John Kerr, Barão Kerr de Kinlochard (Grantown-on-Spey, Reino Unido, 77 anos) nunca pensou, ao redigir o Artigo 50 do Tratado de Lisboa que seria o seu país o primeiro a invocá-lo. Triste pelo imenso “erro” que ocorrerá esta sexta-feira, 31 de janeiro, diz, em entrevista ao jornal ‘El Pais’, estar plenamente convicto que “os meus filhos hão-de regressar às instituições comunitárias porque esse é um desígnio a que os britânicos não poderão fugir por muito tempo.
Do outro lado da barricada está Nigel Ferage – fundador do UKIP e posteriormente do Partido do Brexit – que deu esta semana uma conferência de imprensa em que parecia que se preparava para regressar à ilha onde nasceu e nunca mais de lá sair.
No meio destas duas posturas está a quase totalidade da União Europeia: nem derrotada pela saída, nem eufórica com a renúncia – mas profundamente preocupada com as consequências de algo que quando o Tratado de Lisboa foi assinado (em dezembro de 2007) nada fazia prever que viesse a acontecer.
Apesar dos extravagantes estudos sobre os impactos da saída do Reino Unido da União Europeia – que devem ter custado uma ‘pipa de massa’ a quem os encomendou – não é possível a nenhum dos 28 países envolvidos ter uma ideia aproximada do que vai ser a Europa pós-Brexit.
Desde logo porque as negociações entre os dois blocos para enformar os entendimentos comuns não só ainda nem sequer começaram, como têm a ver com outras variantes que ainda não são conhecidas – onde avulta um possível acordo comercial de grande alcance entre o Reino Unido e os Estados Unidos.
O ano que acabará a 31 de dezembro, dia em que o período de transição deverá acabar – coisa que a União acha impossível – será crucial e as negociações vão ser duras e duradouras. Do lado de Bruxelas, o suspeito do costume: o francês Michel Barnier, que a Comissão Juncker encarregou de tornar o Brexit o mais difícil possível para o Reino Unido. Cumprida a função com assinalável mérito, fica para já por saber-se quais são as novas ordens – mas tudo indica que desta vez Barnier tem um papel bem mais conciliatório: é do interesse de albas as partes que os entendimentos surjam, sejam claros e, no terreno, possam ser eficazes.
Seja como for, há dossiês difíceis. Eis alguns deles. Até o final de junho, a União precisa de decidir unilateralmente a equivalência em 26 áreas do setor de serviços financeiros, para impedir que haja uma espécie de ‘choque bancário’ que poderia colocar do avesso o sistema europeu (e o britânico) e atirar os mercados para as zonas de pânico. É um passo no escuro – ou, pelo menos, numa área desconhecida: nenhum país de fora da União usufrui de tanta equivalência com o sistema financeiro interno.
De maior relevância política, apesar de seu significado económico muito menor, é a questão do acesso às águas de pesca do Reino Unido. A declaração política obriga ambas as partes a empregarem os seus “melhores esforços” para chegarem a um acordo e os Estados tradicionalmente ‘pesqueiros’, onde Portugal se inclui, insistem nos seus direitos históricos de acesso aos bancos de pesca que até agora eram ‘de todos’. É claramente uma zona de conflito que os negociadores terão de sabetr rodear – até porque os pescadores britânicos querem alterações radicais em relação à política comum de pescas (quase 60% dos peixes em águas britânicas são capturados por barcos da União).
No comércio de mercadorias, von der Leyen deixou claro que o atual modelo de negócios para as indústrias automobilística e farmacêutica teriam de mudar. Uma panóplia de verificações e documentação (burocracia) passará a ser necessária quando o Reino Unido estiver fora do Mercado Único e da União Aduaneira, interrompendo o fluxo sem atrito patrocinado pelos acordos atuais. Mas von der Leyen repetiu a sua intenção de concordar com um acordo de ‘tarifa zero, cotas zero’. O preço disso é um acordo em condições equitativas para as empresas britânicas e europeias, garantindo que o Reino Unido não prejudique o bloco nos padrões ambientais, de leis sociais e do trabalho e continue a aplicar as regras eurpopeias em relação ao auxílio estatal.
Johnson disse que não alinharia o Reino Unido aos padrões da União e sabe que os seus ‘inimigos’ políticos não lhe perdoarão que depois do Brexit fique tudo na mesma. E de facto, a situação ‘tarifa zero, cotas zero’ pode ser encarado como demasiado parecido com o Mercado Único e a União Aduaneira.
Finalmente, o pior de todos os dossiês, aquele que ninguém quer debater – fundamentalmente porque ninguém sabe o que fazer-lhe: o ‘backstop’. Mas sobre este assunto, nenhuma das partes disse o que quer que fosse – entre outras razões, dizem os críticos, porque não há nada a dizer.
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