Portugal mantém a sua singularidade face ao crescimento dos populismos antissistémicos e, apesar de extremamente críticos, os eleitores persistem na desconfiança face aos velhos e novos protagonistas políticos. Conceição Pequito deixa reflexões e alerta para sinais a que devemos estar atentos, como o facto de metade da população ter “uma atitude favorável relativamente à possibilidade de um governo de um líder forte, que não preste contas da sua atuação ao parlamento”, em texto escrito para este jornal.
A professora de Ciência Política no ISCSP-UL e Investigadora no CAPP- ISCSP, autora do ensaio “Qualidade da democracia em Portugal”, com a chancela da Fundação Francisco Manuel dos Santos, diz-nos ainda que a manter-se “a separação e distância entre partidos políticos e sociedade civil, que caracteriza a nossa democracia”, transformando-se “numa clara e manifesta contraposição moral entre ‘eles’ (a elite corrupta) e nós (o ‘povo puro’), poderão estar reunidas as condições necessárias para cair por terra o mito de que não há nem haverá populismo em Portugal”.
Os eleitores portugueses mostram-se recetivos a novas formações políticas?
Perante o apoio dado pelos portugueses à democracia enquanto regime político, que não descarta o apoio expressivo a outras formas de governo de tipo autocrático, face aos níveis de desconfiança nas instituições políticas tão elevados em Portugal, sendo de destacar sobretudo o forte apartidarismo e antipartidarismo, caracterizado pelo progressivo distanciamento e a inequívoca hostilidade dos cidadãos face aos partidos, bem como pela crescente colonização do Estado pelos partidos, a qual se traduz numa verdadeira partidocracia – a primazia dos partidos na vida política, económica e social do país: nada fora dos partidos, tudo dentro dos partidos – como explicar que não surjam entre nós novas forças partidárias manifestamente anti-establishment, capazes de mobilizar eleitoralmente os portugueses e renovar o sistema partidário existente?
Atendendo aos elevados níveis de desconfiança, de que falámos acima, em relação ao modo como a democracia funciona entre nós, mas também face às principais instituições políticas (governo e parlamento) e atores políticos (partidos e classe política), o que surpreende em Portugal é que não assistamos a novas formas de participação política nem tão-pouco ao aparecimento de novas formações partidárias, que consigam realmente mobilizar os eleitores, que contestam na esfera pública mas que na hora de atuar, parecem preferir o retiro para a aparente comodidade da esfera privada. Que sendo extremamente críticos em relação ao que está, estão longe de ser receptivos ao que de novo vai aparecendo. A sua desconfiança é assim generalizada face aos velhos como aos novos protagonistas políticos!
Há novas formas de participação política e novas formações a ganhar expressão? Os eleitores estão recetivos? É isso que procuram?
Como explicar o não aparecimento de outsiders que consigam ter uma estratégia discursiva e um modo de fazer política capazes mobilizar o forte descontentamento e até hostilidade dos cidadãos face aos partidos políticos, em geral, e à classe política, em particular? Que consigam pôr na ordem do dia discursos políticos demagógicos e estilos retóricos de forte invocação popular, nos quais o “povo comum” se opõe à “elite corrompida” ou aos poderes estabelecidos? Por outras palavras, novos partidos que imponham na vida política a divisão da sociedade em dois grupos antagónicos, o “povo” e os “inimigos do povo”, evocando a conceção schmittiana da política como contraposição amigo-inimigo?
Portugal é um caso singular…
Enfim, como explicar a singularidade de Portugal, face ao crescimento dos populismos antissistémicos nas eleições europeias de 2014, com as vitórias mais notadas de Marine Le Pen, em França, e de Nigel Farage, no Reino Unido, que abriu caminho ao inusitado e inconclusivo Brexit?
Uma singularidade ainda mais intrigante, se atendermos ao que Cas Mudde, politólogo holandês e Professor Associado da Universidade da Geórgia, chama de “tempestade perfeita” para se referir ao crescimento do populismo nas democracias atuais, traduzindo-se, aquela, na conjugação de alguns fenómenos temporários, como foi por exemplo o caso da Grande Recessão de 2008, aliados a outros fenómenos que são de longo prazo e não parecem mudar. Tais como a crise dos refugiados de 2015, com os fluxos de migrantes fugindo da guerra da Síria e da instabilidade no Médio Oriente – os quais estão na base das identidades dos novos partidos na Europa Central e Oriental, que mais não fazem senão explorar o medo dos estrangeiros e a ameaça à perda de soberania.
Ou a crítica pós-democrática às elites políticas e financeiras, que permitiram que a grande maioria dos ganhos económicos gerados pela globalização fossem capturados por um pequeno número de bilionários e grandes corporações, que leva alguns a sustentar que as democracias liberais sempre permaneceram incompletas.
