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Atentado ou acidente? Quarenta anos depois de Camarate, mistério continua por resolver

Após várias investigações e dez comissões parlamentares de inquérito, continua por apurar o que aconteceu na noite de 4 de dezembro de 1980. A queda da aeronave em que seguia Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa despenhou-se vitimando os sete passageiros que seguiam no veículo. O caso gerou (e continua a gerar) várias dúvidas e suspeitas.
4 Dezembro 2020, 09h45

A queda da aeronave Cessna que vitimou, a 4 de dezembro de 1980, o antigo primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro e o ex-ministro da Defesa Adelino Amaro da Costa continua por esclarecer, quarenta anos depois de ter chocado o país. As várias investigações feitas ao caso trouxeram a público conclusões distintas e, quer a tese de acidente como a de atentado, foram várias vezes refutadas e outras tantas reforçadas. O que aconteceu realmente naquele fatídico dia continua por se descobrir.

O que era para ter sido apenas uma viagem para apoiar o encerramento da campanha do general António Soares Carneiro, candidato da Aliança Democrática (AD) à Presidência da República, no Porto, transformou-se num dos maiores mistérios de sempre da história do país. O Cessna em que seguiam o então primeiro-ministro acompanhado pela sua companheira Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa e a mulher Maria Manuel Pires, o chefe de gabinete de Sá Carneiro e dois pilotos despenhou-se pouco depois da descolagem do aeroporto de Lisboa.

A tragédia resultou na morte inesperada e prematura de todos os que seguiam na aeronave. Apesar de ter embatido em cinco habitações e três automóveis no bairro residencial das Fontaínhas, em Camarate, não houve mais mortos a registar da aparatosa queda do Cessna, que interrompeu os noticiários daquele dia.

As investigações começaram logo no próprio dia da tragédia e rapidamente se percebeu que havia peças do puzzle que não encaixavam e inúmeros testemunhos contraditórios (houve quem dissesse que o avião já estava em chamas quando embateu contra as habitações e quem alegasse que o Cessna já se tinha incendiado ainda antes de embater contra os cabos de alta tensão e ter caído). As autoridades concluíram inicialmente que o “acidente” tinha sido causado por falta de combustível e excluíram a tese de crime.

Atentado encomendado pela CIA?

As desconfianças que se mantiveram após a conclusão das investigações iniciais levaram à abertura de várias comissões parlamentares de inquérito (dez ao todo), com a primeira comissão de inquérito parlamentar, constituída em novembro de 1982, a recomendar o aprofundamento das investigações criminais, mas as investigações foram suspensas em 1983.

Mais tarde, em 1988, a quarta comissão de inquérito concluiu que “as entidades oficiais construíram uma hipótese de acidente sem fundamentação técnica plausível” e a tese de atentado ganhou força.

Seguiram-se novas comissões de inquérito que insistiram na tese de “sabotagem”, mas nunca ninguém chegou a ser incriminado. O caso prescreveu em setembro de 2006, de forma inconclusiva.

É então, nesse mesmo ano, que surge José Esteves, ex-agente de segurança. Confessa a autoria da queda do Cessna onde seguiam Sá Carneiro e Amaro da Costa e admite publicamente que colocou um engenho explosivo no avião. A intenção, disse inicialmente, era apenas dar um “aviso” ao candidato presidencial Soares Carneiro. Nas suas palavras, terá sido ele quem fabricou a bomba, mas era esperado que o engenho se incendiasse antes da descolagem.

Anos mais tarde, em 2012, surge uma carta de 18 páginas onde o alegado ex-agente da CIA Fernando Farinha Simões reclama ter sido também um dos organizadores do “atentado de Camarate”. A carta escrita na prisão de Vale dos Judeus, onde estava preso por outros crimes, vinha anexada com uma declaração onde autorizava José Esteves a divulgar a carta na internet. “Finalmente decidi falar por obrigação de consciência”, lia-se no documento, onde expunha vários nomes e pormenores sobre o caso Camarate.

