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Arménio Carlos: “Patrões estão abaixo da média em termos de formação”

Secretário-geral da CGTP, a dias de deixar o cargo, diz que os aumentos propostos pelo Governo aos funcionários públicos “não são admissíveis” e que muitas empresas dependem dos salários baixos.
14 Fevereiro 2020, 09h44

Quase a terminar o segundo mandato à frente da CGTP, que coordenou em tempos de “troika” e de “geringonça”, Arménio Carlos faz o balanço dos problemas dos trabalhadores portugueses e dos desafios para a liderança a eleger no congresso que arranca hoje. Certo é o regresso do sindicalista de 64 anos, que sai por limite de idade, aos quadros da Carris.

Na legislatura anterior havia um Executivo com apoio parlamentar de partidos nos quais a maioria dos dirigentes da CGTP votaram. Foi doloroso ver o Governo a não corresponder às vossas expectativas?
Só seria doloroso se as criássemos. Definimos consensualmente uma posição clara. Estando numa situação nova, e sabendo que temos várias sensibilidades partidárias…

…todas elas representadas naquela maioria parlamentar.
Sem dúvida nenhuma. Por isso foi ainda mais relevante decidirmos que, independentemente de quem estava no Governo, a CGTP não deixaria de ter intervenção autónoma e não iríamos discutir posicionamentos partidários, e sim as propostas apresentadas pelo Governo às reivinidicações. Se fossem positivas, apoiávamos; se fossem negativas ou não correspondessem ao proposto, então criticávamos. É verdade que em 2016 houve redução do número de greves. Mas foi o ano em que o Governo começou a cumprir com a devolução dos rendimentos e direitos. Se a CGTP tinha lutado por essas reivindicações, não iria lutar contra a sua implementação. A partir de 2017 aumentou o número de greves e de iniciativas de luta, pois não houve resposta. Não houve contradição entre aqueles que são sindicalistas, independemente de serem do partido A ou do partido B, e a sua intervenção.

Se os números oficiais revelam que a partir de 2017 houve mais contestação, a que se deve a ideia de que o PCP refreou a CGTP no âmbito da nova maioria?
Só posso responder com os dados da Direção-Geral das Relações de Trabalho, que demonstram o contrário. E houve também um aumento significativo do número de greves no setor privado. Lamentavelmente, alguém lança uma mensagem e os outros seguem-na.

Reconhece, portanto, que essa mensagem passou…
Não houve alguém que disse, logo a seguir à saída do governo PSD e CDS e à constituição do governo do PS, que a CGTP iria entrar de férias? A ideia era denegrir e procurar passar uma imagem falsa de que não protestávamos por causa das políticas mas por serem do PSD e CDS, e que com o governo do PS não iríamos protestar nem metade por haver um entendimento para os Orçamentos do Estado (OE) com o PCP, BE e PEV. Fez-me lembrar a célebre frase de Goebbels, ministro da Propaganda nazi: “Quanto maior for a mentira, mas mais convictamente divulgada, em melhores condições estará de se tornar uma verdade absoluta.” Não estamos a dizer que somos perfeitos. Temos falhas, mas não somos uma organização que falseia dados.

Já disse que 2020 será um ano de contestação, visto que o Governo se estará a tornar “um tanto ou quanto autossuficiente”. Porque é que a contestação é inevitável?
Está provado que o país está em condições de responder a um conjunto de reivindicações e a legislação do trabalho tem de ser modernizada, do ponto de vista da valorização dos trabalhadores. Não podemos aceitar que licenciados tenham salários baixíssimos e que trabalhadores altamente qualificados continuem a receber perto do salário mínimo nacional. Valorizar qualificações e competências é um acrescento para a melhoria de produtividade das empresas. Se não for feito, as pessoas saem para o estrangeiro. E os melhores não regressam. Isso tem implicações na produtividade, demografia, natalidade e desenvolvimento do país. O Governo está à espera de que médicos, enfermeiros, professores, juízes e magistrados fiquem satisfeitos por levarem dois ou três euros?

