O Serviço Nacional de Saúde precisa de uma reforma. E a saúde em Portugal deve ter uma programação financeira plurianual. Estas são as duas sugestões mais “impactantes” feitas esta manhã, em Lisboa, por Augusto Mateus, durante a apresentação do estudo sobre “Organização e Financiamento do Sistema de Saúde em Portugal”. A apresentação propôs a “reforma do SNS” com base em 44 recomendações, entre as quais figura uma programação financeira plurianual de seis anos.
“É preciso trazer a saúde para o território das Forças Armadas”, comentou com uma nota de humor o consultor estratégico da EY Portugal, numa analogia com programação militar. Augusto Mateus sugeriu assim a consagração à Saúde de “uma programação financeira plurianual, desejavelmente de seis anos, para o sistema assegurar a continuidade” e, sobretudo, para “melhorar” o modelo de financiamento. Também sugeriu a “criação de um instituto gestor do SNS”, que “aumente a eficiência” do sistema, defendendo recomendações com o objetivo de Portugal conseguir concretizar uma “reforma do sistema de saúde”.
O planeamento financeiro a seis anos (que é a 34ª recomendação) e a criação de um instituto autónomo (proposto na sétima recomendação) para fazer a gestão do sistema de saúde foram consideradas “propostas louváveis” durante o debate que se seguiu à apresentação de Augusto Mateus, sendo reconhecidas como medidas relevantes por Fernando Araújo, presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário São João, por Jorge Moreira da Silva, responsável da Direção de Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE e por Óscar Gaspar, presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, numa mesa redonda moderada pelo jornalista Pedro Santos Guerreiro. Entre as 44 recomendações, também foi sugerida a “possibilidade de consignar algumas receitas atuais (por exemplo, o imposto sobre tabaco) ao orçamento da saúde, à semelhança do que ocorre noutros países”.
Iniciativa do HCP – Health Cluster Portugal
A apresentação do estudo “Organização e Financiamento do Sistema de Saúde em Portugal”, foi promovida pelo Health Cluster Portugal (HCP) esta quarta-feira, 30 de setembro, no teatro Thalia, com abertura a cargo de Hermano Rodrigues, “Principal” da EY-Parthenon. Seguiu-se a análise da responsabilidade do ISEG e da EY-Parthenon, apresentada por Augusto Mateus, que fez a descrição objetiva do sistema e das suas fragilidades, identificando os problemas e as boas práticas do sector e sugerindo um conjunto de recomendações. O evento foi encerrado pelo presidente do HCP, Salvador de Mello, e pelo secretário de Estado da Saúde, Diogo Serras Lopes.
Segundo Augusto Mateus, “os desafios que os sistemas de saúde mundiais enfrentam, devido a profundas alterações demográficas, à maior prevalência de doenças crónicas e tratáveis ao longo da vida, ao maior consumo de cuidados de saúde ao longo da vida, à maior exigência dos utentes, aos crescentes gastos em I&D e inovação, entre outros, colocam fortes pressões sobre a sua lógica organizacional e financiamento, expondo as suas atuais fragilidades”.
“O sistema de saúde em Portugal tem vindo a dar um importante contributo para a melhoria do estado de saúde dos portugueses ao longo das últimas décadas”, considera o consultor estratégico, reconhecendo que “subsistem várias fragilidades no sistema que têm impacto no nível efetivo de acesso das populações a cuidados de saúde, inclusivamente no que se refere a serviços do Serviço Nacional de Saúde (SNS)”.
SNS tem elevada proporção de despesas pagas por quem recorre aos hospitais
“Ao nível financeiro, o SNS é particularmente vulnerável às dinâmicas inerentes aos processos de alocação da despesa orçamental, tendo sido um forte visado pelos esforços de contenção de despesa estatal em curso ao longo dos últimos anos, com impacto na sua estabilidade e capacidade de atuação, apesar dos princípios subjacentes ao SNS e à política de saúde em Portugal, subsistem disparidades no acesso e na equidade do sistema, particularmente a nível geográfico (entre os grandes centros urbanos e as restantes zonas) e a nível de estatuto socioeconómico, refletido pela elevada proporção de despesas ‘out of pocket’ (o valor que é pago pelo bolso das pessoas que recorrem aos serviços médicos e hospitalares), maioritariamente para aceder a serviços não cobertos pelo SNS ou a serviços cobertos pelo mesmo, mas de forma insuficiente”, refere Augusto Mateus.
“A nível da eficiência operacional, a reduzida implementação de incentivos no sistema, o baixo nível de descentralização efetiva e a reduzida autonomia e capacidade de decisão e de atuação dos gestores e restantes players no terreno reduzem a flexibilidade do sistema, resultam no não aproveitamento de potenciais ganhos e acentuam as existentes disparidades geográficas”, adianta o consultor.
Óscar Gaspar: “Um português gasta muito mais do seu bolso com a saúde do que um alemão”
A este respeito, Óscar Gaspar, responsável da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, referiu que “um português gasta muito mais do seu bolso com a saúde do que um alemão”. “Um português paga do seu bolso quase 30% das despesas com saúde, por isso, há qualquer coisa que não funciona”, diz. Neste enquadramento, “o Orçamento da Saúde vai para despesas correntes”, refere, adiantando que acaba por não ser feita uma “prevenção com relevância na saúde pública, pois em Portugal gastamos menos de 1% em prevenção”.
