Em 2014, uma notícia nos jornais atribuía à desistência da Petróleos da Venezuela de injetar 700 milhões num hipotético aumento de capital da Rioforte de 1.000 milhões, que iria “salvar” a holding do Grupo Espírito Santo (GES) do incumprimento, a causa da precipitação da insolvência da holding que aglutinava a atividade não financeira do grupo.
O que diziam os jornais à época? A 7 de maio de 2014 a Comissão Executiva do BES toma conhecimento da atribuição à ESAF de um mandato para a gestão de ativos da PDVSA – Petróleos da Venezuela de 3,5 mil milhões de euros, onde expressamente constava a intenção de investimento de até 700 milhões de euros num aumento de capital na Rioforte. Nessa reunião, foi comunicado à Comissão Executiva do BES de que havia a expectativa de que o aumento de capital pudesse ocorrer até ao final de Junho.
Mas, em meados de julho, a PDVSA comunica que, face à degradação da situação do GES, não existiam condições para a concretização da referida operação de aumento de capital na Rioforte.
Tudo isto, sabe-se agora pelo despacho de acusação dos procuradores do Ministério Público, foi uma alegada encenação de alto calibre elaborada por Ricardo Salgado com a cumplicidade de João Alexandre Silva, antigo responsável pelo BES/Madeira, que conseguiram forjar de forma quase perfeita um investimento da empresa estatal dos petróleos da Venezuela, PDVSA, no Banco Espírito Santo em plena altura de crise do GES.
O despacho de acusação do processo “Universo BES” relata que Ricardo Salgado em 2014 inventou um concurso público para a gestão de um Fundo de Investimento Internacional da PDVSA, que teria sido ganho pela ESAF (Espírito Santo Ativos Financeiros), com adjudicação em 5 de maio de 2014, com um volume de activos sob gestão de 3,5 mil milhões de euros e forjou contratos, assinaturas e a contabilidade de várias sociedades do GES.
A história da recambolesca criação de um contrato que nunca existiu, com o único objetivo de deitar a mão aos depósitos das entidades venezuelanas no BES para financiar as empresas do GES e tentar evitar que o grupo ruisse tem contornos de um filme de espionagem de Hollywood.
A acusação elaborada por um grupo de procuradores liderado por José Ranito descobriu que terá sido Ricardo Salgado com a cumplicidade de João Alexandre Silva a quem coube a responsabilidade de, falsamente, e conforme instruído pelo banqueiro, apresentar como sendo uma exigência da PDVSA para a adjudicação de um contrato, a autorização do BES à descativação dos saldos bancários que garantiam os empréstimos concedidos pelo banco às empresas venezuelanas. Esta era a pedra de toque de toda esta encenação, deitar a mão aos saldos bancários da PDVSA.
Por incrível que pareça, na Comissão Parlamentar de Inquérito do final de 2014, Ricardo Salgado contou aos deputados uma história com detalhes, que hoje se sabe ser falsa.
Em julho de 2014, a administração do BES da altura, liderado por Vítor Bento, descobriu cartas de conforto, assinadas por Ricardo Salgado e José Manuel Espírito Santo, que asseguravam o reembolso pelo BES do investimento realizado por entidades venezuelanas (Petróleos da Venezuela) em dívida das empresas do Grupo Espírito Santo (GES). O Banco de Portugal foi informado da existência desta cartas no próprio dia (noite) em que a comissão executiva do banco as conheceu, a 15 de julho de 2014.
O que disse Ricardo Salgado sobre um concurso que agora se sabe forjado?
Relativamente às cartas de conforto emitidas em favor de um banco e um fundo da Venezuela, Ricardo Salgado explicou à Comissão Parlamentar de Inquérito à Gestão do BES e do GES (que decorreu entre 9 de outubro de 2014 e 8 de maio de 2015) que a PDVSA – Petróleos da Venezuela, beneficiário último das cartas de conforto, era um cliente relevante para o BES.
“Para além deste facto, a ESAF, entidade do BES, tinha concorrido à gestão do Fundo de Investimento Internacional da PDVSA e ganhou esse concurso, com adjudicação em 5 de maio, com um volume de ativos sob gestão de 3,5 mil milhões de euros, no âmbito de um concurso internacional em que participaram prestigiados bancos a nível global, tais como a UBS, o HSBC, o Mitsubishi e o BSI. A atribuição da gestão desse fundo vinha acompanhada da decisão de investimento de 20% em equity na Rioforte, no montante de até 700 milhões de euros”, refere a citação do ex-presidente do BES que consta do relatório da comissão de inquérito.
Tudo isto foi ficionado, de acordo com a acusação.
