Vivemos atualmente em tempo de incerteza. No entanto, há uma previsão que se pode adiantar sem grande risco de errar: O nosso destino individual será cada vez mais coletivo.
Com efeito, a pandemia covid-19 está a definir um horizonte repleto de restrições sociais, económicas, mas sobretudo individuais, que seria necessário retroceder 100 anos (1918-19), à Gripe Espanhola, que teve uma ação devastadora não só em Portugal, como no Mundo, com um registo assinalável de mortes entre 40 e 50 milhões pessoas. A Pneumónica, ou Gripe Espanhola, atingiu Portugal em 1918 e as medidas para extinção da pandemia passaram pelo encerramento de escolas, a proibição de feiras e romarias e, ainda mais longe, promovendo o “fim contactos pessoais como apertos de mão e os beijos”[1]. Não obstante isso, registaram-se no país[2] 117.764 casos mortais no espaço de apenas um ano. Em 1919, foram atribuídos ao Funchal, Região Autónoma da Madeira, 790 mortes, de acordo com a tabela de óbitos presumidos por Pneumónica para o período compreendido entre 1917 e 1919, definido por distrito[3]. De salientar que, neste último estudo, os dados de mortes em Portugal elevam-se a 135.257.
Estes dados históricos são tanto mais alarmantes, sobretudo quando comparados “com o número de vítimas mortais da Grande Guerra (8.000), dos 16 anos da guerra colonial (9.000) ou dos últimos 30 anos da epidemia VIH/Sida (10.500)”[4].
Voltando à atualidade, em 2020, começámos pelo isolamento profilático em resposta ao covid-19, para não causar pânico, mas rapidamente se constatou ser manifestamente insuficiente para travar a pandemia, passando a medidas mais drásticas, como fecho de fronteiras, encerramento de portos e aeroportos, entre outros; para, finalmente, ser declarado estado de emergência, e abrirmos novamente a porta a um estado policial. Tudo isto em 15 dias. Começaram por ser confirmados 2 casos a 2 de março e a 17-março, tínhamos 448 casos, dos quais 196 na Região Norte, 180 em Lisboa e Vale do Tejo, 51 no Centro, 14 no Algarve, 1 nos Açores e 6 Estrangeiros. Hoje, 07 de abril, temos 11.730 casos confirmados, 91.794 casos suspeitos e 311 óbitos (https://covid19.min-saude.pt/ponto-de-situacao-atual-em-portugal/). Os estudos apontam para que, através do comportamento normal diário, cada pessoa infete 2,5 pessoas em 5 dias e 406 em 30 dias. Reduzindo 50% aos contactos individuais, infetaremos apenas 1,25 pessoas em 5 dias e 15 em 30 dias e a 75%, apenas 0,625 pessoas em 5 dias e 2,5 em 30 dias. Ou seja, neste último caso, contagiaremos num mês aquilo que, sem limitações, infetaremos em 5 dias (Fonte: Signer Laboratory, Gary Warshaw).
Assim, recorrendo novamente à história, valerá a pena recordar Nicolau Maquiavel (1467-1529) – considerado um dos precursores da ciência política – e os conselhos que alegadamente dirigiu ao Príncipe, escrevendo: “Quando fizer o bem, faço-o aos poucos. Quanto for praticar o mal, é fazê-lo de uma vez só.”
De facto, de pouco adianta procrastinar as decisões mais radicais, dado que a evolução da situação dificilmente evitará a declaração de estado de guerra, perdendo-se, entretanto, o tempo. Curioso que sociedades europeias que não vivenciaram nenhum conflito armado há mais de 7 décadas e, nos últimos 20 anos, assistiram à queda do muro de Berlim que dividia duas conceções de sociedade, identificam agora como inimigo comum um “vírus”, covid-19. Sendo claro que para esta guerra, não serão chamados apenas os militares, mas o melhor da nossa ciência, da gestão, pública e privada, e da informação, além dos já mobilizados profissionais de saúde. Essa participação deverá ocorrer na transparência do espaço público, existindo já exemplos concretos dessa mobilização, nomeadamente a colaboração dos media (neste caso Observador), na discussão de qual a melhor forma de anteciparmos o nível da pandemia se através da curva exponencial (https://observador.pt/2020/03/14/19-303-infetados-no-fim-de-marco-sao-estas-as-contas-do-matematico-jorge-buescu/) ou da logística (https://observador.pt/opiniao/porque-nao-acredito-na-curva-exponencial/), aspeto relevante para planearmos as atividades e organizarmos os recursos, para um combate sem tréguas, mais eficaz – melhores resultados, com menos mortes -, mas também eficiente – recorrendo a um nível de recursos, que será sempre limitado, face às necessidades.
