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As perguntas que ainda ninguém fez a João Rendeiro: A história que falta contar sobre a crise da banca

“Falta contar a história dos reguladores e dos auditores na crise da banca”. O fundador e ex-presidente do BPP diz que não burlou ninguém e quer expor responsabilidades do Banco de Portugal e dos auditores na crise da banca. A vida suspensa de João Rendeiro, o caso BPP e os outros casos da banca serviram de pano de fundo a esta entrevista.
9 Junho 2017, 14h58

Qual é o ponto da situação relativamente ao caso BPP?

Há várias questões que se podem colocar: dos clientes, acionistas e contribuintes. Começando pela questão mais importante, talvez, a dos contribuintes. Sabemos, hoje, que os contribuintes não vão ter nenhum prejuízo com o BPP, pelo contrário, já tiveram ganho. A segunda grande conclusão são os clientes de retorno absoluto, a maioria dos clientes do banco, também sabemos que já receberam os seus patrimónios e não vão ter qualquer prejuízo.

Esses clientes, processaram-no?

Não, por espantoso que possa parecer, não tenho nenhum processo de clientes de retorno absoluto.

E como é que isso se explica?

Não sei. Terá que lhes perguntar a eles, mas os clientes de retorno absoluto, nenhum deles – e eram milhares – nenhum deles me processou. E felizmente, com razão, porque vieram a receber o seu património. Mas repare estes clientes que receberam o seu património são os mesmos que se manifestaram e apareceram nos jornais, nas câmaras de televisão, a reclamar sobre o fim do mundo. O que não significa que no caso do BPP, não haja pessoas e investidores, que não tenham perdido dinheiro. E quem é que perdeu dinheiro? Primeiro, os acionistas do banco. E eu, como maior acionista do banco, fui o principal perdedor financeiro.

Perdeu quanto dinheiro?

Depende da valorização do banco, mas estamos a falar de valores muito elevados. São perdas muito importantes. Portanto, os acionistas perderam o seu capital e também investidores que tinham produtos de risco, alguns deles também perderam o seu capital, na altura. Embora também se deva reconhecer que estes investidores de risco, também tinham ganho muito com investimentos de risco, no próprio banco.

O que é que está provado em relação à sua quota-parte de culpa no colapso do BPP?

Eu recentemente acabei de ser absolvido, em primeira instância – ainda não tenho conhecimento objetivo, mas presumo que haja recurso – da acusação mais grave que eu tinha até hoje, que era de burla qualificada. Portanto eu tinha uma acusação de burla qualificada, no caso da Privado Financeiras, e essa era uma acusação grave. Se fosse provado, e se eu fosse efetivamente condenado, independentemente da graduação da pena, do ponto de vista pessoal, ser provado que eu burlei, seria para mim, altissimamente penalizador. Mesmo interiormente, para mim, independentemente do que as pessoas pensassem.

E burlou?

O tribunal diz que não. E eu também achei sempre que não. Para além disso, há outras questões que estão em equação, que era se os auditores sabiam, não sabiam, de certos produtos. E eu tenho esperança de provar – porque o julgamento ainda está em curso – que os auditores e o Banco de Portugal, de fato, conheciam aquilo que dizem que não conheciam.

O que é que lhe custa mais: os processos-crime ou o julgamento da opinião pública?

Para qualquer pessoa de bem, e não precisa de ser banqueiro, o seu nome é o mais importante. Isso acima de tudo. Mas o bom nome da pessoa não é só o que os jornais dizem, mas também o que os nossos amigos sabem sobre nós.

E tem amigos?

Tenho. Poucos, mas bons.

Em dez anos, desapareceram quatro dos nove maiores bancos: BES, BANIF, BPN E BPP.   15 mil milhões de euros – é o número subestimado – que os contribuintes terão pago para salvar a banca portuguesa do colapso. Como é que explicamos isto de uma forma simples aos portugueses?