Ricardo Salgado disse ainda que “no sentido de proteger o BES e o GES foram assinadas duas cartas de conforto, as quais, porém, necessitariam de um facto precedente, sendo este a substituição da dívida da ESI, detida pelo FONDEM (Fundo Interamericano de Assistência para Situações de Emergência) e pelo BANDES (Banco de Desenvolvimento Económico e Social), por dívida a emitir pela Rioforte, o que, infelizmente, não foi possível concretizar, devido ao colapso do Grupo Espírito Santo e do Banco Espírito Santo. De todas estas circunstâncias informei o Dr. Vítor Bento por carta entregue em 30 de Julho”, relatou.
A acusação do grupo de procuradores do Ministério Público, liderado por José Ranito, vem contar uma história diferente.
A história do falso representante da Petróleos da Venezuela que autorizou o uso dos saldos bancários dos venezuelanos que estavam no BES para financiar o GES
Tudo terá começado em janeiro de 2014 quando foram conhecidos as falsas contas da Espírito Santo International (ESI) que ocultavam 1,3 mil milhões de dívida e um capital próprio negativo e numa altura em os responsáveis da empresa pública venezuelana começaram a dar sinais de que pretenderiam desinvestir no grupo. Com a agravante de, em abril de 2014, ir vencer um conjunto de obrigações em que tinha sido investido o dinheiro da PDVSA.
No primeiro trimestre de 2014, e na sequência da “reestruturação” do GES, chegam ao mercado os comunicados da ESFG de 23 de janeiro de 2014, anunciando que sofrera alterações na sua estrutura acionista de referência. Depois há outro de 25 de março de 2014, dando notícia do adiamento da aprovação das suas contas de 2013 e da necessidade de constituição de uma provisão no valor provável de 700 milhões de euros. Isto gerou descontentamento nos representantes do grupo PDVSA. Num comunicado de 23 de janeiro de 2014 tomaram conhecimento que, na sequência da “reestruturação” do GES, aqueles seus investimentos em dívida ESI deixaram de estar diretamente garantidos pela participação desta no capital social da ESFG, que agora estava no perímetro de consolidação da Rioforte.
Ricardo Salgado e João Alexandre Silva foram então confrontados com a pressão dos decisores das empresas públicas venezuelanas que não pretendiam ver-se politicamente expostos por decisões que haviam tomado para a gestão da tesouraria daquelas empresas, que então passaram a percecionar como incorrendo em risco de perdas pela possibilidade de incumprimento da ESI.
“Em março de 2014, quando estava já esgotado o montante máximo de endividamento da RFI [Rioforte]” Ricardo Salgado confrontava-se com a resistência de alguns dos administradores da RFI a autorizarem um aumento do endividamento da empresa para além dos limites fixados no Conselho de Administração de 25 de fevereiro de 2014 e, assim, “impedindo que se acomodasse a migração daqueles investimentos de entidades venezuelanas para dívida da RFI”, refere a acusação.
Resistência que perdurou, “mesmo depois de 11 de abril de 2014, data em que o Conselho de Administração da RFI aprovou um primeiro aumento do limite máximo do endividamento consolidado da sociedade”.
O CEO da Rioforte, João Bento, avisou Manuel Fernando Espírito Santo para o excesso de dívida repentina da empresa. Perante a impossibilidade de determinar a colocação de dívida adicional pela Rioforte para fazer avanços à ESI para que esta reembolsasse a dívida colocada aquando da sua maturidade, Ricardo Salgado via-se confrontado com o iminente incumprimento daquela sociedade e consequente colapso do GES.
Ricardo Salgado, para que então se conseguisse desmobilizar os saldos dos depósitos das contas bancárias da PDVSA, cativos no âmbito do negócio de crédito documentário, a fim de os utilizar para subscrever a dívida GES, queria uma alteração da posição de alguns dos administradores da Rioforte aprovando o aumento do limite máximo de endividamento, necessário para acomodar a migração dos investimentos da PDVSA em Obrigações ESI para Obrigações Rioforte.
Então começa uma encenação altamente elaborada. Ricardo Salgado “engendrou um esquema pelo qual ficcionou a existência de um concurso/convite lançado pela PDVSA para a gestão de um fundo de ativos e de uma carteira de investimentos”. Para execução do qual convocou os esforços de João Alexandre Silva, Isabel Almeida e Amílcar Morais Pires. Pretendia o banqueiro do BES fazer crer os serviços do Banco Espírito Santo da verdade daquele convite/concurso, que, nos termos por si definidos, necessariamente findaria com a adjudicação da gestão do dito Fundo à ESAF num negócio que compreenderia um investimento em capital social da Rioforte.