Na verdade, paralelamente ao que se passa nos hospitais, é preciso não perder de vista a economia, a dinâmica dos mercados, a nível nacional e mundial, as empresas, os consumidores, serviços públicos e, evidentemente, os desprotegidos do sistema. A epidemiologia e a economia caminharão lado a lado, de encontro à luz ao fim do túnel. Caso contrário, o travão imposto à economia, pode conduzir-nos a reviver uma grande depressão, coincidentemente, como aconteceu há 100 anos (1920).
É nesta linha que recomendamos a análise da obra “Surprise Attack, The Victim’s Perspective” de Ephraim Kam, publicado em 1988[5], e que em tradução livre seria “Ataque Surpresa, a Perspetiva da Vítima”. Apesar do texto de Kam centrar-se na razão da inteligência militar falhar na previsão de um ataque surpresa, julgamos que os seus princípios são úteis para enfrentarmos a situação provocada pelo covid-19, do ponto de vista epidemiológico, económico e social.
A complexidade dos dados e a sua avaliação. Kam parte da hipótese de que as forças armadas sofrem ataques de surpresa devido ao que o autor designa de falhas de informação, ou falhas de avaliação analítica do problema, motivadas por diversos erros. Mesmo reconhecendo que as forças armadas estão, constantemente, a receber informações, essa sobrecarga de dados faz com que o processo de avaliação seja significativamente complexo, dificultando o trabalho dos analistas militares.
Na prática, os analistas sentem dificuldades em distinguir as informações relevantes das irrelevantes, chegando a conclusões erradas. Kam refere que os analistas são sistematicamente confrontados com o dilema de optarem por avaliações militares elaboradas ou simples, sendo que ambas opções estão condenadas ao fracasso, se não forem precisas e apresentadas em tempo útil.
Desde logo, por mais paradoxal que pareça, a decisão de fecharmos as fronteiras, recuperando uma ideia de soberania nacional, implica, no entanto, abrir o país à cooperação internacional coordenada de múltiplos saberes, essencialmente da epidemiologia e especialistas em dados e na análise dos mesmos. O recurso a novas tecnologias como “big data” e inteligência artificial ainda não entraram em jogo a nível europeu e constituíram instrumento privilegiado de ação, especialmente na Coreia de Sul (50 Milhões de habitantes; 8.897 casos confirmados; 104 mortos) e Taiwan (24M; 153; 2), com resultados muito positivos, quando comparados com os registos europeus com uma dimensão próxima – por exemplo, Espanha (47M; 28.572; 1.720)[6].
Mas não exclusivamente. “Temos uma mensagem simples para todos os países: teste, teste, teste”, dizia o presidente da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, a 16 de março, numa entrevista em Genebra. Quanto mais precisa for a avaliação, maior é a probabilidade de sucesso nesta guerra ao covid-19. Por outras palavras, é muito difícil combater algo que não se conhece, ou se conhece mal. Quem garante que estamos perante o mesmo surto viral da Ásia? O diagnóstico precoce ajuda a identificar o alvo de tratamento e evitar medidas generalistas que acabam por colocar meio mundo de quarentena, impossibilitando que a atividade económica e social se desenvolva, mesmo que a um nível mínimo. Mais uma vez, impunha-se mais e melhor coordenação ao nível da União Europeia e não apenas regressar às fronteiras.
A economia beneficiaria, os pequenos negócios locais encontrariam novas soluções num contexto adverso, para a sua atividade e uma série alargada de serviços poderiam ser levados a cabo, dentro de níveis de segurança satisfatórios. De outra forma, tudo fechado conduz indubitavelmente a uma quebra de consumo, difícil de relançar a prazo, e a utilização deficitária dos recursos humanos, que vai certamente degenerar na perda de rendimento. No horizonte, paira o espectro de uma Grande Depressão que nos empurra, a todos, para um aparente beco sem saída: padecer do covid-19 ou penar pela economia.
[1] Observador, 27 de abril de 2018.
[2] Nunes, Baltazar; Silva, Susana; Rodrigues, Ana; Roquette, Rita; Batista, Inês; Rebelo-de-Andrade, Helena (2018). “The 1918-19 Influenza Pandemic in Portugal: A Regional Analysis of Mortality Impact”. American Journal of Epidemiology, 187 (12), pp. 2541-2549.
[3] Sobral, J., Lima, M. (2018). A epidemia da pneumónica em Portugal no seu tempo histórico, Ler História, 73, pp. 45-66.
[4] Abreu, L., Serrão, J., Revisitar a pneumónica de 1918-1919: introdução, Ler História, nº 73 (2018).[5] Kam, E. (1988). Surprise Attack, The Victim’s Perspective. Cambridge, MA: Harvard University Press.
[6] https://www.ft.com/coronavirus-latest, recolha a 23mar, 02:00.
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