Há dois tipos de perdas de valor na crise financeira de 2008. E as perdas financeiras são, primeiro dos acionistas dos bancos, e isso hoje está mais ou menos calculado à volta dos 60 mil milhões de euros. Estamos a falar de muito dinheiro, é mais ou menos 30% do PIB português. Evidentemente que estes investidores não são todos portugueses. Mas mesmo que sejam metade portugueses, 15% do perda do PIB é um montante muito,muito grande. Depois, em que medida é que os contribuintes portugueses perderam dinheiro com a banca portuguesa. E aí há seis casos de envolvimento direto. Três em que os contribuintes portugueses não tiveram qualquer perda, pelo contrário, até tiveram ganho. Estamos a falar do BPI, do BCP e BPP. Depois, há três casos onde houve perda significativa, um dos quais já conhecido, que é o BANIF, onde a perda supera os três mil milhões de euros. Há o caso do BPN, onde a perda ainda não é definitivamente conhecida, mas é superior a cinco mil milhões de euros. Estima-se entre sete a nove mil milhões de euros a perda final. E depois há o caso do BES / GES onde a perda neste momento ainda não é clara, mas já se sabe que é muito, muito significativa. E depois há dois outros casos que são mais indiretos, a Caixa Geral de Depósitos, onde não se pode dizer que haja uma perda efetiva, mas há um investimento muito significativo dos contribuintes, sem retorno imediato. E agora há o caso do Montepio, que está a ser gerido com um extremo cuidado.

A crise financeira afetou os mercados de forma colossal, mas não explica tudo, pois não?

A crise financeira é o pano de fundo que explica o crescimento da massa monetária e do crédito. Agora, essa expansão do crédito também não explica tudo. Houve dentro dessa euforia do crédito, alguns comportamentos claramente excessivos e criminais, e esses são conhecidos, e a justiça está a fazer o seu caminho, no estrangeiro e em Portugal.

O que é que falta, realmente, contar aos portugueses sobre a crise da banca nos últimos dez anos?

A grande história que falta contar em relação aos problemas dos bancos é o tripé. Há um tripé apenas onde uma das pernas está explicada. Falta explicar as duas outras pernas. E quais são as duas outras pernas? Os reguladores, em particular o Banco de Portugal, neste caso. E os auditores. Portanto, o tripé sobre a saúde de um banco tem estas três dimensões que é: a gestão, é o regulador e o auditor. Se alguma coisa não funcionar bem, neste tripé, não é possível dizer que é só um, ou só o outro, ou o outro, é uma conjugação de fatores, que tem a ver com os três.

No caso do BPP, alguém desse tripé podia ter dito ’não sabia’ da situação do banco?

Ninguém. E essa é a verdade que falta assumir. A verdade é que os três do tripé sabiam, mas não assumiram, e colocaram as culpas apenas num dos pés do tripé. E mais, mentiram. E mentiram em tribunal sobre esta matéria. E portanto é esta verdade que falta assumir, e vai ser assumida. É uma questão de tempo. Porque a verdade pode demorar muito tempo a aparecer, mas aparece. E, neste momento, já temos muito mais elementos para demonstrar que, quer os auditores, quer o Banco de Portugal, mentiram sobre certas matérias-chave. Estou a falar do BPP, e dos outros bancos, creio que seja igual. Mas no caso do BPP, que é o caso que eu conheço em profundidade, posso dizer, sem margem de erro, que houve mentira destas entidades em testemunho no tribunal. E isso já foi demonstrado e vai ser demonstrado, ainda mais. Em geral o que lhe posso dizer é, que neste tripé, há uma quota parte de responsabilidades. Eu não estou à procura de culpados, nem culpabilizar ninguém. Só estou a dizer que não é possível que a gestão, os auditores e os reguladores sejam separáveis desta questão geral.

Não está a culpar mais o ‘polícia’ do que o ‘ladrão’?