Acrescente-se ainda os nacionalismos e nativismos que na Polónia, Hungria e Áustria, em nome da identidade nacional e excludente, questionam as decisões tomadas pelos países e pelas instituições da União Europeia, soando o alarme que representam para a estabilidade as democracias liberais. Uma “tempestade perfeita” que traz também consigo as constantes queixas populares aos partidos mainstream, aos quais falta uma narrativa convincente e liberal-democrática, acabando por criar um eleitorado flutuante (e, por vezes, infantilizado) disposto a votar em novos partidos de direita radical, extremistas e populistas. Sobretudo, e como explica Cas Mudde, quando a social-democracia se converteu ao liberalismo e deixou de ser uma alternativa. E, ainda segundo Cas Mudde, se a social-democracia abriu o caminho, o populismo foi rápido a preenchê-lo. Na Europa continental, há Marine Le Pen (França), há Viktor Órban (Hungria), há Geert Wilders (Holanda), há Beppe Grillo (Itália).
A abstenção persiste e vai aumentando. Pode ser vista como uma “saída” para evitar uma posição extremada?
Mas voltemos à questão principal, ou seja, como explicar a excepcionalidade de Portugal face ao populismo que ronda as democracias atuais. Em primeiro lugar, muitos dos fenómenos que mencionámos acima e que são parte integrante da ideologia, estratégia discursiva ou forma de fazer política inerentes ao populismo, por mais camaleónico que este conceito possa ser, estão simplesmente ausentes da sociedade portuguesa, desde logo o nacionalismo e a imigração.
Em segundo lugar, há que sublinhar a extrema rigidez do nosso sistema partidário, explicável por variáveis institucionais – como o sistema eleitoral para a Assembleia da República –, mas também pelo perfil do eleitorado português: marcadamente moderado e conservador. É sabido que perante o forte descontentamento e hostilidade face aos partidos políticos estabelecidos, de entre as três opções enunciadas por Albert O. Hircshman (1978), lealdade (loyalty), protesto (voice) e saída (exit), os portugueses optam claramente pela última opção.
Basta atentar nos elevados e crescentes níveis de abstenção nas eleições legislativas, cerca de 44% nas últimas legislativas de 2015. Para além da saída temporária do sistema político, consubstanciada na elevada abstenção eleitoral, há ainda assim um fator relativamente novo e que pode ser interpretado como uma manifestação de descontentamento face aos partidos do chamado “arco da governabilidade”, e que é a erosão do voto, quer no PSD, quer no PS, sem que isso signifique contudo o crescimento eleitoral significativo dos restantes partidos com representação parlamentar, ou, em alternativa, a abertura do sistema partidário a novos partidos manifestamente desafiadores do statu quo.
Uma outra explicação que concorre para que Portugal seja (por enquanto) um terreno aparentemente infértil aos movimentos e partidos populistas prende-se ainda com o facto de os níveis de interesse pelos assuntos políticos, bem como os níveis de participação política dos portugueses em modalidades mais convencionais ou menos convencionais, ou ainda os níveis de associativismo e ativismo social e cívico serem extremamente reduzidos, quando comparados com outras democracias estabelecidas há mais tempo.
O que retrata uma sociedade politicamente dual e paradoxal: conjunturalmente crítica e contestatária, mas ao mesmo tempo estruturalmente passiva e negligente. O que é tão ou mais verdade se tivermos em conta que em termos de capital social primário, ou seja, da confiança que depositamos nos nossos concidadãos, Portugal aparecer nos últimos lugares dos rankings europeus; característica esta que dificulta (e muito) a ação política coletiva, mesmo quando os índices de descontentamento e de desconfiança nas instituições e atores políticos é grande e relevante.
Posto isto, importa dizer que não estamos entre aqueles que consideram que o populismo em Portugal é um mito, que este não existe nem existirá. Quanto a nós, há entre os vários aspetos que caracterizam a nossa democracia, sinais que nos devem manter atentos, na medida em que estão presentes naquilo que se entende por populismo, por mais banalizado que esteja este conceito.
E que sinais são esses?
Um deles é seguramente a histórica e forte personalização da vida política em torno dos líderes partidários, o que faz do carisma um atributo importante em termos de liderança, seja este natural ou construído pelos médias convencionais ou pelas atuais redes sociais. Ora, como é sabido um dos elementos presentes nas mais diversas conceptualizações do personalismo é sempre e invariavelmente a presença de um “líder carismático”, que consiga interpretar a vontade do “povo autêntico”.
Depois há uma separação ou distância, cada vez mais vincadas e perceptíveis, entre a chamada classe política e a população, sobretudo quando a primeira adopta práticas cada vez mais partidocráticas e cartelizantes, fazendo-o de uma forma no mínimo muitíssimo obtusa e pouco ética (e que está longe de traduzir “casos políticos”, como alguns pretendem mas que é antes um habitus político enraizado e preocupante), na medida em que se torna demasiado evidente para o senso-comum o conluio entre os partidos sempre que em causa estão os seus interesses ou privilégios, o que está longe de acontecer quando o que importa são os assuntos que verdadeiramente interessam aos cidadãos.