Na Função Pública, o Governo propõe um aumento de 1% para trabalhadores até cerca de 700 euros. É suficiente?
Não é admissível que a esmagadora maioria dos trabalhadores da Administração Pública seja confrontada com um aumento de 1% nos escalões mais baixos. Corresponde, em certos casos, a menos de sete euros mensais. Vinte cêntimos por dia. Não faz sentido. O Governo diz que vai gastar 87 milhões de euros nestes aumentos, mas depois o OE tem lá duas rubricas: parcerias público-privadas e Novo Banco, que no seu conjunto totalizam 2,1 mil milhões de euros. Confirma-se que há dinheiro.

A inexistência de qualquer acordo à esquerda pode levar a um recuo naquilo que foram as alterações na legislação laboral?
É algo que eleva a responsabilidade da CGTP. Não haverá, como não houve no passado e dificilmente haverá no futuro, nenhum entendimento favorável aos trabalhadores se estes não se mostrarem disponíveis para lutarem e estarem mobilizados. Maior mobilização, contestação e participação implicam que o Governo terá de estar mais aberto a discutir, a negociar e a acordar. Na Assembleia da República os partidos encontram soluções legislativas ou parlamentares, mas o que diz respeito a negociação, de salários e outros temas, é entre o Governo e os sindicatos da Administração Pública ou entre os patrões e os sindicatos da CGTP no setor privado.

Admite que houve avanços na última revisão da legislação laboral, em julho de 2019?
É verdade que existe uma ou outra medida positiva, mas que se esfumou a partir do momento em que foram introduzidas medidas complementares. A redução dos contratos a prazo, de três para dois anos, foi positiva. Mas houve uma subversão de um processo que supostamente deveria ser iniciado para combater a precariedade e depois a legitimou. Isto resolve-se com o registo informático da Segurança Social. Estão lá as contribuições dos trabalhadores e empresas. Basta analisar meia dúzia de empresas, identificar os infratores e anunciar que terão de integrar os trabalhadores identificados e aqueles que se prove estarem a fazer serviço permanente, e também que serão penalizados do ponto de vista financeiro e de imagem. Se isto for feito, não digo que se resolva o problema da precariedade, mas haverá uma redução significativa da subversão.

Esta sexta-feira começa a greve dos trabalhadores das administrações portuárias. Que outros setores podem vir  a sair à rua nos próximos dias?
Na Administração Pública teremos novidades em breve. A Frente Comum já disse que vai fazer um plenário de dirigentes e delegados sindicais para discutir formas de luta. No setor privado temos mobilização em torno da exigência de resposta positiva a cadernos reivindicativos (salários, horários, etc.) e setores de atividade que poderão ter movimentações. Há processos que se arrastam há anos, pois a associação patronal quer que aceitemos tudo.

Isabel Camarinha foi escolhida para o substituir à frente da CGTP. O que trará de novo?
Vai procurar pôr as suas competências e capacidades ao serviço do coletivo. É isso que importa fazer, pois o secretário-geral da CGTP não é um órgão. O secretário-geral coordena a comissão executiva. Essa sim é um órgão. Desse ponto de vista, certamente que se saberá envolver no trabalho coletivo e procurar coordenar contributos individuais que resultam da reflexão da comissão executiva.

Camarinha tem 59 anos, e por isso só poderá fazer um mandato. Quatro anos é suficiente para alcançar os objetivos definidos?
Quanto maior for a força dos trabalhadores, mais depressa são alcançados resultados. Não diremos que em quatro anos se consegue tudo, mas pode-se avançar mais. Isso depende da força que se tem e, quando os trabalhadores acreditarem na força que têm, então serão imbatíveis.

A escolha de uma sindicalista ligada ao comércio, escritórios e serviços é um sinal dos tempos?
A questão de fundo foi encontrar uma pessoa que tivesse disponível para assumir funções, tivesse as condições objetivas enquanto dirigente sindical para o fazer e também um suporte do sindicato que lidera.