“Para o efeito, sob instruções de Ricardo Salgado, João Alexandre Silva recrutou o cidadão venezuelano José Trinidad Márquez, que, assumindo a identidade de Domingos Galan Macias, cidadão espanhol, porteiro de profissão, titular do documento de identidade espanhol n.º 70030366X, com residência em Madrid, e contra quem este último apresentou queixa às autoridades espanholas imputando-lhe a subtração do seu documento de identificação, interveio em todo o processo apresentando-se como representante da PDVSA, o que era falso”, lê-se no despacho de acusação.
Sob a égide e controlo de Salgado, e com a participação do responsável da sucursal da Madeira (João Alexandre Silva), e à revelia dos órgãos de governo das empresas PDVSA, iniciou-se um processo de produção de documentos forjados para fazer crer aos serviços do BES a existência do referido concurso lançado pela Petróleos da Venezuela.
Assim, com data de 27 de março de 2014, “por documento forjado, elaborado como se emitido pelos serviços da PDVSA, o BES era convidado a apresentar a sua melhor oferta para a gestão de um fundo de ativos e de uma carteira de investimentos da PDVSA de valor não inferior a 3.550 milhões de euros, por período igual ou superior a 5 anos”, relata o MP.
“Documento em que, apesar de nele ter sido aposto carimbo de receção a 3 de abril de 2014 no Conselho de Administração do BES e a confirmação de receção com as assinaturas manuscritas de Ricardo Salgado e João Alexandre Silva, ficou apenas na posse do primeiro, a quem foi apreendido no âmbito de busca realizada nestes autos”, descobriram os procuradores.
Subsequentemente, e conforme instruções de Salgado e João Alexandre Silva, a 28 de março desse ano, José Trinidad Márquez, “identificando-se como Domingos Galan, e utilizando conta de e-mail com o endereço doming.galan@hotmail.com, enviou ao segundo [o gestor do BES Madeira] um e-mail com indicações para a preparação da reunião que deveria ocorrer na 4ª feira seguinte, a 2 de abril de 2014, designadamente informações básicas sobre o que era esperado das concorrentes convidadas no interesse da PDVSA. E-mail que João Alexandre Silva logo reencaminhou para Isabel Almeida (DFME), Elsa Ramalho da (DGR) e Pedro Costa (da ESAF).
O gestor da Espírito Santo Ativos Financeiros “estranhando o seu teor lacunar, reencaminhou esta informação à ESAF, à equipa dirigida por Susana Vicente, referindo que “embora a informação seja pouco e estranha“, o que está em causa é a “adjudicação da gestão 2,5 mil milhões de dólares, de parte da carteira do fundo de pensões da PDVSA”.
No dia 2 de abril de 2014 “decorreu então a reunião na sede do BES em que estiveram presentes José Trinidad Márquez, identificando-se como Domingo Galan Macias e representante da PDVSA e aí sendo apresentado a Amílcar Morais Pires que ali compareceu apenas para esse efeito, e ainda João Alexandre Silva; a adjunta deste, Célia Tairum, diretora do departamento de banca internacional; Elsa Ramalho, diretora coordenadora do gabinete de relação com investidores; Isabel Almeida; Pedro Sotero Gomes, da SFE da Madeira; Pedro Costa (ESAF), e Ana Rita Barosa, na qualidade de diretora coordenadora do gabinete de reorganização estratégica do BES”, relatam os procuradores que demoraram seis anos nesta investigação. Nessa reunião, José Trinidad Márquez era portador de um documento com as bases contratuais para preparação da proposta de contrato, forjado, conforme determinado por Ricardo Salgado, diz o despacho.
Ana Rita Barosa, que, no âmbito do denominado “Projeto Douro”, que coordenava, ainda não tinha logrado convencer qualquer instituição bancária a conceder financiamento à Rioforte, conforme indicações do então presidente do BES apresentou uma brochura descrição da RFI a José Trinidad Márquez, que acreditou chamar-se Domingo Macias e ser representante da PDVSA. “Documento que não suscitou qualquer interesse de Trinidad Márquez, que sobre a situação patrimonial da Rioforte nada perguntou”, diz o despacho. Pudera estava-se perante um falso representante da PDVSA e falso potencial investidor na Rioforte.
Entre os dias 2 e 11 de abril de 2014, e por haver indicação de urgência, a equipa liderada por Pedro Costa elaborou então uma proposta de gestão de ativos a apresentar pela ESAF no âmbito daquele concurso/convite ficcionado por Ricardo Salgado. A proposta da ESAF, que importava a gestão de valor equivalente a 30% do total dos seus ativos, foi estruturada nos dias 7 e 8 de abril de 2014, para tanto tendo contado com os contributos de João Alexandre Silva, Isabel Almeida e Amílcar Morais Pires.
