A propagação do novo coronavírus – batizado Covid-19 – a partir do seu epicentro, algures na China, para as cada vez mais numerosas e assustadas geografias europeias permite concluir que “somos todos italianos”: além de a Europa se mostrar devidamente solidária com a desgraça que acometeu sobre a península itálica, todos os países europeus perceberam que estão à mercê de que uma desgraça semelhante lhes entre pelas fronteiras dentro. Com aviso prévio: os observadores insistem em que os restantes países europeus estudem o que se passou em Itália, tirem conclusões válidas e agreguem um conjunto de decisões sobre a forma como a epidemia deve ser atacada. Sem demoras: tudo leva a crer que mais vale tomar decisões que possam vir a revelar-se excessivas em termos de dureza do que ficar à espera que a propagação do vírus torne tudo mais urgente.
De uma maneira geral, a forma como o governo de centro-esquerda liderado por Giuseppe Conte respondeu ao surgimento do Covid-19 no seu território não parece merecer grandes críticas. Desde logo porque o executivo estava a atuar sem ‘histórico’, tendo que usar uma estratégia de ‘navegação à vista’ na resposta a um problema absolutamente novo, improvável e célere.
Aparentemente, os italianos perceberam isso: ao invés do que é costumeiro, os partidos políticos italianos, inusualmente aguerridos, não gastaram energias a digladiarem-se inutilmente face ao problema. Nem mesmo o líder da extrema-direita e o principal inimigo declarado do executivo, Matteo Salvini, se deu ao luxo de perorar contra Conte e os seus ministros do Partido Democrático (PD) e do Movimento 5 Estrelas (M5S), tendo muito comedidamente afirmado que “o anúncio do governo [de manter a totalidade do país sob quarentena] é um primeiro passo, que agradecemos, mas não é suficiente. Devemos fazê-lo rapidamente e mais, sem hesitação. Devemos fechar tudo imediatamente, sem deixar espaço para dúvidas ou interpretações”.
Mesmo assim, Salvini não resistiu a deixar duas críticas, por muito veladas que tenham sido: “O Orçamento deve ajudar famílias e as empresas imediatamente (especialmente as pequenas), em não sete mil, mas 70 mil milhões de euros. E que na Europa não percam tempo a discutir”. A referência aos sete mil milhões de euros deve-se à linha especial criada pelo governo para conter a proliferação do vírus, que Salvini quer ver crescer até ao limite do que for preciso, sem qualquer restrição orçamental.
Mas os orçamentos são a linha condutora da União Europeia enquanto agregado: a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, já disse que a Europa tem no cofre 25 mil milhões de euros para acorrer às necessidades de combate ao vírus, mas ninguém parece convencido de que será suficiente – num quadro em que o que lhe está associado é tudo menos barato.
Um ano para esquecer
A primeira evidência de que o Covid-19 tem tudo para transformar 2020 num ano para esquecer – além de todas as mortes, toda a dor e toda a desagregação que está a provocar – concentra-se precisamente na frente da economia. Von der Leyen pediu encarecida ajuda à presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, e ao presidente do Eurogrupo, Mário Centeno, para que as instituições que lideram trabalhem em conjunto para que o impacto sobre a economia seja o mais possível diminuto.
Mas ninguém acredita que esse impacto deixe de ser imenso, demorado e presente durante vários anos – num quadro em que a economia europeia ainda não tinha consolidado a recuperação da crise anterior, apesar de todos andarem há quase um ano à procura dos indicadores da crise seguinte. Pois bem, podem deixar de procurar.
