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“Ceci n’est pas”… Democracia: é um simulacro

A imagem-entretenimento, criada pelo marketing político, tornou-se no melhor instrumento da retórica política, de toda a prática discursiva e da dominação do cidadão eleitor. Entreter para estupidificar. Estupidificar para melhor controlar.
12 Agosto 2020, 07h15

A infantilização da crítica e da participação cívica no espaço público, despolitizando-o, a sedução autoelogiosa da forma, em detrimento do conteúdo, tem contribuído para acentuar o desinteresse pela participação pública na vida política, agravando os fenómenos de abstenção. A tomada de decisão política tornou-se num exercício de sedução do eleitor, mediado por especialistas nas ferramentas do marketing político. A imagem passou a desempenhar, desde há várias décadas, um papel preponderante na mediação do espaço entre governantes e governados, contribuindo para a legitimação ou deslegitimação de líderes. A função simbólica da liderança, foi substituída por uma imagem que corrobora um discurso “cool” – tantas vezes vazio de conteúdo e de ações concretas.
Segundo Lypovestky (2019), quanto mais responsável for um líder político, por não deter uma visão ambiciosa para o futuro, do estado ou região que governa, mais necessidade tem de comunicar e exercer influência na esfera pública e mediática, popularizando-se. Porque afinal, já não importa não ter estratégia para um futuro, desde que haja uma imagem e uma prática discursiva, que legitime uma qualquer liderança. “As políticas da imagem triunfam quando a política já não faz sonhar”, refere o mesmo autor.
A imagem-entretenimento, pelo seu caráter acrítico, desempenha a função de melhor instrumento propagandístico, que procura garantir, que não há tempo nem coragem, dos cidadãos exercerem um questionamento da inevitabilidade histórica da manutenção de um desenvolvimento assente na exploração daqueles que foram sempre desprivilegiados. Parafraseando Debord (2003) “a época burguesa pretende fundar cientificamente a história” e o “projeto de posse da história” é simultâneo e condição necessária para a realização do projeto de superar a economia”.
Encontraram-se os pretextos – as máscaras cairão um dia – para colocar cidadãos contra cidadãos, para discipliná-los e domesticá-los, para melhor controlá-los. Hitler soube fazê-lo, sob pretexto de uma “higienização social” e tão depressa nos esquecemos disso! Estaremos dispostos a que, algumas alegadas lideranças, o repitam?
Os totalitarismos souberam habilmente manipular as massas, determinando ideologicamente o espaço público e entronizando a imagem-simbólica das suas lideranças. As democracias liberais ao fazê-lo, através do marketing comunicacional, perigosamente poderão estar a levar-nos pelo entretenimento acrítico, à despolitização do espaço público e à assunção de novas autocracias, revestidas de um autoritarismo “light”.
As versões “light” e “low profile” da imagem política e da prática discursiva, nas novas ditaduras do entretenimento, disfarçadas de democracia, têm como objetivo perpetuar as lideranças em cadência e assegurar a manutenção da hegemonia do poder. Ironicamente, é alguma comunicação social, que outrora fora censurada por desempenhar o papel “social” crítico, vanguarda de oposição ao Antigo Regime, que é hoje aquela que melhor contribui para a afirmação de uma “ditadura do entretenimento” e para a criação de novos palcos mediáticos para os novos totalitarismos. Uma comunicação social cada vez mais determinada pelos grandes grupos económicos e seduzida pelos detentores do poder político.
As novas ditaduras da imagem questionam e põem em causa o estado de direito democrático e a constituição, porque são legitimadas pelo populismo discursivo mediático, das ruas, dos comentários televisivos e das redes sociais. A direita política, ironicamente, deixou cair a máscara, unida, demonstrou o quão racista e radical se tornou e que, perigosamente, a tudo está disposta.
Nas democracias ocidentais, os “Centros” ideológicos e sociológicos – tipicamente moderados e dispostos ao compromisso e à viabilização de políticas estruturais –  foram progressivamente desaparecendo, polarizando o discurso político nos extremos, cada vez mais radicalizados. A ideologia deixou de ser o argumento político, a imagem-entretenimento substituiu-a e tem maior eficiência.
De “glamour” e “enfants terribles” está a esfera política repleta. Repleta de imagens-entretenimento, que distraem a progressiva perda de direitos nas democracias. Mas, parafraseado outrem de má memória: “em política, o que parece é” e se parece ditadura, é que é de facto. A imagem do ditador, revestido de uma “imagem-entretenimento” académica, civil, austera, moral, tinha como objetivo justificar e sublimar a autoridade, de conceber um país “orgulhosamente só”. Esta imagem persiste até aos nossos dias, envolta num saudosismo, havendo uma direita – mal, resolvida com o passado –  que procura reativar esta imagem.
A imagem-entretenimento, criada pelo marketing político, tornou-se no melhor instrumento da retórica política, de toda a prática discursiva e da dominação do cidadão eleitor. Entreter para estupidificar. Estupidificar para melhor controlar.
René Magritte, Marcel Duchamp e Piero Manzoni, tiveram razão: uma imagem, não é apenas uma representação do real, é um simulacro.
 
Referências
 
Debord, G. (2003). A sociedade do espetáculo. Projeto Periferia. Obtido de http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf
Lipovetsky, G. (2019). Agradar e tocar. Ensaio sobre a sociedade da sedução. Lisboa: Edições 70.
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