“Sob orientações de João Alexandre Silva e Isabel Almeida, ambos atuando em cumprimento das instruções de Ricardo Salgado, e com o conhecimento de Amílcar Pires, o gestor Pedro Costa incluiu naquela proposta a possibilidade de a ESAF, ao abrigo do mandato atribuído pela PDVSA, poder alocar parte dos ativos, na proporção de 20% do valor total dos ativos sob gestão, à tomada de uma posição no capital social da Rioforte, o que equivaleria a um investimento no capital desta, de cerca de 700 milhões de euros.
Gustavo Ferreira, do Departamento de Assuntos Jurídicos (DAJ) do BES, foi então instruído por João Gomes da Silva, seu superior hierárquico, para, nesse mesmo dia, 10 de abril de 2014, se reunir com Pedro Costa da ESAF e João Alexandre Silva de molde a elaborar, até ao dia seguinte, uma minuta de contrato de gestão de carteira de ativos que cumprisse as exigências legais do Luxemburgo. Tendo referido a João Alexandre Silva a dificuldade em satisfazer o solicitado naquele prazo, “Gustavo Ferreira logo por aquele foi avisado que Ricardo Salgado aguardava o cumprimento daquela tarefa no prazo determinado”.
No dia 11 de abril de 2014 foi então concluída a redação da proposta de contrato entre o Grupo BES e a PDVSA, que, Salgado, “na qualidade de presidente do Conselho de Administração da ESAF, entregou em mão a José Trinidad Marquez, este identificando-se como Domingos Galan e representante da PDVSA, o que aquele bem sabia ser falso”, diz o despacho de acusação.
Para além do concurso forjado, foi também forjada uma assembleia extraordinária da PDVSA, com ata inclusive, e que dava poderes totais ao falso representante
Subsequentemente, “a mando de Ricardo Salgado, foram forjados documentos relativos a uma assembleia extraordinária da PDVSA, datados de 30 de abril de 2014, e em que se fez constar que, na sequência de um processo de convite a um conjunto de entidades bancárias internacionais para gerirem posições financeiras da PDVSA fora da Venezuela, aquela proposta do BES, preparada em 9 (nove) dias, tinha saído vencedora”. E não foi por falta de propostas rivais, já que naquele ata também se fez constar ter o BES obtido vencimento face a outras propostas apresentadas por entidades bancárias como a UBS (Zurique), o BSI (Genebra) e Mitsubishi (UFJ) Tokio (Genebra). “O que era falso já que estas entidades não receberam em 2014 qualquer convite da PDVSA para aquele efeito”.
Para continuar a controlar o processo por si desencadeado e não ser assim descoberta a sua falsidade, Ricardo Salgado determinou ainda que naquela ata de assembleia extraordinária da PDVSA fosse feito constar que “eram mandatados os responsáveis da PDVSA para negociar diretamente com o “Grupo Espiritu Santo” (citação do documento) a contratação dos serviços de gestão destes ativos”; e que “o “ingeniero” Domingos Galan Macias, espanhol, com domicílio em Caracas, dirigente da divisão de engenharia do departamento técnico da PDVSA, seria responsável pela avaliação das propostas apresentadas pelas instituições financeiras convidadas a apresentar propostas de contratação”. A ata de uma reunião que nunca existiu diz que “Rafael Ramirez, presidente da junta diretiva da PDVSA e Ministro dos Petróleos da Venezuela, indicara Domingo Galan como outsider ad honorem da PDVSA, não remunerado, mandatado como representante da companhia e como gestor do projeto no contrato a estabelecer e que esta nomeação havia sido aprovada pelo departamento jurídico da PDVSA”. O mesmo documento diz que “Domingo Galan seria o responsável pela abertura de contas, preparação de documentos e contratos com o BES, e mandatado para aconselhar o BES em tudo o que fosse necessário, para além de ser o responsável pela entrega da carta oficial de adjudicação ao BES”.
O BES pagaria um conjunto de verbas a título de comissão de adjudicação para contas tituladas por Domingo Galan que faria chegar tal dinheiro à PDVSA e o processo tinha caráter sigiloso, segundo a ata da suposta “assembleia extraordinária da PDVSA”.
Subsequentemente, recebida a feliz notícia do vencimento da proposta do BES, no dia 6 de maio de 2014, João Alexandre Silva, Paulo Nacif Jorge e Célia Tairum prepararam uma comunicação que o primeiro faria à Comissão Executiva do BES no dia seguinte e que sustentaria decisão pela qual se autorizasse a descativação do dinheiro que a PDVSA tinha em depósito para garantia dos empréstimos concedidos pelo BES no âmbito do crédito documentário (trade finance).