A recuperação da economia europeia está indexada à recuperação da economia chinesa, dizem os analistas – dado que o Império do Meio é cada vez mais o maior fornecedor e ao mesmo tempo o maior cliente das economias caseiras dos Estados da Europa. E esta evidência aponta claramente para um problema sobejamente identificado (mas cujas metástases ainda não tinham ficado tão à vista): a desindustrialização da Europa. Neste momento, a Europa não constrói nada: limita-se a somar valor acrescentado às matérias-primas que compra à China, na expectativa de vender-lhes o mesmo produto ‘embelezado’ e dez vezes mais caro. Ou, dito de outra forma: o crescimento por via das exportações está muito bem, mas o problema é que, paralelamente, a Europa não tem envergadura para – num quadro em que as exportações abrandem por via de problemas internos dos nossos compradores tradicionais – usar o consumo como alternativa de crescimento.
A Comissão Europeia está a preparar-se para aceitar que o financiamento do combate à proliferação do vírus não conte para as contas do défice. Mas isso, dizem os analistas, é retórica: mais tarde ou mais cedo, esse gasto extraordinário acabará, mesmo que de forma indireta, por chegar às contas nacionais. Seja por via do aumento da dívida soberana (e do seu serviço) – o que, no caso de Itália, poderá ser dramático – seja pela insistência na necessidade de medidas de contenção da despesa, a ‘fatura’ há-de chegar ao bolso de todos.
No caso português, a folga orçamental, dizem os analistas, tenderá a desaparecer rapidamente quando colocada ao serviço das necessidades mais prementes do combate ao Covid-19. Mas, no caso de Itália, onde essa folga não existe, a matéria será ainda mais difícil de analisar e as contas do Estado tenderão a ‘estragar-se’ de forma mais aparatosa.
Políticas
O que ainda está por avaliar são as consequências políticas do Covid-19. O caso italiano volta a ser paradigmático. O país estava, antes da chegada de tão indesejável visita, em plena crise política. Matteo Salvini bateu com a porta ao governo de que ele próprio fazia parte – como vice-primeiro-ministro e ministro do Interior – e desde então tem gasto os seus preciosos dias a tentar derrubar o executivo que o substituiu. Ora, este executivo é uma aliança entre o M5S – que sempre disse que não se coligaria com o PD – e o próprio PD, ou o que dele resta depois de o seu líder carismático, Matteo Renzi, o ter abandonado para criar uma nova formação.
É altamente improvável que uma geometria política não só tão variável como imensamente instável tenha uma longa vida quando o drama do Covid-19 puder finalmente ser dado como extinto. Na ressaca da união que permitiu ao país passar pela pior crise de que há memória, há-de aparecer a altura dos ajustes de contas. E nisso, como está explanado nos livros de história moderna e contemporânea, os italianos são exímios.
Para todos os efeitos, uma nova crise política em cima da crise do Covid-19 só servirá para complicar ainda mais a situação. Muito provavelmente, o presidente italiano, Sergio Mattarella, não voltará a conseguir impor um governo de coligação sem ter de recorrer a eleições antecipadas. O mesmo se dirá, dizem os analistas, da possibilidade da alternativa de um governo tecnocrata de iniciativa presidencial. Quando o segundo gabinete Conte foi nomeado, em setembro passado, Mattarella tinha nas mãos a alternativa de um governo desse tipo – que tem largo e recente historial no pais, com Mario Monti. E até já tinha os nomes: a presidente do Tribunal Constitucional, Marta Cartabia – a primeira mulher a ser eleita para o cargo – e Mario Draghi, o antigo Governador do Banco Central Europeu.
Marta Cartabia tem uma sólida formação e carreira na área do Direito, o que já a levou a intensa colaboração com várias instituições da União Europeia, tendo sempre mantido forte cariz de independência face aos partidos políticos que gravitam na esfera do poder em Roma. Mario Draghi regressou a Itália envolto na aura de ter sido o mais poderoso instrumento da salvação das economias europeias endividadas em geral e dos países do sul em particular. Tenaz, reservado e inflexível, tem crédito interno quanto baste e seria uma boa notícia para uma parte substancial da União Europeia.