Sobre o “orçamento plurianual”, Óscar Gaspar refere que “é muito importante”, pois permitiria afetar mais verbas à prevenção. “Quanto mais tarde os portugueses recorrerem aos cuidados de saúde e quanto mais tarde houver diagnósticos, pior será para a saúde de cada pessoa, além de aumentarem os custos do sistema”. Além disso, um orçamento plurianual “permitiria corrigir grandes disfuncionalidades, como as que são alertadas pelo Conselho de Finanças públicas, quando faz alusão aos pressupostos que utilizam preços que não são reais, que utilizam preços são administrativos, quando na prática todos sabemos que esses valores não são corretos. No final do ano, a despesa é sempre superior à receita anual dos hospitais, na ordem dos 1,5 mil milhões de euros, o que leva os presidentes dos hospitais a terem de gastar mais tempo a negociar com credores. Toda esta realidade não dá autonomia às administrações hospitalares”, comenta.
Fernando Araújo, responsável do Centro Hospitalar Universitário São João, por seu turno, considera que deve ser promovida a autonomia dos agentes dos serviços hospitalares, de forma a que todo o sistema de saúde se torne mais autónomo, o que retiraria peso político à gestão do SNS. “Não faz sentido que o ministro da Saúde apareça a responder por causa de uma janela partida”, comenta, considerando que a Saúde teria a ganhar se tivesse autonomia face às Finanças.
Moreira da Silva: “É preciso retirar o ministro das Finanças da gestão do dia-a-dia”
Jorge Moreira da Silva, diretor da Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE considerou igualmente que será importante para a Saúde “retirar o ministro das Finanças da gestão do dia-a-dia”. Também defende “uma maior inteligência orçamental”, que identifique “externalidades positivas”, e que “compare o investimento com o dividendo social”, com “mais previsibilidade e estabilidade”, com “rigor orçamental e eficiência da operação”, enquadrados numa “nova lógica orçamental que vá além do ciclo orçamental”. Reconhece igualmente que “o financiamento deve ser feito pelos ganhos que são produzidos e não pela mera contabilização dos custos administrativos”. Quando à criação do instituto gestor do SNS, Moreira da Silva considera que “é preciso criar um mecanismo de arbitragem que não tenha conflitos de interesse” que que a saúde deve seguir a “lógica da liberdade de escolha, em que o Estado é que está ao serviço do cidadão e não seja o cidadão a estar ao serviço do Estado, isto é, que tenha o cidadão no centro do sistema”.
A encerrar o evento, Salvador de Mello, presidente da direção do Health Cluster de Portugal sublinhou a ”missão clara de tornar Portugal num player competitivo no sector da Saúde”, manifestando “a preocupação com que o cluster da saúde enfrenta o futuro em Portugal”. “É fundamental melhorar o acesso aos cuidados de saúde e reduzir sobreposições”, tal como é fundamental “separar a gestão e o orçamento” e dar “maior agilização do sistema”. Neste sector, diz, “há lugar para o contributo de todos e ninguém deve ser dispensado deste esforço nacional. É preciso agir e não temer as mudanças, para ultrapassarmos os problemas crónicos com que nos debatemos. Se não aproveitarmos a bazuca poderemos perder uma oportunidade única”.
Diogo Serras Lopes: “SNS tem dado resposta a uma crise inédita”
Por seu turno, o secretário de Estado da Saúde, Diogo Serras Lopes encerrou a apresentação – um dos mais recentes elementos do Governo, que entrou na última remodelação, licenciado em economia pela Universidade Nova, começou a sua carreira profissional como jornalista na revista “Economia Pura” e trabalhou até 2014 na área de gestão de ativos em instituições como o MC Fundos, o Santander Asset Management e o Banco Best –, elogiou a apresentação de Augusto Mateus, considerando que uma nova reflexão e debate sobre sector da Saúde, o seu sistema de organização e financiamento, “nunca é demais”. Referiu ainda que o SNS – que já vai com 41 anos – “é uma das principais conquistas da nossa democracia e tem dado resposta a uma crise inédita”, referindo que “não há geração viva que tenha passado por uma crise igual a esta, por isso, Portugal tem necessidade de um SNS robusto – isso é mais uma das lições da pandemia”.
“Os sectores público, privado e social integram o sistema de saúde português, em cooperação”, recordou Serras Lopes, referindo que “ainda ontem foram contratados mais de 1400 milhões de euros pelo SNS ao sector privado e ao sector social”. “Temos de aprofundar a cooperação definida na Lei de Bases da Saúde”, adiantou, considerando que “foi dada maior robustez ao SNS de 2020, face ao SNS de anos anteriores”. O secretário de Estado referiu que “o reforço orçamental feito em 2020 é histórico, porque foi o maior reforço de sempre. Os números continuam a demonstrá-lo. Isso coloca uma responsabilidade enorme nos responsáveis políticos e do SNS. Sabemos que cada euro gasto acrescenta mais valor aos cuidados de saúde que são prestados. E este estudo acrescenta pontos de valor à discussão do SNS”, concluiu.
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