No dia 7 de maio de 2014, José Trinidad Marques, vindo de Madrid acompanhado por João Alexandre Silva, participou na reunião da Comissão Executiva do BES em que estiveram presentes Ricardo Salgado, António Souto, Jorge Martins, Rui Silveira, Joaquim Goes, Amílcar Morais Pires, João Freixa e Stanislas Ribes.
João Alexandre Silva e Ana Rita Barosa efetuaram então a apresentação de aspetos relacionados com o pretenso contrato de gestão de ativos que seria celebrado entre o BES e a PDVSA.
A Ana Rita Barosa apenas foi confiada a tarefa de explicitar as razões do vencimento da proposta do BES e as vantagens negociais para o banco. “O que fez, informando os presentes que na sequência de um processo de seleção rigoroso e em concorrência com entidades de reputação internacional (v.g. Deutsche Bank, Mitsubishi, Societé Generale, UBS e BSI), a PDVSA informava na presente data o BES de que este fora a entidade escolhida para gestão de uma carteira de cativos daquela empresa, por um período de 6 anos e um montante inicial de 3.550 milhões de euros”. A gestão da carteira envolveria “um investimento numa carteira “core” (mínimo de 80% do valor sob gestão) e, numa perspetiva de longo prazo, numa carteira com um posicionamento estratégico (máximo de 20%), com possibilidade de investimento numa participação no capital da Rioforte”.
O Private Wealth Management Agreement assinado previa, “para além do montante inicial de gestão de 3.550 milhões de euros, uma comissão de performance de 20% sobre a rentabilidade acima de 10% e uma comissão de aceitação de 3 milhões (dos quais 2,862 milhões euros a reembolsar em 6 meses após a assinatura do contrato)”.
A João Alexandre Silva coube a responsabilidade de, falsamente, e conforme instruído por Ricardo Salgado, apresentar como exigência da PDVSA para a adjudicação daquele contrato a autorização do BES à descativação dos saldos bancários que garantiam os empréstimos concedidos pelo banco. Esta era a pedra de toque de toda esta encenação, deitar a mão aos saldos bancários da PDVSA.
Os administradores executivos do BES, “não cuidando de analisar o referido contrato, que também não lhes foi exibido, aprovaram as propostas feitas e deliberaram delegar poderes em “Ricardo Salgado para representar o Banco na assinatura do contrato de gestão de carteira a celebrar com a PDVSA, nos termos antes descritos””. Sendo que do contrato não constava referência a qualquer comissão de aceitação de 3 milhões, dos quais 2,862 milhões de euros a reembolsar em 6 meses após a assinatura do contrato.
O contrato não foi sujeito a validação prévia pelo DAJ (área jurídica do BES). ou do compliance para aferir da admissibilidade do pagamento de comissões de assinatura, ou para os procedimentos de certificação de poderes de quem se apresentava em nome da PDVSA.
A 7 de maio de 2014, Ricardo Salgado põe a sua assinatura no contrato de gestão de ativos de 3.550 milhões de euros, em nome do BES. Em nome da PDVSA, José Trinidad Márquez colocou o nome Domingos Galan Macias. Documento esse que o Ministério Público descobriu ser forjado a mando do então presidente do BES e não elaborado pelos serviços da PDVSA, “cujos órgãos estatutários nunca deliberaram sobre semelhante realidade e nos quais não existe qualquer departamento associado a Domingos Macias”.
Após as 17 horas de 7 de maio de 2014, os serviços da administração do BES receberam um documento datado de 5 de maio, também forjado por instruções de Ricardo Salgado, com a autoria imputada a Rafael Ramirez, e pelo qual este, em nome da PDVSA, comunicava ao BES adjudicação “direta e irrevogável” da gestão dos ativos da PDVSA no montante total de 3.550 milhões de euros, “mais aí se tendo feito constar que o BES foi aprovado como única entidade bancária designada para gestão a longo prazo dos ativos de investimentos da PDVSA; foi aprovado pela PDVSA o investimento de 20% daquele valor numa posição estratégica na Rioforte”, diz a acusação que adianta que “esta adjudicação garantia que a PDVSA não convidaria nem negociaria com nenhuma outra entidade para gestão dos seus ativos”.
Para que não se descobrisse a falsidade deste esquema que criou, a Rioforte diligenciou para que naquele documento constasse que a comissão de adjudicação deveria ser paga diretamente a Domingo Galan nos termos contratuais, “sob pena de decaimento da decisão de adjudicação, e que, para garantir confidencialidade e discrição, todas as comunicações sobre o assunto deveriam ser efetuadas através daquele”.
