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Associação “O Ninho”: Conceito de “trabalho sexual” serve para “branquear realidade de exploração e violência”

Dália Rodrigues, diretora técnica da Associação “O Ninho”, critica a utilização do conceito de “trabalho sexual” e sublinha que não se trata apenas de uma “questão de semântica”. Quanto à proposta da JS de legalização do lenocínio, discorda, alertando que “é abrir as portas e facilitar a vida a exploradores e traficantes”.
8 Agosto 2018, 13h44

Recentemente, organizações como o Movimento Democrático das Mulheres (MDM), a Associação “O Ninho” e a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres criticaram o Executivo da Câmara Municipal de Lisboa (CML) – nomeadamente o vereador Ricardo Robles, entretanto demissionário – por promover a criação de uma “Plataforma Local de intervenção na área do trabalho sexual”, com o objectivo de “consolidação de uma Plataforma Local de respostas na área do Trabalho Sexual na cidade de Lisboa”, e utilizar a expressão “trabalho sexual”. Porquê?

Efetivamente foi com bastante perplexidade que recebemos um convite para estar numa reunião para a criação de uma “Plataforma Local de intervenção na área do trabalho sexual”, com o objetivo de “consolidação de uma Plataforma Local de respostas na área do Trabalho Sexual na cidade de Lisboa”. Em primeiro lugar porque, no caso da Associação “O Ninho”, que trabalha há mais de 50 anos na promoção humana e social de jovens e mulheres em situação de prostituição e de tráfico para fins de exploração sexual, e que tem, neste longos anos, encontrado sempre na CML, um parceiro sensível e disponível para apoiar estas mulheres no processo de reinserção social. A prova disso é o protocolo que existe entre a CML e “O Ninho”, desde 2001, e que tem sido consecutivamente renovado pelos vários executivos camarários. Este protocolo permite integrar 12 mulheres como jardineiras, recebendo um ordenado mensal com os respetivos descontos, direito e acesso a todos os direitos inerentes a qualquer trabalhador camarário.

Gostaríamos de destacar também que a nossa Comunidade de Inserção com Alojamento funciona, desde final de 2013, num edifício em excelentes condições, que nos foi cedido pela CML, e onde residem mulheres com filhos em fase de transição para a sua integração social. Ou seja, perante isto, repito, foi com grande surpresa que por um lado soubemos da “existência” desta Plataforma Local e mais ainda da terminologia utilizada e nunca antes utilizada pela CML. Consideramos que as palavras têm peso e o uso desta terminologia não nos parece inocente. Não consideramos que seja somente uma questão de semântica. A opção desta terminologia encerra em si uma forma de encarar esta problemática.

Serve, na nossa opinião, sim, para branquear uma realidade de exploração e de violência. Para legitimar o proxenetismo e transformá-lo num negócio legítimo. Para aceitar que existam pessoas que compram outras, nem que seja por uns momentos e que podem fazer delas, do seu corpo, da sua intimidade, o que quiseram, porque pagaram.

Não podemos, como instituição que trabalha há longos anos com esta realidade, que conhece as histórias de vida dramáticas destas jovens e mulheres, aceitar que se considere a prostituição como um “trabalho” como outro qualquer. Temos o dever e uma responsabilidade acrescida porque conhecemos esta realidade, que resulta do acompanhamento direto e diário com estas jovens e mulheres. Chamemos as coisas pelos seus nomes: estamos a falar de exploração. Consideramos que a prostituição é uma forma de violência contra mulheres e crianças. Porque a grande maioria dos seres humanos vítimas de exploração sexual são, não nos iludemos, mulheres e crianças.

Consideramos que a prostituição é um grave problema social e como tal devemos, isso sim, trabalhar para combater as causas e consequências da prostituição e para encontrar alternativas de saída e apoio para estas mulheres. Que é uma realidade incompatível com a dignidade e os direitos fundamentais do ser humano. Que é indissociável das desigualdades sociais, nomeadamente entre homens e mulheres, ricos e pobres e tem um impacto muito negativo no papel e estatuto das mulheres na sociedade. Que é indissociável da pobreza, da exclusão social, do desemprego e do trabalho precário. Foi isto mesmo que dissemos numa reunião com o então vereador dos Direitos Sociais, Ricardo Robles. Que a CML, ao adotar esta terminologia, estava a ferir grosseiramente os princípios e tratados que Portugal ratificou e adotou como seus em termos de políticas públicas e sociais.

Que Portugal é um país que se pauta pela defesa e respeito pela dignidade humana, valores inequivocamente expressos na Constituição da República Portuguesa e na Declaração Universal dos Direitos Humanos que reconhece a prostituição como uma grave violação desses direitos e condena claramente a exploração de outrem. Ao adotar esta terminologia, consideramos que a CML, como principal município nacional, abre um precedente gravíssimo. Finalmente expressamos o nosso total e completo apoio e envolvimento a reais e concretos programas sociais de apoio a jovens e mulheres em situação de prostituição, no sentido da sua promoção humana e social.

 

 

Entende que esta iniciativa da “Plataforma Local” e sobretudo a utilização da expressão “trabalho sexual” estão imbuídas de uma intenção de descriminalizar o lenocínio (uma vez que a prostituição, por si só, não é crime) e de “normalizar” a prostituição como um negócio, um mercado, uma opção livremente tomada por seres humanos?

