É inegavelmente verdade que as eventuais negociações para a paz na Ucrânia começaram mal e têm poucas hipóteses de acabarem bem. Antes de o presidente norte-americano se encontrar com o seu homólogo russo, Trump já definiu uma série de pressupostos que deixaram os europeus estarrecidos: as negociações não terão nenhum representante ucraniano diretamente envolvidos, os europeus não foram chamados a, direta ou indiretamente, opinarem sobre o assunto, as fronteiras anteriores a 2014 (ano da anexação da Crimeia pela Rússia) já não são concebíveis e o país invadido não pode entrar na NATO.
Neste quando, a Cimeira de Segurança de Munique, que decorreu este fim-de-semana, tinha tudo para correr mal, com o vice-presidente dos Estados Unidos, JD Vance, e o secretário de Estado Marco Rubio de um lado, e o presidente ucraniano, Zelensky, e os seus apoiantes europeus do outro. António Costa, presidente do Conselho Europeu, deu o mote aos desentendimentos que se seguiriam ao afirmar que os pressupostos considerados à partida pela administração Trump não tinham nenhum cabimento. “Impor concessões à Ucrânia antes das negociações é inaceitável”, disse, visivelmente agastado pela forma como o eventual plano de paz ‘cozinhado’ entre Washington e Moscovo está a de decorrer.
A imprensa que seguiu os trabalhos da conferência afirma que houve uma sensação de consternação e descrença — e mesmo um toque de pânico — entre os delegados europeus, mesmo com alguns tentavam ‘disfarçar’ o mal-estar existente entre as delegações dos dois lados do Atlântico.
A NATO em causa
O principal medo do lado europeu é que a certeza da proteção militar dos Estados Unidos está a esboroar-se – mesmo que o secretário-geral da organização, o neerlandês Mark Rutte, insista em dizer o contrário. Paralelamente, os europeus consideram a forte possibilidade de as negociações de paz para a Ucrânia acabem por transformar o país numa entidade híbrida, sem independência e sem qualquer possibilidade de gerir o seu próprio futuro.
Essa preocupação foi alimentada pelo discurso do vice-presidente JD Vance na conferência, que mencionou a Ucrânia e a defesa europeia apenas de passagem e se concentrou em acusar a Europa de sufocar a liberdade de expressão e não conseguir administrar a imigração.
Os discursos do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e de JD Vance, expuseram de forma clara a falta de sintonia entre os dois lados do Atlântico na avaliação das ameaças que se avizinham.
Ursula von der Leyen disse que “Posso anunciar que vou propor a ativação da cláusula de salvaguarda para os investimentos na defesa. Isto permitirá aos Estados-membros aumentar substancialmente as suas despesas com a defesa”. Recorde-se que os Estados-membros precisam de investir não menos de 500 mil milhões de euros na defesa durante a próxima década. A flexibilização das regras orçamentais – já usada para o combate à pandemia – vai por isso voltar, num quadro em que, atualmente, oito Estados-membros são alvo de um procedimento por défice excessivo. Von der Leyen disse na conferência que a medida faria parte de uma “nova abordagem ousada”, porque “quando se trata da segurança europeia, a Europa tem de fazer mais. A Europa tem de fazer mais”.
Para JD Vance, “a Europa está a recuar nos seus valores fundamentais. A ameaça que mais me preocupa em relação à Europa não é a Rússia, não é a China, não é qualquer outro ator externo. E o que me preocupa é a ameaça que vem de dentro: o recuo da Europa em relação a alguns dos seus valores mais fundamentais, valores partilhados com os Estados Unidos da América”. Vance fez apenas uma referência passageira à Ucrânia e, em vez disso, dedicou o seu discurso de 10 minutos a criticar a Europa por alegadamente ter recuado nos valores democráticos e não ter ouvido os seus eleitores.
Vale a pena referir que, na passada sexta-feira, Vance se encontrou com líderes do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD), antes de rumar para a conferência de Munique.