“No dia seguinte, descativados os depósitos a prazo do grupo PDVSA que garantiam as operações de crédito documentário no BES, foram transferidos os seguintes valores: 159.512.000 dólares para conta da PDVSA na SFE [Madeira]; 30.823.894 euros para conta da PDVSA Services no BES Luxemburgo; e 73.712.250 dólares para a conta da PDVSA Services no BES Luxemburgo”, lê-se na Acusação.
No entanto, a 8 de maio de 2014, e não obstante Ricardo Salgado, com a falsa promessa de vir a ser concretizado um aumento de capital, ter logrado que em 11 de abril de 2014 o Conselho de Administração da RFI aprovasse o aumento do limite máximo do endividamento consolidado da sociedade em mil milhões de euros, o limite máximo do programa de EMTN (Medium Term Notes) da sociedade já se encontrava esgotado.
Em troca de e-mails nos dias 13 e 15 de maio de 2014 entre João Cardão da Rioforte (RFI) José Pedro Castanheira do BPES, e José Castella ainda se alvitrou a possibilidade das emissões de dívida da RFI necessárias para acomodar a migração das Obrigações ESI tomadas pelo grupo PDVSA fossem efetuadas através da emissão de doze Notes, ideia abandonada por receio de eventual reação das entidades de supervisão. Motivo pelo qual, no dia 8 de maio de 2014, no seguimento de instruções de Ricardo Salgado, João Olavo Silva, atuando como gestor discricionário dos interesses bancários do grupo PDVSA na SFE, em nome da PDVSA e PDVSA Services, mas à revelia dos representantes destas sociedades, tomou as seguintes Obrigações ESI, com maturidade em 19 de maio de 2014, data em que seriam roladas para Obrigações Rioforte: uma no valor de 233,22 milhões de dólares; a outra no valor de 30,82 milhões de dólares.
Estes valores assim obtidos pela ESI pela emissão daquelas Obrigações foram depois utilizados para anular saldo negativo de conta bancária da ESFIL gerado no dia 7 de maio seguinte, pela transferência para a conta escrow de 47,7 milhões de euros para reembolsar papel comercial ESI vencido nesse dia, já então se antecipando, no descritivo da operação, que o valor tinha resultado “da subscrição de obrigações da ESI por parte da Petróleos da Venezuela, através da SFE da Madeira” não obstante esta apenas se ter concretizado no dia seguinte.
A tomada daquelas Obrigações ESI, possibilitada pela libertação dos saldos das contas da PDVSA, foi efetuada sem instruções prévias da direção financeira da PDVSA, sendo as respetivas ordens de subscrição assinadas apenas a 14 e 20 de maio de 2014.
Entretanto, em 19 de maio de 2014, e tal como pretendido por Salgado, após ter logrado que, sob a falsa promessa do aumento de capital a concretizar no âmbito da adjudicação à ESAF da gestão do Fundo da PDVSA, o Conselho de Administração da Rioforte em 15 de maio de 2014 autorizasse o aumento do limite máximo do endividamento consolidado em 1.000 milhões de euros, fixando-o em 4,5 mil milhões euros e convencido os representantes da PDVSA a tomar dívida da Rioforte, aquelas Obrigações ESI foram roladas nas seguintes Obrigações emitidas pela RFI.
Sob a falsa promessa de um aumento de capital, começou então a emissão forte de dívida da Rioforte.
As duas primeiras Obrigações acima descritas vieram posteriormente a ser “roladas” em duas novas Obrigações RFI, a que se juntaram outras duas Obrigações, também emitidas pela Rioforte e tomadas pelo grupo PDVSA por decisão dos seus legais representantes, convencidos da solidez da situação patrimonial da emitente.
Ricardo Salgado, tendo conseguido concretizar os seus intentos com o esquema montado – levar o BES a autorizar a desmobilização dos saldos das contas do grupo PDVSA e o Conselho de Administração da RFI, em 11 de abril de 2014 e 15 de maio de 2015, a aprovar o aumento do limite máximo do endividamento consolidado da sociedade para 3,5 mil milhões de euros e 4,5 mil milhões de euros, respetivamente, e a migrar os investimentos do grupo PDVSA para Obrigações da RFI –, diligenciou pelo pagamento das recompensas prometidas a José Trinidad Marquez, refere a Acusação.
Falso represente da PDVSA recebeu 4,5 milhões pelo papel
Ao cidadão venezuelano José Trinidad Márquez, que, assumiu a identidade de Domingos Galan Macias, entre abril e julho de 2014, foram-lhe parar às mãos 4,5 milhões de euros.
