado o papel da reprodução e de tudo o que tem a ver com o cuidado. O que acontece é que hoje em dia as mulheres trabalham tanto no exterior de casa como os homens e depois acumulam essa carga com o trabalho não pago. Isto é visto como algo natural e tudo o que envolve o trabalho doméstico é desvalorizado, inclusive o seu peso. O trabalho doméstico é pesado porque normalmente o que se passa, e quando comparamos com outros países percebemos isso muito bem, é que nos países do Sul a carga das mulheres a fazerem tudo é brutal. Tudo o que tem a ver com o trabalho da reprodução e com o trabalho doméstico é pesado e deve ser partilhado. Não é só a questão de fazer as coisas, de executar, é tudo o que tem a ver com o pensar. Por exemplo, o que é que vamos comer amanhã? Para dizer o que vamos jantar amanhã, teve que haver compras, teve que haver planeamento, teve que haver execução. Há todo esse esforço físico e até mental que depois desemboca numa refeição. E quem diz isto, diz tudo. Isto é trabalho, não é uma coisinha. Tudo começa com esta desvalorização.

No mercado de trabalho as desigualdades de género são muito acentuadas.

Uma das coisas que o estudo demonstra de forma muito clara é que logo à entrada do mercado de trabalho, em condições de igualdade em termos de formação ou até em condições em que as mulheres têm um pouco mais de escolaridade do que os homens, homens e mulheres no recrutamento para um posto de trabalho preferem os homens. As mulheres começam a sua atividade profissional com uma desvantagem relativamente aos homens desde muito cedo. Depois vai-se acumulando, e depois passam a constituir família, têm filhos e filhas e essa desvantagem aprofunda-se porque como se lhes atribui simbolicamente a tarefa de todo o trabalho de reprodução, acabam por não conseguir. As mães na Europa são as que têm a maior taxa de emprego. As mães, atenção, que é importante distinguir às vezes entre mães e mulheres.

Falamos numa diferença de quatro horas entre mulheres e homens, durante o rush of life, sobre o trabalho não pago, segundo o estudo. Continua a existir a ideia na família tradicional do marido “ajudar” a mulher e não uma partilha das tarefas….

Porque é considerado, no fundo, que ela tem a responsabilidade e ele pode dar uma mãozinha. A ideia de que há uma área privada da vida que deve estar a cargo da mulher, é tão absurda quanto a ideia de que as mulheres não devem trabalhar fora de casa. Hoje em dia é claríssimo que as mulheres não só trabalham porque querem, porque é importante para elas, como é claro que diminuir as horas de trabalho para ter uma vida mais equilibrada são os dois que o devem fazer. É, alias, o que as pessoas preferem no inquérito: ter mais tempo para a família como para o seu tempo pessoal. Uma das coisas que os inquéritos mostram também é que os homens têm sempre mais margem para o seu tempo pessoal, tempo de participação cívica ou tempo de participação política.

No entanto, os homens também têm constrangimentos de género?

Quando se fala em constrangimentos de género fala-se em constrangimentos para mulheres e para homens. Para as mulheres é o condicionamento de que se elas não desempenharem as coisas de uma certa maneira, há uma espécie de crítica implícita de que elas são más mães, por exemplo. Portugal em particular, tem uma ideia muito maternalista e que penaliza as mulheres desse papel simbólico que lhes é atribuído. Mas os homens também têm constrangimentos. Há uma valorização simbólica de ser homem no plano público e uma desvalorização destas dimensões do privado. Quando vemos, por exemplo, causas de morte até aos 29 anos em toda a Europa, cerca de 60% das causas dos jovens homem são por acidentes, só 40% é que são das mulheres. Isto mostra também como joga contra os homens uma ideia de uma certa masculinidade, domínio, controlo e poder e que têm que correr riscos. Noutro exemplo, os jovens homens de setores mais desfavorecidos condiciona-os esse papel, a ideia que são os provedores, que têm que ganhar dinheiro no sentido em que podem abandonar a escola mais cedo do que as raparigas porque têm aquele impulso para ir trabalhar e isso pode não acontecer em relação às raparigas.

A ideia de masculinidade reflecte-se também na escolha de profissões. Há profissões que continuam a estar associadas a determinado género?