Segundo Fernando Farinha Simões, terá sido a mando da CIA que planeou o “atentado” de Camarate. O alvo principal da bomba era o ministro Adelino Amaro da Costa por estar a “tentar acabar com o tráfico de armas, a investigar o fundo de desenvolvimento do Ultramar, e a tentar acabar com lobbies instalados”. Sá Carneiro estava também, segundo ele, na mira da CIA por ser “antiamericano” e por apoiar Amaro da Costa.

“Afastar essas duas pessoas pela via política era impossível, pois a AD tinha ganho as eleições. Restava portanto a via de um atentado”, lia-se na carta de Fernando Farinha Simões.

Contradições e uma morte suspeita

As declarações de José Esteves e Fernando Farinha Simões levaram à abertura de uma nova comissão de inquérito, em 2013. A décima e última comissão ouviu aos dois alegados autores do “atentado”, mas às inúmeras perguntas que continuaram sem resposta, vieram juntar-se várias contradições por parte dos dois confessos autores do crime.

José Esteves, que inicialmente tinha dito que o atentado tinha como objetivo dar um “aviso” a Soares Carneiro, referiu então que o alvo era Adelino Amaro da Costa que “estava a criar problemas no transporte de armas”. O ex-agente disse também que foi pago pelo “agente” da CIA Frank Sturgis, um dos assaltantes do edifício de Watergate que levou ao fim da presidência de Richard Nixon, para criar uma bomba e que o engenho explosivo que criou não teria causado o acidente.

Revelou ainda que no dia 1 de dezembro se tinha reunido com Fernando Farinha Simões, Sinan Lee Rodrigues (que terá alegadamente colocado a bomba no avião) e Carlos Miranda (especialista em explosivos, que tinha sido comandante da Frente Nacional de Libertação de Angola). Ouvidos, em comissão de inquérito, nem todos quiseram colaborar e foram encontradas várias incongruências.

Certo é que o ex-ministro da Defesa tinha pedido, dois dias antes do atentado, “esclarecimentos adicionais” ao gabinete do chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMFGA) “sobre a expedição de armas para o Irão”, que estaria a ser exportadas sem o conhecimento do Governo. Também Sá Carneiro tinha pedido, na mesma altura, “esclarecimentos adicionais relativamente à exportação de armas para países como a Guatemala, Argentina e Indonésia”. Esse desconforto no Governo com o negócio das armas foi apontado com a razão para o atentado.

A décima comissão ao caso concluiu que o caso de Camarate teve mão criminosa, desmentindo a primeira versão oficial de acidente. “A queda do avião em Camarate, na noite de 4 de dezembro, deveu-se a um atentado”, lê-se no relatório final da comissão de inquérito.

Concluiu-se também que uma das testemunhas centrais no caso foi morta de forma suspeita. “José Moreira [dono do Cessna utilizado na campanha presidencial] e Elisabete Silva foram assassinados no início de janeiro de 1983”, depois de terem levado a cabo uma investigação própria ao caso. Foram encontrados mortos em casa por inalação de monóxido de carbono, dias antes de testemunharem no Parlamento.

Venda de armas ao Irão gera novas suspeitas 

Em agosto deste ano, Alexandre Patrício Gouveia, irmão do chefe de gabinete de Sá Carneiro (uma das vítimas do caso Camarate), escreveu um livro, onde defende que o “atentado” de Camarate terá sido da autoria de cinco elementos ligados ao Partido Republicano dos Estados Unidos e por agentes da CIA. No livro “Os Mandantes do Atentado de Camarate – O Envolvimento Americano”, revela que a venda clandestina de armas ao Irão foi o motivo que levou ao “atentado”.

Alexandre Patrício Gouveia investigou o caso durante quatro anos e relata que a venda ilegal de armas ao Irão passava por Portugal, apesar de o país, tal como vários outros países europeus, estar de relações cortadas com o regime iraniano. No livro, fala ainda sobre o fim à vista do projeto político da AD, que “sem as mortes do Francisco e do Adelino podia naturalmente ter governado o país durantes duas ou três legislaturas seguidas”.

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