Os polícias, neste caso, são: a PSP, a Polícia Judiciária. Se quiser, o Ministério Público. Agora, o regulador não é polícia nenhum. O regulador é uma entidade que intervém diariamente em relação às instituições, e portanto, está em contacto com ele. O problema é que o regulador tem funções de conflito de interesses, que é uma função de supervisão, uma função de regulação e uma função sancionatória. E portanto, o polícia é, simultaneamente, o ator da supervisão diária. E o ator da supervisão diária não gosta que o polícia lhe diga que o ator da supervisão diária fez mal.

O que é que falta explicar sobre o caso BPN?

Há uma coisa que falta explicar, mas as pessoas já perceberam, porque é que o Banco de Portugal não interveio no BPN, antes da nacionalização. Mas o que, porventura, falta explicar verdadeiramente, foi o que aconteceu depois da nacionalização. E eu creio, e não sou só eu, porque isto hoje já começa a ser quase unânime, é que o problema após a nacionalização, se multiplicou e ampliou. E falta explicar aos portugueses porque é que, depois da nacionalização, com a gestão do BPN feita pela Caixa Geral de Depósitos, porque é que o problema se amplificou e complicou, em vez ter melhorado.

E porquê?

Muito provavelmente, a Caixa Geral de Depósitos passou para o BPN problemas que tinha.

Como assim?

Isso explica que a Caixa ficou com menos problemas, mas o BPN com mais. Não deixa de ser grave, eu nem tenho palavras para dizer, quer dizer, não é possível agir assim.

O BPN é aquilo a que se pode chamar um ‘caso de polícia’?

O que é que é um caso de polícia? Foi o que foi feito antes da nacionalização, ou o que foi feito depois da nacionalização. Casos de polícia são os dois. É antes da nacionalização e neste momento a administração do Dr. Oliveira e Costa foi julgada e houve uma condenação. Agora, depois da nacionalização, se é verdade que os problemas se agravaram fruto da transferência de perdas da Caixa Geral de Depósitos para o BPN, isso é igualmente um caso de polícia.

Mas isso já foi, efetivamente, detetado?

Se eu lhe estou a falar nisto, é porque há uma presunção minimamente séria, senão não se explicaria porque é que o problema do BPN até à nacionalização era um, e falava-se sempre em dois mil milhões, três mil milhões. E hoje, estamos a falar em mais do dobro. Portanto, alguma coisa aconteceu no processo de nacionalização, e na gestão do processo de nacionalização, que foi feita pela gestão da CGD, pelo Dr. Francisco Bandeira, que era presidente da CGD, veio para presidente do BPN. Portanto, se o problema do BPN se agravou de forma muito forte, depois da nacionalização, com a gestão da CGD, é porque alguma coisa aconteceu, nessa altura. É algo que está por explicar.

O BES foi o único banco que não recorreu à capitalização pública do Estado, mas afinal a história acabou mal, em 2014. Foi outra surpresa para todos?

Na banca, eu lembro-me desde sempre, de ter a noção de que o BES jogava aquilo que nós dizíamos entre nós, banqueiros, o jogo do gato e do rato com o supervisor. E o supervisor sabia perfeitamente que o BES fazia o jogo do gato e do rato. E como é que o BES fazia o jogo do gato e do rato com o supervisor? Era alterar o perímetro de consolidação. Isto significa que num ano estas empresas são incluídas no perímetro de consolidação. No outro ano, outras empresas são incluídas no perímetro de consolidação, e por aí fora. E portanto era sempre muito difícil fazer uma comparação pruri-anual dos resultados e dos balanços. E portanto, esse jogo foi jogado pelo BES e pelo GES durante anos e anos. E toda a gente sabia que esse jogo estava a ser jogado. Os auditores sabiam que estava a ser jogado, os reguladores sabiam que estava a ser jogado, mas mais uma vez deixaram rolar. E deixaram andar porquê? Porque até 2008, o resultado final era positivo. O problema surgiu em 2008, com a desvalorização dos ativos, o ‘net’ global de tudo aquilo passou a negativo, e passou a haver um problema. Mas o problema só chegou ao público, mais tarde, em 2012, quando a bola de neve se tornou de tal forma grave, que foi impossível controlar.