Para Mark Rutte, que não tem qualquer autonomia de ação face à Casa Branca (qualquer que seja a administração que lá estiver), “a adesão à NATO não está fora de questão para a Ucrânia. O que está em causa não é o acordo de paz. Alguns pensam que tem de fazer parte de um acordo de paz, mas não faz parte do resultado. Temos de avançar passo a passo, temos de garantir que o acordo assegura que Putin não voltará a tentar”. Convém recordar que Pete Hegseth, secretário da Defesa dos EUA, foi claro nessa matéria ao longo dos últimos dias: a Ucrânia não entrará na NATO.
Do seu lado, Zelensky, que sabe que a administração Trump o considera ‘descartável’, disse que “vamos criar as forças armadas da Europa. Temos de construir as Forças Armadas da Europa para que o futuro da Europa dependa apenas dos europeus e para que as decisões sobre a Europa sejam tomadas na Europa”. Respondia assim ao facto de Trump ter mantido uma longa conversa telefónica com Vladimir Putin sem consultar primeiro a Ucrânia. “Sejamos claros, não podemos excluir a possibilidade de a América se recusar a cooperar com a Europa em questões que a ameaçam”, disse Zelensky, acrescentando que “a Ucrânia nunca aceitará acordos nas nossas costas sem o nosso envolvimento, e a mesma regra deve aplicar-se a toda a Europa”.
“É possível ter os ucranianos, os russos e, claramente, os americanos à mesa”, disse Keith Kellogg, enviado especial de Trump para a Ucrânia e a Rússia. “É provável que a Europa não esteja presente nas conversações”, afirmou mais uma vez. Sou da escola do realismo. Penso que isso não vai acontecer”. A “aliança europeia” seria, no entanto, “fundamental” para garantir a soberania ucraniana, referiu. “Aos meus amigos europeus, eu diria: entrem na discussão não com queixas sobre se estão ou não à mesa, mas oferecendo propostas e ideias concretas, especialmente no que se refere às despesas com a defesa”.
Entretanto, os líderes europeus declararam que teriam que assumir mais responsabilidade na sua própria defesa e segurança, aumentando os gastos militares e a produção de armas. Mas depois de anos de declarações semelhantes durante o primeiro mandato de Trump em 2017-21, e após a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, os norte-americanos duvidam que haja mesmo vontade política nesse sentido.
Mais uma cimeira sobre a Ucrânia
Um grupo de líderes discutirá o assunto da Ucrânia numa cimeira organizada à pressa em Paris esta segunda-feira. Os temores dos europeus de serem marginalizados foram tornados claros pelas palavras de Keith Kellogg – o que aparentemente é inaceitável para alguns países europeus. Paralelamente, ficou a saber-se esta domingo que autoridades norte-americanas e russas reunirão na Arábia Saudita nos próximos dias para iniciar negociações com o objetivo de acabar com a guerra.
Emmanuel Macron – que tratou Trump com especial deferência quando o convidou a estar presente na abertura oficial de Notre Dame de Paris (numa altura em que o norte-americano não tinha ainda tomado posse), parece ser um dos líderes europeus mais inquietos com o desenrolar dos acontecimentos. Os líderes europeus vão assim reunir-se em Paris para uma cimeira de emergência sobre a guerra na Ucrânia.
Embora a cimeira não tenha sido confirmada pelo presidente francês nem pelos seus porta-vozes, refere a agência Euronews, os responsáveis europeus deram a entender que a reunião poderá realizar-se. O ministro polaco dos Negócios Estrangeiros, Radoslaw Sikorski, disse num painel da Conferência de Segurança de Munique, que a reunião terá lugar esta segunda-feira.
O primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, também deverá participar na cimeira de Paris – poucos dias antes de partir para Washington (no final de fevereiro) para, a seu pedido, se encontrar com Donald Trump. Starmer poderá tentar posicionar o seu país como uma ponte entre os Estados Unidos e a Europa e reunir os aliados – esquecendo-se que não tem qualquer mandato para isso, nem sendo claro que Trump precise de um mediador para tratar assuntos com a Europa.
O Governo português estará ausente desta reunião informal de líderes europeus, promovida pelo presidente francês, adiantou fonte do executivo à Lusa, assegurando que o país está em “permanente contacto com os parceiros”.
“Não substitui as instâncias de decisão da União Europeia”, refere a mesma fonte.
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