É a forma de a CGTP se preparar para um futuro em que a automatização e a inteligência artificial reduzirão o número de trabalhadores nos setores da indústria e dos transportes?
Apesar da dramatização, não é verdade que com o desenvolvimento das tecnologias ficaremos reduzidos a pó no que respeita ao emprego. Vai haver redução de postos de trabalho, mas propomos desde já que se identifique os impactos da introdução de novas tecnologias e consequências para os trabalhadores. Não somos contra a evolução da tecnologia. Queremos é que seja posta ao serviço de desenvolvimento dos países, dos trabalhadores e de uma mais justa distribuição da riqueza.

No seu último discurso do 1.º de Maio citou Karl Marx no que toca à luta de classes. Acredita que essa realidade é imutável?
Acho. Alguns diziam que a luta de classes já devia ter terminado e os sindicatos também. Então porque razão temos desigualdades a este nível? A classe média foi caindo rapidamente e está a níveis muito baixos.

Vai manter-se no comité central do PCP?
É uma discussão a ter mais à frente. Esse congresso é só no final do ano. Depois de sair de secretário-geral da CGTP continuarei com iniciativa política e a participar em iniciativas para que me convidem, mas não exercerei nenhum cargo político com responsabilidade acrescida.

Acredita que é também a hora de Jerónimo de Sousa passar a liderança a uma nova geração?
É uma boa pergunta, mas não posso responder. Ele é que o pode fazer.

Se isso acontecer já é o momento de haver uma liderança do PCP que não tenha tido luta política ou sindical antes do 25 de Abril?
É a lei da vida. O homem e a mulher não são eternos e a tendência é para que os mais novos assumam funções políticas, sem esquecerem e até tendo como base a experiência daqueles que os antecederam.

Concorda com o ministro Augusto Santos Silva, que disse que um dos maiores problemas das empresas portuguesas é a falta de qualidade dos gestores?
Os factos, dados e números confirmam que, em relação à formação, os patrões estão abaixo do nível médio dos trabalhadores. É reconhecido que grande parte das nossas empresas são micro-empresas. E que temos um modelo de baixos salários e trabalho precário, onde muitas empresas continuam a não se modernizar, não por não terem condições para tal, mas porque os empresários continuam a ter a visão de vistas curtas de explorar os baixos salários para aumentarem os lucros. Não por acaso, algumas zonas do Minho são as que têm mais Ferraris por metro quadrado no país. Há um problema de formação de quadros e de falta de investimento na modernização das empresas. Não sei a forma nem o tom do ministro, mas os factos e dados concretos transmitem-nos que há muito a fazer no âmbito da formação, organização, gestão e modernização das empresas em Portugal. Isso é inquestionável. Os empresários não têm de ficar melindrados.

Guarda recordações positivas de empresários ou de líderes empresariais do outro lado da mesa de negociações?
Não irei referenciar agora nenhuma em particular. Independentemente dos resultados, o que importa numa relação como aquela que desenvolvemos com as entidades patronais, sejam empresários ou o Governo, é a frontalidade, a seriedade, o rigor e a abertura para fazermos uma discussão séria, equilibrada e justa. Houve discussões muito interessantes, que estimularam a minha adrenalina. As reuniões que me davam mais prazer, pois tinha a oportunidade de dizer aquilo que os portugueses sentiam mas não podiam transmitir, eram com a troika. Eram uma oportunidade única de os apanhar e mostrar-lhes aquilo por que passávamos.

Consegue colocar-se do ponto de vista do empresário que está do outro lado da mesa?
Consigo. Para um bom negociador, conhecer as propostas da outra parte e perceber a sua tática negocial tem de ser uma prioridade, para depois, quando apresentarmos as nossas propostas, darmos uma margem de manobra mínima para a outra parte nos contestar. É isso que nos leva a ter necessidade de preparar bem as reuniões, conhecer bem o espaço onde estamos e ter uma conceção de estrutura que associe as nossas ideias centrais e aquilo que é a discussão.

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