Aí voltamos ao trabalho de base que temos que fazer ao nível da comunidade, o trabalho de consciencialização de todo o desperdício de talento que há quando não se tem uma educação para a desconstrução de estereótipos. Evidentemente, há gostos pessoais que se vão criando, mas vão-se criando também com o que vê em casa e no contacto entre pares. Isto é particularmente importante também na adolescência, uma altura em que as questões de género são muito importantes, e onde as questões de homofobia se colocam bastante com a questão da ideia de uma normalidade só associada à heterossexualidade, mas também se colocam as questões de o que é um homem e uma mulher. Tudo isto desemboca nessas escolhas. Mas em Portugal, temos uma taxa de mulheres a participarem em cursos tradicionalmente masculinos muito mais alto do que em muitos países do norte da Europa. Na Europa a participação de mulheres, em média, em cursos de engenharia têm uma participação de cerca de 14%, nós temos uma participação de 30%. As mulheres portugueses têm uma percentagem em cursos científicos muito maior do que em outros países da Europa. No entanto, quando se faz a escolha, quando se pensa que se vai para um meio onde há muitos homens, a vontade pode não ser muita porque as pessoas querem estar em sítios onde se sentem confortáveis e não tenham dificuldade em penetrar. Homens e mulheres podem ser o que quiserem e a questão da escolha deve coincidir consigo próprias e não ser condicionada por destinos que estão a empurrá-los para um lado ou para outro.

Qual é a importância que pode ter a linguagem neutra ou inclusiva nessa educação?

As pessoas tem desvalorizado isso, dizer todos e todas, acham que é uma mania. Mas à medida que as coisas se começam a aprofundar, começam a perceber a importância. Se eu lhe disser: os juízes portugueses, a imagem mental será um homem vestido de preto. Acontece que a maioria não são juízes, são juízas. Eu pergunto-me se por causa disso, disséssemos as juízas e fosse considerado neutro e os homens tivessem que se adaptar em relação a isso. A questão que se tem que perceber é que a língua é um instrumento vivo e os usos da língua têm que acompanhar a própria mudança social.

Voltando à questão do mercado de trabalho. O gap salarial entre géneros tem influência em várias dimensões, como por exemplo as carreiras contributivas.

Fala-se daquela diferenciação dos 17% do gap salarial entre homens e mulheres, mas vou pôr isto em euros: nas profissões mais qualificadas o gap é brutal, pode ser uma diferença de 1300 euros e nas profissões menos qualificadas, as diferenças chegam a ser de 300 euros. Uma média que pode ir de 700 euros para os homens pode ser de 450 euros para as mulheres. Isto é geral para toda a Europa, mas quando se compara os salários de Portugal, são baixíssimos mesmo em comparação com os países da Europa do Sul. Este é um resultado chocante para nós, é a evidência que as desigualdades são estruturais porque estamos a falar de recursos. Isto condiciona a vida das mulheres para sempre e o efeito é a longo prazo.

Outra das conclusões do estudo é que as mulheres têm muito mais contratos precários e contratos temporários do que os homens.

Isso é o resultado mais uma vez da desvalorização das mulheres no mercado de trabalho.

Sobre a parentalidade, é uma das áreas onde tem existido uma maior evolução na partilha das responsabilidades? Os homens têm procurado ter um papel mais activo na vida dos filhos?

Na questão dos filhos há de facto uma alteração, uma alteração muito mais expressiva do que em termos de trabalho doméstico. Sobretudo entre os mais jovens. O que acontece muitas vezes é que também os homens estão armadilhados neste sentido: como as mulheres têm tendência para ter empregos em que ganham menos e quando ele ganha mais se é jovem está na perspetiva de vir a ganhar ainda mais, portanto, tem que mostrar na empresa o seu empenhamento e ficar mais horas, quando se coloca a questão de quem é que vai buscar a criança, não é ele que vai. A pessoa fica armadilhada porque se for ela a ir buscar, nessa ideia, perde menos do que ele. As organizações também estão a contar com o homem para isso e, portanto, fazem uma pressão. As organizações também têm género, não é? Acabam por pressionar mais o homem nesse sentido e os colegas de trabalho estranham, isto está a mudar muito lentamente mas ainda não se sente. Ele até pode querer ir buscar a criança mas tem que ter muito poder interno e dizer “não, eu quero ir e acompanhar esta fase do meu filho ou da minha filha” e já há homens a fazerem isto. Mas também se percebe que podem não o fazer pelas tais questões objetivas de ele ter mais a perder. Enquanto o casal se dá bem isto pode ser magnífico, com a perspetiva de melhorar tudo para a família, quer dizer isto é tudo cheio de boas intenções. No entanto, objetivamente estão em posições diferentes e imagine que ao fim de dez anos estas pessoas se separam? Ele entretanto progrediu profissionalmente e ela não. Já está aqui outra vez a diferença marcada, toda a questão de ela ficar depois numa posição de menorização relativamente àquilo que são os ganhos que vai ter porque entretanto se sacrificou. Esta questão é muito multilateral: é objetiva, são os recursos que as mulheres têm que são menos logo à entrada do mercado de trabalho, é simbólica. É importante também perceber que há muitas vezes uma dimensão inconsciente nestas escolhas que os homens e as mulheres fazem.

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