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Carles Puigdemont: O homem por detrás da independência da Catalunha

Ativista integrado nas hostes do nacionalismo catalão, o ainda presidente da Generalitat deu pela primeira vez nas vistas quando defendeu a organização armada Terra Lliuvre. Hoje, é uma das figuras mais detestadas pelo governo da monarquia, que está prestes a deixar de ter paciência para ele.
21 Outubro 2017, 11h00

Carles Puigdemont, catalão nascido em Amer, província de Girona, a 29 de dezembro de 1962, transformou-se em poucas semanas numa espécie de inimigo público número um de Espanha, não tanto por ser o presidente da Generalitat catalã – é apenas o quinto a ocupar esse lugar desde que a autonomia ganhou os contornos atuais a partir das alterações legislativas introduzidas em 1980 – mas por usar esse lugar para fazer renascer o fantasma muito antigo da independência daquela autonomia, historicamente ‘desordeira’, desalinhada e inconformista.

Do que os espanhóis não podem queixar-se é de terem sido apanhados desprevenidos pelo despertar da tentação independentista patrocinado por Carles Puigdemont, ex-jornalista casado com uma jornalista e ex-atriz – a romena Marcela Topor, quinze anos mais nova, com quem tem duas filhas. De facto, desde esse ano de 1980 – que parecia ser o culminar democrático das piores heranças do franquismo – a autonomia catalã foi sendo sucessivamente quartada, encolhida e mirrada. Pelo menos do ponto de vista da própria Catalunha.

A pontos de os defensores da independência da Catalunha, mas também os meros defensores da autonomia, a tomarem como irreconhecível depois das mais recentes alterações ao texto da lei – datadas de 2010 e introduzidas pelo congresso (liderado pelo Partido Popular) e pelo Tribunal Constitucional, por diversas vezes acusado de ter uma leitura muito estreita do texto que selou a passagem da ditadura para a democracia.

Foi este esvaziamento da substância da autonomia que levou Carles Puigdemont a deixar de lado a moderação, se é que alguma vez chegou a tê-la, e a insistir na revolução – ou numa espécie de revolução que, tudo indica, abortou finalmente na passada terça-feira, quando o ainda presidente da Generalitat decidiu dar um passo ao lado no caminho para a independência, que era em frente.

Jornalista prematuro

Ainda o jovem Carles estudava nas cadeiras das escolas de Girona quando foi inoculado pelo vírus do jornalismo: aos 16 anos, já escrevia crónicas e notícias para o jornal local ‘Los Sitios’, e o gosto pela escrita tornou-se da ordem avassalador, que acabou por impor-se a outras universidades. Carles desistiu do curso superior de filologia catalã e, em 1981, com 19 anos, começou a trabalhar no diário ‘El Punt’ – onde chegou a redator-chefe – e na revista ‘Presencia’. De lado ficava a tradição familiar: o pai e o avô eram padeiros e proprietários de uma padaria na cidade onde nasceu, mas a tinta ganhou à farinha. Ficavam também de lado os primeiros gostos: a astronomia, a magia (parece que mesmo a magia negra) e a viola-baixo, que chegou a tocar num grupo musical.

Paralelamente, Carles foi-se interessando pela história da Catalunha, pela sua posição no todo espanhol e também por aquilo que representava a Catalunha no mundo. Desse interesse surgiu, em 1994, um livro intitulado ‘Cata quê? A Catalunha vista pela imprensa internacional’. Mas tudo isso já foi depois da sua radicalização, sucedida alguns anos antes e que culminou em 1992.

Foi o ano mais intenso de Barcelona: os jogos olímpicos atiraram a cidade para um mês de festa sem interrupção, a cidade olímpica estava ‘infestada’ de estrelas do desporto e a Catalunha parecia ser o centro do mundo. Mas também tinha zonas de escuridão: a organização armada Terra Lliuvre, formada por independentistas catalães, estaria a preparar um atentado para os jogos olímpicos quando foi dizimada pela prisão de 45 operacionais, poucas semanas antes do início das competições. A ordem viera de um homem que se tornaria mundialmente famoso: o juiz Baltazar Garzón. Puigdemont foi um dos que publicamente defendeu a organização – dando mostras de que não tinha perdido as lições de independentismo que havia tomado a partir de 1980, quando aderiu ao ativismo político e que o fizeram militar na Juventude Nacionalista da Catalunha.

Foi esse ativismo que o levou a deixar o jornalismo em 2006 e a dedicar-se apenas à política, no quadro da Convergência e União (CiU), uma federação de partidos políticos nacionalistas de direita moderada, integrada pela Convergência Democrática da Catalunha (liberal e centrista, de que faz parte) e pela União Democrática da Catalunha (democrata-cristã). Foi como candidato da CiU que arrebatou a câmara de Girona ao Partido Socialista da Catalunha – tendo sido alcaide da cidade entre junho de 2011 e janeiro de 2016, altura em que acumulava o cargo de deputado no parlamento da Catalunha e de presidente da Associação de Municípios pela Independência.
Era claramente um homem em destaque na região e não foi por isso nenhuma surpresa quando fez parte da lista de elegíveis às eleições parlamentares de setembro de 2015 na lista Juntos pelo Sim – talvez a mais bizarra das coligações alguma vez produzidas na Europa: democratas-cristãos, liberais da direita moderada, esquerda republicana, socialistas e anti-capitalistas, numa amálgama improvável que se encontra aparentemente em dissensão.

O herdeiro

Homem de poucos amigos, os que tem são bons: em janeiro de 2016, Artur Mas, presidente da Generalitat, propôs o seu nome para o substituir no cargo. Um ano e meio depois, tornava-se um dos nomes mais conhecidos da Europa, possivelmente não pelos melhores motivos.

Agora, está prestes a tornar-se num duplo perseguido: depois da declaração em que anunciava a independência da Catalunha e dois ou três segundos depois a suspendia, Carles Puigdemont é um alvo a abater – crê-se que no bom sentido – pelo poder todo-poderoso de Madrid; e pelos elementos mais radicais da coligação que lhe abriu as portas da Generalitat e que concedeu a graça de tentar o que Artur Mas não conseguiu: a independência.

Tudo isto tem um fio condutor que não deixa de ser irónico: Puigdemont é perseguido por alguém, Mariano Rajoy, que, do ponto de vista político e ideológico, lhe é próximo (fora a parte do nacionalismo catalão), depois de ter sido ajudado a cumprir aquilo que estava convencido que era o seu desígnio último, o seu destino, por uma esquerda radical com a qual, em termos políticos e ideológicos (fora a parte do nacionalismo catalão), não tem nada a ver.

Mais. Puigdemont conseguiu algo que até agora ainda ninguém tinha conseguido: um acordo entre o PP de Mariano Rajoy e o PSOE de Pedro Sánchez, por uma vez unidos na perseguição ao independentismo catalão e ao homem que o ressuscitou lá do sítio onde a guerra civil e o franquismo o tinham conseguido enterrar.
Vários analistas consideram que Carles Puigdemont chegou a fim da sua carreira política. É possível. Mas a tenacidade com que enfrentou o poder emanado de Madrid permite concluir que não será fácil afastá-lo da deriva independentista.

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