Para tanto, já tinha feito constar em documentos forjados a seu mando, como se documentos elaborados pelos serviços da PDVSA se tratassem, designadamente no documento em que se referem os “Puntos Mandatários Aprobados por la Junta Directiva para el desarrollo del proyecto”, que “a título de comissão de adjudicação direta, o BES deveria transferir para o IBAN CH9608465140462882001 do BSI Lugano, conta titulada por Domingo Galan, o valor de 2.000.000 de euros”; e a “título de comissão devida pela aprovação dos investimentos estratégicos na Rioforte, o BES deveria transferir para o IBAN ES 2900495103712595359668 do Banco Santander, conta titulada por Domingo Galan, o montante de 862.000 euros”; por fim “os gastos administrativos já recebidos, no valor de 6.684 euros e a receber, no valor de 40.020 euros seriam entregues ao gestor do projeto Domingo Galan”.
Entre 3 de abril de 2014 e 3 de julho de 2014, por ordem de Ricardo Salgado, foram então pagos a José Trinidad Márquez, que usurpava a identidade de Domingo Galan Macias, o valor total de 4.500.704 euros [4,5 milhões] , entregues de distintas formas. Uma parte em numerário (pagos na agência do Marquês de Pombal e na sede); uma parte através de uma transferência internacional para Espanha; outra através de uma transferência internacional para a Suíça; e uma designada “Transferência BES”.
As transferências no valor de 27.020 euros e 2.862.000 euros (2,86 milhões) foram efetuadas a 9 de maio de 2014. A primeira para conta do Banco Santander, em Espanha; a segunda para conta no BSI Lugano, na Suíça.
Para além dos valores devidos a “Domingos Galan Macias” consignados no contrato entre o BES e a PDVSA, forjado, por ordem de Ricardo Salgado, foram ainda transferidos para José Trinidad Márquez, sob o nome de Domingos Galan Macias, o valor de 1.562.000 euros (1,5 milhões) através da sociedade Boddickron Overseas, constituída a 24 de fevereiro de 2014 e registada a 26 de fevereiro de 2014 no registo público do Panamá, em nome da qual, em 20 de junho de 2014, foi aberta conta bancária na SFE Madeira, aí constando Domingos Galan como seu beneficiário económico.
A 27 de junho de 2014 foi ainda assinado um “Finder’s Agreement – contrato de identificación de Potenciales Clientes” entre o BES (ali representado por Ricardo Salgado e José Manuel Espírito Santo) e “Domingos Galan”, no âmbito do qual o segundo identificaria ao BES potenciais clientes e cobraria uma comissão de 0,22% nos casos em que o BES, na sequência de uma indicação do “Promotor” viesse a contratualizar um serviço bancário.
Ricardo Salgado e José Manuel Espírito Santo não submeteram o documento à análise do DAJ (serviços jurídicos) ou do compliance do BES.
A 3 de julho de 2014 uma conta no BES Luxemburgo, titulada pela Boddickron, foi aprovisionada no valor 1.563.000 euros com a referência “transferência finder’s agreement”, como comissão de adjudicação de assinatura, reembolsável ao fim de 6 meses. O pagamento deste dinheiro foi ordenado por Ricardo Salgado.
No dia 25 de julho de 2014, já com Ricardo Salgado sem funções no BES, o crédito de 1.563.000 euros foi estornado, ficando a conta em referência com um saldo de zero euros.
Em consequência da insolvência da Rioforte, as Obrigações tomadas pelas sociedades do grupo PDVSA não foram reembolsadas, gerando-lhe o prejuízo total de 330.029.851 euros (330 milhões de euros).
Entre meados de 2008 e julho de 2014 várias empresas públicas da Venezuela investiram no GES e BES 6,4 mil milhões de euros.
A rocambolesca história do envolvimento de Ricardo Salgado com a Venezuela
Tudo começou quando em 2008, na sequência da deslocação à Venezuela de uma comissão mista de governantes e empresários portugueses, o BES iniciou a relação comercial com empresas públicas venezuelanas. Essa relação foi diretamente assumida por Ricardo Salgado e elementos da nomenclatura política local, incluindo o Presidente do país e o Ministro dos Petróleos, Rafael Ramirez, também presidente da Petróleos da Venezuela (ou PDVSA).
“Pese embora o Grupo de empresas estatais venezuelano, PDVSA, tivesse assinado um contrato com a Galp e a CGD fosse o banco para as relações interpartes, Ricardo Salgado logrou canalizar para o BES aplicações de tesouraria de bancos públicos venezuelanos, de empresas subsidiárias da PDVSA, de empresas ligadas à eletricidade e de Fundos de desenvolvimento local que operavam com receitas petrolíferas”, lê-se no despacho de 4.117 páginas.
