Com a aplicação plena do Título IV do regulamento MiCA (Markets in Cripto Assets) no dia 1 de Julho de 2024, o Euro passou a poder circular na União Europeia na forma de Stablecoin. O MiCA define este novo tipo de moeda como uma criptoficha de moeda electrónica, em inglês, e-Money Token (EMT). Várias foram as instituições financeiras que se apressaram a submeter licenças aos seus reguladores locais para poderem passar a oferecer esse tipo de agregado monetário em toda a União Europeia (UE), tanto a empresas, como a consumidores finais.

Exemplos notáveis são o EURCV da Societé-Générale-Forge e o EURC da Circle. Ambos puderam avançar rapidamente, pois já tinham Stablecoin não-reguladas disponíveis, faltando apenas o licenciamento de acordo com as regras do MiCA. Que oportunidades se abrem agora com este novo tipo de moeda fiduciária?

Em primeiro lugar, convém lembrar que estes novos agregados monetários são da responsabilidade de instituições financeiras retalhistas, na mesma linha do que já acontece com os Euros digitais geridos através de contas bancárias. Só que, desta vez, essas contas são substituídas por wallet criptográficas na web3, e é isso que vai trazer uma extraordinária eficácia às economias que as utilizarem para trocas de valor. Isto também significa que o tão falado Euro Digital na forma de CBDC (Central Bank Digital Currency) perde interesse. É que a solução proporcionada pelo MiCA é muito mais simples, para além de manter o equilíbrio das actuais instituições financeiras, incluindo o seu provisionamento e a sua liquidez.

Quando pensamos num novo tipo de moeda vem naturalmente à cabeça a economia onde vivemos e os pagamentos que estamos habituados a fazer. Porém, o interesse de uma nova tecnologia passa pela sua utilização inovadora, o que torna difícil vislumbrar um futuro essencialmente diferente.

Quando se trata de pagamentos, há, no entanto, duas realidades que nos podem inspirar: i) as criptomoedas tradicionais na economia não-regulada, e ii) as já aqui discutidas Super App do sudeste asiático. Estas duas realidades são semelhantes na forma conveniente como as transacções digitais procedem à troca de valor, sejam estas virtuais ou quando executadas no mundo real. E é aqui que o MiCA faz a diferença, pois vai permitir que as novas criptomoedas reguladas possam ser utilizadas em qualquer destas duas realidades na União Europeia.

Mas então não podemos utilizar uma criptomoeda não-regulada para executar um pagamento, tal como por vezes se vê anunciado por aí? Não, não podemos. Essas criptomoedas podem e são utilizadas para troca entre reservas de valor, mas não são pagamentos no sentido estrito do termo. Por exemplo, podemos escriturar a troca entre dois imóveis, e também o podemos fazer quando uma das reservas de valor é uma criptomoeda não-regulada, tal como já discutimos aqui. Mas para que uma criptomoeda possa preencher os requisitos de uma conta de pagamento no nosso espaço económico, esta tem de ser convertida num agregado monetário medido em euros.

O mesmo acontece, aliás, se quisermos por exemplo utilizar dólares para comprar seja o que for na Europa. É até por isso que existem casas de câmbio. Ora, com as criptomoedas não-reguladas não é diferente. O câmbio até pode ser automático, mas o comerciante não deixa de ter de escriturar a moeda local, por exemplo euros, e pelo menos um dos intervenientes não deixa de pagar a respectiva taxa de serviço, às vezes tão alta quanto 1%. Talvez seja, aliás, de lembrar que as taxas actuais para utilização dos cartões de débito podem ser tão baixas quanto 0,4%, sendo estas suportadas normalmente pelos retalhistas.

Uma criptomoeda regulada tem de ser necessariamente uma Stablecoin, e a sua vantagem virá da redução da fricção ao realizar as referidas trocas de valor sem necessitar de todo um sistema financeiro de suporte para as gerir. Ou seja, os EMT comportam-se exatamente da mesma forma como as notas e moedas que temos no bolso, no sentido em que têm vida própria. Só que, desta feita, vão passar a estar nas nossas wallet digitais, como aquelas onde guardamos os bilhetes de avião em formato electrónico.

Além do mais, o caminho para a utilização generalizada dessas wallet já está gravado em pedra na União Europeia, tal como também já aqui discutimos. O mais interessante é que esta forma de gerir os meios de pagamento associada à identidade digital unificada e com valor jurídico vai permitir o aparecimento de transacções económicas muito mais eficientes e semelhantes às que já conhecemos no mundo da web3 não-regulada, ou o das acima referidas Super App.

Mas a grande diferença e vantagem dos EMT está no facto de todos os participantes estarem devidamente identificados por lei, podendo, portanto, estender-se a todo o tipo de transacções da economia regulada. O potencial de inovação que aí vem é inclusivamente maior que o aparecimento da própria web pelo facto de estarmos a incluir transacções do mundo não-virtual. Mas nem tudo são rosas porque, para que todas essas transacções possam de facto beneficiar da eficiência dos EMT, vamos também ter de tokenizar e regular os activos e direitos subjacentes, e é por isso que precisamos de uma estratégia nacional. Vamos deitar mãos à obra?

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.