Sem dúvida. Como dissemos anteriormente, esta terminologia serve sobretudo para “normalizar” e banalizar esta forma de violência e deixar o caminho aberto a proxenetas e traficantes, tornando-os em empresários legítimos. Não é por acaso que os países onde a prostituição é considerada uma profissão, o tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual aumentou exponencialmente e o negócio de sexo floresce, saíndo completamente do controlo das autoridades. E que a este negócio agora legítimo estão associadas outras atividades criminosas.

Não é por acaso que o negócio de venda e troca de seres humanos se aproxima dos lucros do tráfico de armas e droga. Perguntamos: é isto que queremos para o nosso país? Devemos ouvir os testemunhos oficiais das autoridades desses países, mas sobretudo o testemunho das mulheres que foram prostituídas e/ou traficadas e não seguir pelo mesmo caminho.

 

 

Considera que a decisão de uma mulher se prostituir é livremente tomada, no sentido de o fazer por vontade própria, mesmo tendo outras alternativas de subsistência? A esmagadora maioria das mulheres que se prostituem não o fazem em último recurso, por sobrevivência, ou mesmo impelidas, obrigadas, traficadas, exploradas por proxenetas? A sociedade não deveria ajudar essas pessoas a não terem que se prostituir, protegendo-as dos traficantes e proxenetas, oferecendo-lhes protecção, concedendo-lhes alternativas de subsistência?

Pensamos que na sua pergunta estão contidas todas as respostas. Efetivamente, a prostituição espelha as desigualdades sociais e de género numa sociedade. São sobretudo os mais vulneráveis os primeiros a serem vítimas desta forma de exploração. E infelizmente os mais vulneráveis continuam a ser as crianças e as mulheres. E como podemos falar em opção, em escolha livre e consciente, de quem não tem opções. A prostituição não tem nada a ver com sexo ou com trabalho e sim com exploração sexual e económica.

 

 

Concorda com a proposta da Juventude Socialista que aponta no sentido da legalização ou descriminalização do lenocínio?

Por todos os motivos que explicámos anteriormente, não, de todo! Não precisamos de abrir as portas e facilitar a vida a exploradores e traficantes, mas sim de criar alternativas para as pessoas que se encontram em situação de prostituição. Perceber as causas que levam à prostituição, implementar políticas sociais mais justas e igualitárias, parece-nos, isso sim, muito mais essencial do que a criação de políticas avulsas que não vão ao cerne deste flagelo social, não o resolvem e, pelo contrário, agravam-no.

Preocupa-nos também que seja uma juventude partidária a defender esta medida. Se pretendemos uma sociedade mais justa e democrática, que mensagem estamos a passar para as gerações futuras? Que existem seres humanos que podem ser comprados, vendidos, reciclados? Tal como disse um psiquiatra que apoiou várias mulheres prostituídas, “não nos deve servir de consolo que as pessoas se autodestruam de uma forma higiénica e regulamentada”.

 

 

Na medida em que a prostituição em Portugal não é ilegal, na medida em que as prostitutas até podem declarar os rendimentos do seu trabalho na Autoridade Tributária, qual é a necessidade de alterar a lei? Para que seja montada uma indústria de proxenetismo?

Sim, a prostituição não é criminalmente penalizada em Portugal. O proxenetismo e o tráfico é que são. E na nossa opinião é assim que as coisas devem continuar a ser. É verdade que qualquer pessoa se pode inscrever nas Finanças como trabalhador independente e fazer os seus próprios descontos. Mas não é disso que estamos a falar. Mais uma vez, normalizar esse facto só demonstra um profundo desconhecimento da realidade que é a prostituição.

A regulamentação da prostituição perpetua a desigualdade de género e banaliza a violência que a prostituição encerra. Não negamos que isso poderá acontecer em algumas situações, mas a prostituição na sua essência representa, como dissemos anteriormente, um grave problema social. E é disso que devemos falar e não de uma pequena percentagem. Para além disso, a prostituição está quase sempre ligada a um sistema organizado, no qual a mulher é quase sempre o elo mais frágil desde círculo.

Na prostituição, os rendimentos auferidos são geridos numa base do aqui e agora. Até hoje, em mais de 50 anos de trabalho junto destas mulheres, não encontrámos nenhuma mulher prostituída que seja “rica”. A gestão do dia-a-dia é muitas vezes feita na base da sobrevivência e as sequelas deixadas por esta situação ao nível psicológico e emocional são também muitas vezes irreversíveis.

Finalmente, e até agora, nenhuma mulher nos disse que quer ficar registada nas Finanças como “trabalhadora sexual”. É algo que querem esquecer, esconder de todos. Como se vê, as palavras não alteram o estigma.

 

 

O “Modelo Nórdico”, instituído em países da Escandinávia, não criminaliza a oferta de prostituição, mas apenas a procura. Que perspetiva tem sobre esse modelo? Acha que seria positivo aplicá-lo em Portugal?

Na verdade, quando falamos em exploração sexual falamos de um negócio. Que existe porque existe procura. E que se rege pelas regras desse próprio mercado, adaptando-se. O “Modelo Nórdico” ataca, sem dúvida, um dos focos do problema: a procura. Mas também implicou uma profunda discussão na sociedade civil, uma mudança de mentalidades que tornou impensável, para qualquer jovem sueco, hoje em dia, pagar para ter relações sexuais.

Não temos a certeza se Portugal estaria neste momento preparado para esta mudança. Devíamos talvez começar com campanhas de sensibilização, a instituição da educação sexual nas escolas e a aprendizagem de uma sexualidade saudável, vivida com partilha e afeto e em igualdade.

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