Não é novidade que a sucursal da zona franca (que tinha como diretor-geral um dos arguidos – João Alexandre Silva –) serviu para o BES angariar clientes da América do Sul e África. A PDVSA e outras empresas venezuelanas chegaram a ter quase 7.000 milhões de dólares no BES, depósitos eram investidos no GES.
O despacho relata que “em 2011, o BES conseguiu centralizar na SFE Madeira as principais contas do grupo PDVSA. Por determinação de Ricardo Salgado, num processo controlado pela unidade de acompanhamento do negócio corporativo da América do Sul, assumida pelo diretor geral da SFE da Madeira, João Alexandre Silva, do adjunto deste, Paulo Jorge, e a equipa destes dependente, e com o contributo de Isabel Almeida sob o domínio de Amílcar Morais Pires, tanto a área comercial da SFE como o DFME direcionaram a liquidez das contas de depósitos de empresas públicas venezuelanas para investimentos em dívida de entidades do GES, como a ESFIL e a ESI”.
Além dessa relação de depósito que se estabeleceu com as empresas venezuelanas, a área de negócio internacional do BES também vendeu serviços de crédito documentário (ou trade finance). Estas operações de crédito, concedidas pelo BES ao Grupo PDVSA, garantiam fornecimentos internacionais de bens e serviços à petrolífera venezuelana nas quais as contrapartes desta exigiam garantias irrevogáveis de pagamento para mitigação do risco de país Venezuela. O BES emitia assim cartas de crédito de garante (stand by letters of credit, ou LC), irrevogável, antecipado de pagamentos mediante determinadas condições prévias ao fornecimento que, na realidade, funcionavam como financiamento ao Grupo PDVSA para pagamento antecipado de encomendas feitas a operadores mundiais.
Na corrente atividade de concessão de crédito, o BES exigia a prestação de garantias, colaterais ou a mobilização de dinheiro em contas caucionadas.
“Tal como no demais negócio das entidades corporativas sul-americanas, para o acompanhamento destes concretos clientes na atividade do crédito documentário, Ricardo Salgado posicionou João Alexandre Silva, o adjunto deste, Paulo Jorge, e a equipa destes, em acumulação de funções, na área da banca internacional e dos grandes negócios internacionais do BES, em Lisboa.
Entre 2008 e 2014, o BES concedeu linhas de crédito à PDVSA, “à subsidiária desta que funcionou como central de contratação de bens e serviços, a Bariven; à Electricidad de Caracas (e Corpoelec, empresa estatal na qual se fundiram todas as empresas elétricas regionais venezuelanas, incluindo a Electricidad de Caracas); ao Banco Del Tesoro; ao banco de desenvolvimento local, o BANDES; e ao Banco EX, destacando-se a aprovação de algumas linhas de apoio. Nomeadamente as cartas de crédito para a importação à PDVSA/Bariven a 9 de janeiro de 2012, no valor de 750 milhões de dólares; cartas de crédito à linha hidrocarburos à PDVSA, a 10 de janeiro de 2013, no valor de 1.150 milhões de dólares; à operação de 834 milhões de dólares, contratada a 24 de setembro de 2013, e a 21 de abril de 2014, para apoio ao desenvolvimento de uma refinaria, que envolveu as estruturas Wison e OAK Finance, e o BES Luxemburgo; e a linha de apoio a fornecedores da PDVSA e Bariven, contratada a 10 de janeiro de 2014, no valor de 800 milhões de dólares”, diz o despacho.
Diz a equipa de procuradores que Ricardo Salgado posicionou esta linha de negócios do BES para com ela obter proveitos de financiamento para as entidades do GES. “A partir do dia 22 de dezembro de 2011, pelo menos, a PDVSA iniciou o ciclo de investimentos em obrigações ESI com uma aplicação em obrigações, no montante de 500 milhões de dólares, e no contexto a que foi feita referência no separador Falsificação das Demonstrações Financeiras da ESI para o ano de 2011”. Entre os dias 22 de dezembro de 2011 e 30 de janeiro de 2012, a PDVSA investiu 1.500 milhões de dólares em instrumentos de dívida ESI.
“Ricardo Salgado identificou aqui uma base de apoio à tesouraria do GES não financeiro, ainda que intermitente, e associada ao negócio do BES com as entidades públicas venezuelanas”, diz o despacho.
“Salgado fez com que os serviços da SFE e do Departamento da Banca Internacional, laborando em erro, fizessem propostas ao Conselho de Crédito para que o trade finance pudesse ser colateralizado em dívida GES e, assim, a ESI se financiasse com o recurso a essa atividade”, desvendaram ainda os procuradores do Ministério Público.
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