Que desfecho espera no caso BES? Ficaria espantado se não houvesse alguma condenação?

As pessoas estão muito preocupadas com as condenações e com as multas. Eu acho que elas vão acontecer a seu tempo. Mas isso não é o essencial da questão. Ricardo Salgado tem 76 ou 78 anos, ou quanto seja. O senhor está no seu horizonte de vida. Portanto, o que lhe vai acontecer, do ponto de vista pessoal, é um final de vida mais triste do que aquilo que ele gostaria de ter, seguramente, e a sua família. Mas esse não é um problema para o país. O problema para o país são as perdas monumentais, de património, financeiras, que os contribuintes, que os outros bancos, que os investidores, tiveram. Só do BES, o valor patrimonial de perda para o país, estamos a falar de um montante gigantesco, entre 15 e 20 mil milhões de euros.

E hoje, quais são os maiores desafios da banca? É como diz o primeiro-ministro: a banca está limpa e de saúde?

Há uma mudança qualitativa da situação do sistema financeiro. Neste momento não diria que haja, do ponto de vista de solvabilidade, alguma instituição em risco de cair. Agora, há alguns problemas sobrantes. Há um problema específico que é o aumento de capital do Montepio. Sabe-se que o Montepio banco, porque o Montepio são duas coisas diferentes, que é o banco e a Associação Mutualista. E o montante, vamos supor de 500 milhões de euros, algo assim. Agora, para que haja este aumento de capital, tem que ser feito a um valor que reflita o valor dos livros do Montepio. E seguramente é um valor bem inferior em relação ao valor que a Associação Mutualista tem registado, e isso cria um problema de balanço para a Associação Mutualista, que são 650 mil pequenos aforradores, que investem todos os meses, as suas poupanças, as suas reformas na Associação Mutualista. E portanto, é um problema muito complexo, que estes 650 mil investidores, famílias, possam perder uma parte do seu património. Neste momento está a ser feita esta gestão muito complexa, com a Associação Mutualista, com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa…

Faz sentido empurrar a Misericórdia de Lisboa para a capitalização de um banco, de que não precisa?

É verdadeiramente uma ação benemérita, a Santa Casa fazer esta operação. Mas a Santa Casa também pode ser beneficiada pelo Governo, de outras maneiras, através de transferências de património.

E a situação da Caixa Geral de Depósitos, é clara? 

O Estado teve que aportar capital. Neste momento a CGD está capitalizada. Eu tenho as maiores dúvidas de que a Caixa remunere o Estado por este capital que foi aportado, porque não vai ter a rentabilidade para o fazer nos próximos anos. E portanto, estamos em presença de uma perda encapotada dos contribuintes, em relação à Caixa. Depois há aqui um problema sistémico, que tem que ver com as imparidades de balanço, que o sistema tem, e que o BCE fala entre 20 e 40 mil milhões de euros de imparidades não reconhecidas nos balanços dos bancos. O que significaria uma coisa bastante triste. É dizer que os balanços dos bancos não refletem a realidade, e são falsos. Os auditores dizem que está bem, e não está. O Banco de Portugal diz que está bem, e não está.

João Rendeiro, trabalhar na banca, nunca mais?

Como projeto pessoal, foi uma água que passou debaixo da ponte. A água não passa duas vezes debaixo da ponte. Já dei a minha contribuição. Seja ela positiva ou negativa. Foi o que foi.

O que é, hoje, a sua vida?

A minha vida, hoje, é trabalhar. Gosto de trabalhar, e de manter uma vida saudável. É esse misto, manter uma vida saudável através exercício físico, trabalhar, trabalhar, manter o meu blogue, algo que me dá muito prazer, escrever e refletir sobre várias matérias. E portanto a minha vida é essa, uma vida simples, como sempre foi. Sempre fui uma pessoa simples.

 

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