Talvez os casos mais recentes e paradigmáticos disso mesmo sejam, por exemplo, as alterações às regras de financiamento dos partidos, em que cinco dos sete partidos com representação parlamentar – a pretexto do pedido do Tribunal Constitucional, que pretendia apenas ver algumas das suas competências administrativas transferidas para a Entidade de Contas e Financiamentos Políticos – aprovaram o aumento do limite máximo das contribuições, alargaram ou clarificaram a isenção de IVA e consagraram o uso de espaços e património público para atividades políticas. Portanto, os mesmos partidos que nunca conseguem promover consensos alargados para alterações importantes na segurança social, na educação, na saúde, na fiscalidade, entre tantas outras matérias, foram rápidos e eficientes a produzir resultados quando em causa estava resolução dos seus constrangimentos financeiros, fazendo-o à medida das necessidades de cada um e de todos.
Com a agravante, não menos importante (bem pelo contrário!), de o terem feito na clandestinidade ou obscuridade, já que durante um ano, os partidos reuniram à porta fechada e sem registos escritos do que lá se passou. Não se sabe quem propôs ou defendeu o quê, quem se opôs a que medida ou artigo, que argumentos foram apresentados para esta ou aquela alteração, sendo que no final deste processo quase todos se entenderam e aprovaram em votação eletrónica a nova lei.
Ora, mesmo admitindo que todos sabemos e concordamos com a necessidade de financiar os partidos, sem os quais não há democracia, perante este entendimento parlamentar alargado conseguido na clandestinidade, como cidadãos não podemos deixar de nos interrogar: o que justificou tanta pressa, tanto secretismo, tanta falta de debate público, tanta e tão infrequente cumplicidade partidária alargada noutros temas e assuntos de relevante importância para o país? As respostas a esta questão, por mais explicações que se deem, só podem ser pouco amistosas, para não dizer totalmente hostis, em relação aos partidos políticos estabelecidos, que a agir desta forma comprometem seriamente a sua imagem e credibilidade junto da opinião pública – e, o que é a mais grave, desferem um duro e rude golpe na pretensa qualidade da democracia portuguesa.
Os partidos ainda contribuem para a qualidade da democracia?
Se aceitamos que os partidos são os pilares do regime democrático, o que é verdade, então temos de aceitar também que é através do seu funcionamento e das suas práticas, fora e dentro do Parlamento, que podemos avaliar a dita qualidade da democracia.
Juntemos a este episódio a recente alteração ao Estatuto dos Deputados, que permite aos deputados que são advogados – o maior grupo profissional na Assembleia da República – manterem as suas ligações às sociedades de advogados a que já pertenciam, antes de serem eleitos, desde que não emitam pareceres ou intervenham a favor ou contra o Estado em qualquer circunstância.
Ou ainda o facto de PS e PSD terem deixado passar uma medida que prevê que os titulares de cargos políticos possam aceitar convites “dirigidos para eventos oficiais ou de entidades públicas nacionais ou estrangeiras”, mas também “quaisquer outros convites de entidades privadas”, e facilmente percebemos o mal que os partidos estão a fazer à qualidade da democracia, adensando o fosso que cada vez mais os separa e distancia da sociedade civil. Optando não por melhorar a democracia, que é em regra um regime imperfeito e sempre inacabado, mas contribuindo isso sim para a transformar numa verdadeira partidocracia, no sentido em que todas as suas instituições expressam, a seu modo, a monopolização pelos partidos do mundo político.
Não tenhamos dúvidas, a partidocracia não só fragiliza, deteriora ou enfraquece a democracia representativa, ela faz mais e bastante pior: destrói-a e abre inevitavelmente o caminho aos populismos de que tanto se fala e que tanto espaço ganham um pouco por toda a Europa e fora dela.
Como não tenhamos igualmente dúvidas que se a separação e distância entre partidos políticos e sociedade civil, que caracteriza a nossa democracia, se transformar numa clara e manifesta contraposição moral entre “eles” (a elite corrupta) e nós (o “povo puro”), poderão estar reunidas as condições necessárias para cair por terra o mito de que não há nem haverá em Portugal populismo.
Junte-se a essa contraposição o medo em relação ao presente e ao futuro, resultante das constantes oscilações de uma economia extremamente frágil e aberta – sabendo quanto estas afetam os níveis de (des)confiança nas instituições políticas – e a crença de que um líder popular e carismático pode restituir a segurança perdida nas instituições e veremos então que o passo que vai da democracia representativa e liberal até à democracia iliberal e populista é muitíssimo curto. Contextos sociais, económicos e políticos desta natureza têm levado a evoluções muito semelhantes.
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