A questão é perceber-se se a Itália está preparada para uma nova aventura deste género. Há quem diga que sim: o país sairá exangue da luta contra o Covid-19 e tudo o que o povo não quererá ouvir e para todos os efeitos não precisará, é de uma crise política que engalfinhe ainda mais os atores do costume. Se assim for, é possível que um governo apartidário (que nunca é), acima das paixões políticas e que tenha como único intuito fazer voltar o país à normalidade possa ser bem aceite por um país que estará a precisar, fundamentalmente, de descansar.
Uma envolvente difícil
Há vários anos que a economia italiana tem demonstrado grandes deficiências – que se verificam nos grandes planos, como é a questão da dívida, mas também na economia mais ‘caseira’.
Assim, os dados mais recentes da produção (dezembro de 2019) fornecem uma justificação, mesmo que apenas parcial para aquilo que os analistas consideraram “a surpreendente contração do PIB italiano de menos 0,3% no quarto trimestre”. A produção industrial do país contraiu 2,7% em dezembro, em relação ao mês anterior, a maior queda mensal desde janeiro de 2018.
Energia, bens intermediários, bens de capital, bens de consumo e os setores da madeira, borracha, minerais plásticos e não metálicos, construção e transporte estavam todos com crescimentos negativos. Os holandeses do ING Bank conseguiam descobrir, no início do ano, uma nota positiva: os dados das carteiras de encomendas industriais, divulgados desde agosto, apontam para uma possível melhoria na produção, corroborando uma leve melhoria na confiança dos empresários.
“No entanto, essa recuperação parece vulnerável à crescente incerteza sobre o impacto económico do coronavírus. Embora o impacto mais óbvio a curto prazo provavelmente seja no consumo e no turismo, evidências apontam para um risco crescente de que a indústria possa em breve ser afetada também por interrupções na cadeia de fornecimento internacional”, escrevia um researcher do banco dias antes de o Covid-19 se manifestar de forma dramática no país. Conservadores, os holandeses afirmavam que a economia italiana cresceria no final de 2020 – se nada de anormal se passasse – não mais que uns magros 0,2%.
O mesmo banco deixa evidente que o problema não se manifestará apenas na Itália. Mesmo antes da ‘explosão’ do Covid-19 “já estava claro que a economia da Zona Euro não estava a crescer de forma assinalável no início do ano. A boa notícia é que o setor da manufatura está a chegar ao ‘fundo do poço’ e que, com a correção de stokes a chegar ao fim, o setor está pronto para uma recuperação. A má notícia é que, com a distorção das cadeias de fornecimento e dos fluxos comerciais causados pelo Covid-19, a recuperação terá agora alguns meses de atraso”.
Além disso, as coisas estão piores no setor de serviços, do turismo e dos transportes, que até agora eram a força da economia, que impediu uma desaceleração mais grave em 2019. Esperamos um crescimento de 0,7% do PIB para a Zona Euro este ano, com o risco os resultados serem ainda mais baixos”.
Sendo claro que quanto maior for o impacto da presença do Covid-19 em determinado país, mais fortes serão as suas repercussões na economia local, o mais certo é que a Itália passe muitos meses sem que lhe seja possível vislumbrar o fundo do túnel.
Onde estará a Europa?
E esse poderá ser o primeiro – vá lá, o segundo, depois do Brexit – grande desafio da União Europeia enquanto federação que pretende ser o motor do desenvolvimento dos 27 (restantes) mas também o espaldar das crises que se espalham pelo agregado.
Para todos os efeitos, não há nos compêndios de história e de economia qualquer capítulo que possa dar uma receita para a recuperação depois de um desastre da transcendência do Covid-19. A Europa – a Comissão Europeia de Ursula von der Leyen (com certeza preocupada com a crise política na Alemanha), o Conselho Europeu de Charles Michel (com certeza preocupado com o fantasma da secessão na Bélgica) e o Banco Central Europeu de Christine Lagarde (com certeza preocupada com a crescente contestação a Emmanuel Macron) serão chamados a reinventarem-se, a inventarem, a provarem aos europeus que ainda vale a pena pertencerem à União Europeia. Porque, para todos os efeitos, desta vez somos todos Itália.
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